Marta Rivera, jornalista e escritora de profissão, entrou na política apenas em 2015, mas desde então tem subido na hierarquia do Ciudadanos — um partido que, embora exista há mais de dez anos, só agora está à beira de se tornar um verdadeiro partido de poder. Nas legislativas, Rivera foi colocada no terceiro lugar da lista por Madrid, sabendo à partida que tinha fortes possibilidades de ser eleita. E ainda antes da estreia como deputada já tinha sido nomeada responsável pela Cultura dentro do Ciudadanos; no Congresso, chegaria à presidência da comissão dessa mesma área.
Em Lisboa a convite da Iniciativa Liberal — movimento cívico que se constituiu como partido em dezembro do ano passado — para falar sobre o sucesso do Ciudadanos, Rivera falou ao Observador sobre o momento do seu partido, uma força que se diz “liberal” (mas “do centro”) e que passou de pequena força de protesto regional a vencedor de eleições numa região como a Catalunha. Mais do que isso, um partido que em pouco mais de uma década se tornou a principal dificuldade para o Partido Popular (PP) de Mariano Rajoy e que ameaça agora roubar-lhe o lugar de principal força da direita espanhola.
São várias as sondagens que colocam o Ciudadanos em primeiro lugar para eleições futuras, seja em municípios como Murcia, seja até a nível nacional, mas nem tudo são rosas para os naranjas. A vitória nas eleições e os 36 deputados alcançados na Catalunha, por exemplo, não chegaram para formar Governo e Inés Arrimadas viu-se relegada de novo para a oposição pelos independentistas — que, contudo, ainda não conseguiram nomear um presidente da Generalitat.
A nível nacional, o partido vai titubeando entre a retórica mais violenta contra o PP no palanque e o seu apoio ao Governo em algumas matérias-chave no Parlamento. O caso mais recente que ilustra esse equilíbrio precário é o de Cristina Cifuentes (presidente da Comunidad de Madrid do PP que se demitiu na sequência do escândalo de um mestrado alegadamente falso), com o Ciudadanos a demorar a apoiar a moção de censura proposta pelos socialistas do PSOE e pelo Podemos e, atualmente, a aceitar qualquer substituto que os populares venham a propor, “desde que seja limpo”. As sondagens, contudo, dizem que não terão saído beliscados. Resta saber se as intenções de voto se irão traduzir em votos reais.
Agora, quando a força política de Albert Rivera está à beira do poder como nunca, Marta Rivera fala com o Observador sobre a linha do partido. A reforma constitucional não deve dar mais autonomia às regiões, crê, porque “a capacidade de auto-gestão das comunidades é imensa”. Sobre a corrupção, atira que “não basta falar, é preciso atuar”. E, na semana em que a ETA anunciou a sua dissolução, Rivera avisa que é preciso “não colocar o contador a zeros”. É o programa de um partido cujo momento, garante a deputada, chegou agora.
O Ciudadanos ganhou as eleições na Catalunha, está em primeiro em sondagens para a Comunidad de Madrid, para as legislativas… Este é um partido que já existe há algum tempo. Porque é que acha que está a atravessar este bom momento agora?
Suponho que não há uma única razão, mas a principal penso que é o facto de o Ciudadanos ser o único partido em Espanha que tem um projeto de integração, um projeto estruturado, para toda a Espanha. E os cidadãos perceberam isso e estão a reconhecê-lo. Como dizia, o que temos são sondagens e nada mais e há que ser respeitador do tempo. Mas não é uma só sondagem, são muitas e sucessivas, não fazemos mais nada a não ser crescer. Gostamos de dizer que os sondagens são uma fotografia, mas eu gosto de sair bem nessa fotografia.
O discurso do Ciudadanos tem-se aproximado das ideias do PP…
[Interrompe] Não me parece, pelo contrário. Dou-lhe um exemplo concreto: fomos o único partido que votou contra o que se chama Cupo basco [impostos que o País Basco arrecada e que tem de devolver ao Estado espanhol pelos gastos em matérias de responsabilidade nacional como a Segurança Social ou a gestão de prisões e museus], que são uma série de privilégios para o País Basco que não consideramos justos. Estão reconhecidos na Constituição, sim, mas não o seu cálculo e o cálculo deste Cupo é claramente favorável à Eskaudi e muito desfavorável ao resto de Espanha. O PP negociou este Cupo e nós opusemo-nos frontalmente. É difícil fazê-lo, porque também temos de ganhar eleições lá e também temos representantes e autarquias que queremos conquistar, mas fomos consequentes e ficámos sozinhos muitas vezes. Ficámos sozinhos frente ao PP também num projeto para reforçar a Alta Inspeção Educativa, para corrigir as diferenças educativas nas diferentes comunidades autónomas. Penso que o que se passa é que alguns partidos usam isso de alguma forma para parar o entusiasmo que há à volta do Ciudadanos, que é um partido do centro.
Mas muitas das ideias que são semelhantes às do PP são as ideias mais à direita: o foco na soberania de Espanha, o finca-pé à ETA… O Ciudadanos é mesmo um partido de centro?
Eu penso que somos claramente de centro. Quero pensar que a ideia da união de todos os espanhóis não é uma ideia nem de direita nem de esquerda, é uma ideia de todos. Travar a ETA também é uma ideia que temos todos interiorizados. O que se passa nesta situação [da ETA] é com que este último jogo de cartas fomos o único partido que disse claramente que não pode haver nenhuma alteração na política penitenciária.
O chamado “acercamiento” [transferência de presos condenados da ETA das várias prisões por onde estão espalhados por toda a Espanha para prisões do País Basco].
Exato. Neste momento há 358 assassinatos da ETA por resolver. 358 famílias não sabem quem assassinou o seu pai, o seu filho, a sua mãe, o seu irmão… Isso é suficiente para não colocar o contador a zeros. A ETA está derrotada há muitos anos, foi derrotada pela sociedade, pela democracia, pelas forças de segurança e pela união dos partidos políticos. E tudo o que veio depois são tentativas dos seus herdeiros de voltar a ocupar um espaço político.
Mas a ETA já é praticamente inexistente, não?
A ETA foi derrotada, mas continuam a ocultar armas. Sabemos que há armas que estão escondidas, que não as entregaram. Continuam sem assinalar os zulos, que são os locais onde esconderam os sequestrados. E continuam sem colaborar na resolução de quase 400 crimes. Portanto, evidentemente há uma atividade latente, não há um desejo de colaborar com a Justiça e reparar os danos causados e não queremos que se ponha o contador a zeros.
E o PP está a fazer isso?
O presidente do Governo diz que não vai haver nenhum tipo de intercâmbio [dos presos]. Eu quero acreditar nisso e estaremos vigilantes para garantir que isso não acontece. Mas às vezes as declarações de alguns nacionalistas bascos, que conseguiram negociar com o Partido Popular o Cupo basco, preocupam-nos, porque são contraditórias, parecem insinuar que poderia haver algo por detrás. Eu quero acreditar no presidente do Governo quando ele diz que não há negociação.
O que distingue o Ciudadanos do PP neste momento?
[Inspira fundo] São muitas coisas. Vou dar-lhe exemplos pequenos. Fomos decisivos na negociação do Orçamento do Estado, na sua distribuição. Colocámos na agenda muitas políticas sociais que o PP tinha ignorado, como a entrega de um cheque escolar ao nível das creches, para que as famílias tenham mil euros por ano para usar nisso e reorganizar-se quando nasce um filho. Conseguimos também um complemento para os jovens que querem estudar e começar a trabalhar, um complemento de reforço de salários, que em Espanha são muito baixos. No meu sector, o da cultura, o Ciudadanos colocou como linha vermelha a descida do IVA nos bilhetes de cinema e no mandato anterior já tínhamos conseguido o mesmo para o teatro e para a música. São coisas com as quais o PP não se preocupa. E nós tivemos um papel importante ao colocá-las na agenda política.
E como responde às críticas de que o Ciudadanos não é firme o suficiente a condenar os casos de corrupção que envolvem o PP?
Fizemos uma coisa muito mais importante do que criticar: impusemos regras. Dou-lhe um exemplo, em Murcia, o presidente da Comunidad estava acusado de um crime de corrupção e o Ciudadanos, que tinha um acordo de governação com eles, exigiu que ele saísse. Nunca acreditaram que nos mantivéssemos firmes até ao final, mas nós dissemos que apoiaríamos uma moção de censura se ele não saísse. E eles retiraram-no, um homem que continua sob várias acusações. No caso de Madrid, recentemente, com Cristina Cifuentes, estávamos dispostos a apoiar a moção de censura se Cifuentes não se retirasse…
Mas demoraram a afirmá-lo.
Nós sempre dissemos que o PP deveria ir buscar outro candidato. É claro que há tempos políticos que temos de respeitar, não podemos pedir a um partido que de um dia para outro troque de candidato, mas neste caso havia um prazo até ao final de abril. E estão à procura de um agora, mas Cristina Cifuentes já não é presidente. Eu acho que no toca à corrupção não basta falar, é preciso atuar. E fizemo-lo na Andaluzia e em todos os lugares onde tivemos força para isso.
Olhando para a Catalunha, que é o lugar onde o Ciudadanos conseguiu o seu melhor resultado eleitoral, o partido continua a manter uma posição clara de oposição ao independentismo — ainda hoje houve a entrega do recurso no Constitucional [para que não seja possível Puigdemont delegar o seu voto]. Como responde às acusações feitas, por exemplo, pelo PSOE, que diz que o Ciudadanos tem feito por manter a tensão para retirar daí ganhos eleitorais?
O Ciudadanos nasceu há 12 anos precisamente pela necessidade de um partido que reivindicasse a Constituição e se opusesse ao independentismo. Mantivemos a mesma linha durante todos estes anos, não houve uma mudança de política. Sempre falámos do mesmo, de que a Constituição espanhola não contempla a possibilidade de um referendo, de que uma parte do país não pode decidir por todo o país. Sempre defendemos o mesmo, não houve a mínima mudança! Eu percebo que para os que diziam que o nosso partido não ia ter futuro… O nosso partido na sua primeira eleição conseguiu três mandatos e há muitas gravações de outros políticos a dizerem ‘vocês não têm futuro, isto foi um acaso, vão desaparecer’. É muito difícil aceitarem que em 12 anos este partido, que pensavam que ia desaparecer, ganhou as eleições. Os velhos partidos, o PSC [PSOE catalão], o PP, estão desorientados connosco e usam o que têm à mão. Mas a nossa firmeza face ao independentismo é clara, o discurso que tínhamos há 12 anos é o mesmo que temos agora.
Imaginemos que Inés Arrimadas consegue ganhar umas eleições e se torna presidente da Generalitat. Como é possível conseguir uma reconciliação da Catalunha neste momento?
É muito difícil, é muito difícil. Os independentistas conseguiram fraturar uma sociedade. Tenho muitos amigos na Catalunha, porque já lá passei muito tempo, e vejo grupos de amigos que não falam, famílias que deixaram de passar o Natal juntas porque discutiam… Conseguiram uma fratura social que vai demorar muito a sarar. Mas eu tenho de acreditar que é possível. Falta fazer trabalho na educação, um trabalho de concórdia. Esta é uma crise de emoções, mas todo este processo deixou na Catalunha uma crise económica que já se nota. No turismo, no consumo… Ainda hoje vi uma notícia a dizer que as vendas de carros diminuíram. Isso também é importante. A economia catalã é um dos motores da economia espanhola e puseram-no, como se diz, ao ralenti [expressão que significa no andamento mais lento]. Há pessoas que já se aperceberam que foram enganadas. Que lhes disseram que uma Catalunha independente seria rica e próspera e desde que foi declarada a independência três mil empresas deixaram a Catalunha. Há muita gente que está a acordar do sonho criado pelos nacionalistas. Mas tem razão, é muito difícil. Não vai ser coisa de um ano ou dois, vai ser um trabalho muito delicado e com muita fé no futuro para que as coisas se recomponham.
Espanha enfrenta o problema dos sentimentos independentistas nas suas regiões. O PSOE e o PP acordaram discutir uma reforma da Constituição… Como é que o Ciudadanos se posiciona nesta matéria?
Criou-se no Parlamento uma comissão para a reforma constitucional, cujo resultado foi um fracasso porque quem a promoveu — o PSOE — começou a reduzir o número de participantes, inclusivamente do seu próprio partido. Só queriam ouvir as mesmas vozes, não fazia sentido. Mas eu penso que Espanha é um país cuja riqueza parte dessas diferenças culturais, que são fantásticas. É maravilhoso que haja 17 autonomias e que cada uma tenha uma identidade, o que é perfeitamente compatível com a ideia de país, de nação, de valores comuns, de estruturação social e cultural. No entanto, é claro que temos as nossas individualidades. Eu sou galega, temos uma segunda língua, que traz uma riqueza cultural extra. E claro que eu não quero renunciar a isso, penso que é provavelmente a parte mais relevante na riqueza de Espanha. Mas quando se usa isso para criar fronteiras, ainda para mais neste momento em que se firma uma Europa unida e comum, é um passo atrás. Cada vez que alguém ergue uma fronteira, é um passo atrás.
Mas o Ciudadanos, assumindo-se como partido do centro, não está aberto ao diálogo com as comunidades?
O diálogo com as comunidades já existe, já têm os seus governos autónomos. Apesar de não ser um país federalista, Espanha tem comunidades autónomas com muitas mais competências que qualquer Länder [estados federais da Alemanha] alemão. A capacidade de auto-gestão das comunidades é imensa. Mas quando alguém está a falar a sério de rasgar o país, de mudar fronteiras, essa é uma conversa que não se pode ter. Aí não há linha de diálogo. E é difícil pensar em transferir mais competências para além das que já existem. A margem das comunidades para se gerirem a si próprias em Espanha é imensa.
Portanto, o PP não poderia ter feito as coisas de forma diferente na Catalunha?
Podia. O Partido Popular durante muito tempo ignorou o independentismo. Ignorou o que estava a ser cozinhado, que os independentistas tinham um plano, um projeto, que estavam a preparar-se, e preferiu ignorar isto. Eu não estava no partido à altura, mas sei que do parlamento da Catalunha vieram avisos. Disseram ‘está a passar-se isto, há problemas com a educação, está a desviar-se dinheiro para promover o independentismo’ e nada. O PP nunca entendeu o que estava a acontecer na Catalunha. E quando quiseram reagir foi demasiado tarde.
Em 2019 há eleições na Andaluzia, há eleições autárquicas, e as sondagens dizem que o Ciudadanos pode ganhar em alguns municípios. A situação para um partido que está na oposição é diferente da de um partido que começa a governar, mesmo que apenas em autarquias. O que pode mudar?
É claro que a responsabilidade é muito maior, mas estamos preparados. Por uma razão: crescemos e aprendemos no lugar mais difícil possível, a Catalunha. Isso fez de nós mais resistentes, mais fortes. Estamos perfeitamente conscientes do que significa chegar ao poder. Temos gente excecional a ajudar-nos e é óbvio que será muito difícil, porque vamos encontrar situações muito complicadas e vai ser necessário negociar muitas coisas. Mas acho que quando um partido nasce, nasce para governar. E desta vez vamos assumir essa responsabilidade. Este é o momento do Ciudadanos.