A ministra da Saúde Marta Temido utilizou esta sexta-feira uma das viaturas oficiais do Governo para se deslocar a uma ação de campanha eleitoral do Partido Socialista. Tiago Barbosa Ribeiro concorre à câmara do Porto e Temido apresentou-se na condição de “militante” na ação, mas na deslocação utilizou a condição de ministra. Ao Observador, o ministério da Saúde confirma a deslocação da ministra ao Porto e a participação num evento de campanha autárquica “à margem desta visita oficial”. Ministra fala em “agendas autónomas” e confirma que andou no Porto com o carro do ministério entre a ação partidária e ação oficial. Em causa pode estar o crime de peculato de uso, diz um especialista ouvido pelo Observador.
A agenda do dia estava sobrecarregada e Marta Temido foi pontual. Pouco passava das 9 horas quando entrou com Tiago Barbosa Ribeiro no café Guarany na Avenida dos Aliados. O problema é que para lá chegar e para dali ir depois para a agenda oficial foi transportada no carro que usa ao serviço do Governo. Aproveitou assim a visita oficial a Vila Nova de Gaia, primeiro, e ao Porto, depois, para dar um salto à campanha do socialista.
Durante a ação de campanha foi a própria governante a explicar que ali estava “à margem da agenda” que tinha para esta sexta-feira, algo que o ministério confirma em resposta oficial ao Observador. O ministério não respondeu, no entanto, às questões que pediam justificações sobre a utilização de um carro do Executivo para participação em eventos de campanha eleitoral.
Ao Observador, já após a publicação do artigo, Marta Temido, confirmaria: “no dia 17 de setembro, desloquei-me, em serviço, entre Lisboa e as referidas cidades, na viatura do Ministério da Saúde.” Confirmava ainda o evento: “Enquanto estive no Porto, participei num breve pequeno almoço partidário.” Por fim, a ministra justifica-se dizendo que “ambas as agendas eram públicas, claramente assumidas e autónomas.” E acrescenta ainda: “Essa autonomia, verificou-se, nomeadamente, na chegada a pé ao café Guarani. Findo o pequeno almoço, retomei a agenda oficial.”
Marta Temido diz que chegou a pé ao café Guarany, mas os repórteres do Observador no local verificaram que o carro oficial já estava no lado oposto da estrada na Avenida dos Aliados logo no início da ação quando a governante fez esse percurso a pé com Tiago Barbosa Ribeiro até ao estabelecimento. O carro oficial ficou, aliás, na rua à espera de Temido durante o tempo da ação partidária.
A ministra nada diz sobre a saída nem como se deslocou da atividade do PS (no Porto) para o local onde desempenhou a atividade de ministra (em Gaia). Tanto a presença dos repórteres, como as fotografias tiradas no local pelo Observador mostram que esse percurso foi feito com o carro do Governo.
Após sair dos Aliados, Temido foi até Vila Nova de Gaia (ao Pavilhão das Pedras), onde funciona o Centro de Vacinação, para depois regressar ao Porto para participar no 12.º Encontro Nacional das USF – Unidades de Saúde Familiar. A viatura da ministra percorreu então na manhã de sexta-feira no grande Porto algumas dezenas de quilómetros em deslocação oficial e extra-deslocação oficial.
Para o advogado e especialista direito administrativo Paulo Veiga e Moura não há dúvidas de que se trata de uma situação de “uso indevido do veículo do Estado para fim partidário”. “Os ministros têm veículo para uso profissional, não para ir a campanhas partidárias”, nota, acrescentando que se trata de uma “violação do próprio código de conduta do Governo, da transparência da administração e da prossecução de interesse público”.
Terá que haver justificação e o primeiro-ministro deverá ser o primeiro a exigir essa explicação. A que propósito está numa ação do Partido Socialista um veículo do Estado? Todos temos de exigir essa resposta”, afirma o especialista.
O texto da lei é claro quanto ao que poderá estar em causa nesta situação. “O titular de cargo político que fizer uso ou permitir que outra pessoa faça uso, para fins alheios àqueles a que se destinem, de coisa imóvel, de veículos ou de outras coisas móveis de valor apreciável, públicos ou particulares, que lhe forem entregues, estiverem na sua posse ou lhe forem acessíveis em razão das suas funções é punido com prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”.
António Costa tem mais cuidado do que teve a ministra da Saúde neste caso. O primeiro-ministro — como já registou a equipa do Observador várias vezes e em diversos locais .. desloca-se para as ações do PS num velho Audi que é propriedade partido em vez de o fazer numa das viaturas oficiais que utiliza como primeiro-ministro.
Os casos de autarcas que recorreram a viaturas do Estado para deslocações
Um dos casos mais recentes envolveu o social-democrata Salvador Malheiro, presidente da Câmara Municipal de Ovar e vice de Rio no PSD. Em 2019 o autarca foi apanhado a utilizar o carro comprado pela autarquia para várias deslocações ao serviço do PSD.
Salvador Malheiro usa carro de luxo da câmara em viagens ao serviço do PSD
Em pelo menos cinco situações que o Observador identificou à data, o autarca viajou no carro da câmara para participar em eventos do PSD. Na altura, Malheiro garantia que todas as deslocações tinham cariz autárquico.
Em resposta por escrito às questões do Observador, a então diretora do departamento administrativo, jurídico e financeiro da autarquia, Susana Pinto, garantia que cada um dos casos estava abrangidos pelo “exercício das funções que estão cometidas ao senhor presidente da Câmara Municipal, nomeadamente em matéria de representação política, a par da participação em várias reuniões de trabalho e sessões públicas e privadas, com diferentes entidades e organismos“. Sem registo público dessas reuniões ou das entidades com que Malheiro esteve envolvido, o Observador insistiu e pediu dados concretos. A autarquia recusou-se na altura prestar mais esclarecimentos.
Também Luís Mourinha, esteve acusado do crime de peculato de uso, tendo sido mais tarde absolvido pelo Tribunal de Estremoz. O presidente da Câmara Municipal de Estremoz, eleito por um movimento independente, foi alvo de um processo do Ministério Público por ter feito “uso de viatura que lhe estava afeta enquanto presidente de câmara e responsável concelhio da proteção civil para realizar várias viagens de lazer e cariz particular e em proveito próprio e em prejuízo do município”.
No caso do presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, foram os quatro vereadores socialistas que integravam o executivo da Câmara de Santa Maria da Feira a apresentar queixa. Sem arguidos constituídos, no inquérito que o Ministério Público abriu, depois de receber uma queixa dos vereadores socialistas do município, estavam em causa deslocações a locais de voto durante eleições locais e, noutro âmbito, uma viagem a Lisboa para participar no 37º Congresso do PSD.
Artigo atualizado às 10h40 de sábado com esclarecimentos adicionais de Marta Temido, enviados já depois da saída da notícia, que já continha as respostas do Ministério da Saúde.
Divulgamos também o esclarecimento na íntegra:
“Face à vossa notícia “Ministra da Saúde usa carro do governo para campanha autárquica do PS no Porto”, esclareço:
1. Dado ter assumido, há várias semanas, agenda oficial em Vila Nova de Gaia e no Porto, no dia 17 de setembro, desloquei-me, em serviço, entre Lisboa e as referidas cidades, na viatura do Ministério da Saúde.
2. Enquanto estive no Porto, participei num breve pequeno almoço partidário.
3. Ambas as agendas eram públicas, claramente assumidas e autónomas. Essa autonomia, verificou se, nomeadamente, na chegada a pé ao café Guarani. Findo o pequeno almoço, retomei a agenda oficial.
Marta Temido”