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Especialista portuguesa tem investigado as violações de direitos humanos na Venezuela
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Especialista portuguesa tem investigado as violações de direitos humanos na Venezuela

Especialista portuguesa tem investigado as violações de direitos humanos na Venezuela

Marta Valiñas, chefe da Missão da ONU para a Venezuela: "Há um nível de medo no país que nunca tínhamos visto antes"

Marta Valinãs é portuguesa e chefe da Missão de Observação das Nações Unidas na Venezuela. Em entrevista ao Observador, espera que pressão internacional continue e espera "mais" de Brasil e Colômbia.

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Desde 2019, Marta Valiñas, jurista que se especializou na área dos Direitos Humanos e Direito Penal Internacional, é chefe da Missão do Conselho dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas para a Venezuela. A especialista portuguesa tem investigado as violações de direitos humanos naquele país sul-americano desde há dez anos e relata ao Observador que, desde as eleições presidenciais de 28 de julho, existe um “nível de medo” que nunca tinha visto antes no país.

Apesar de ter havido uma resolução do Conselho dos Direitos Humanos — de que Caracas faz parte — para a criação da Missão, as autoridades venezuelanas “não têm reconhecido a sua legitimidade”. Assim sendo, a equipa composta por Marta Valiñas e outros dois especialistas na área do Direito Internacional não “pode entrar” na Venezuela. “Mas isso não nos impede de ter acesso a fontes dentro da Venezuela, pessoas com quem falamos de forma remota e também temos acesso a vários documentos oficiais que nos são partilhados.”

O regime não facilita o trabalho da Missão e até critica diretamente os relatórios publicados, algo que não “surpreende” Marta Valiñas. “Mas obviamente é muito preocupante”, diz a jurista. Tendo em conta o medo que existe entre a população venezuelana depois das eleições, a equipa admite que tem “tido dificuldades” em recolher testemunhos, tendo em conta o receio de represálias.

“Situação na Venezuela está progressivamente mais preocupante”

Como é que neste momento avalia a situação na Venezuela em termos de direitos humanos e em termos de repressão? Esta pergunta está interligada ao facto de ter havido eleições presidenciais na Venezuela e de ter havido um movimento principalmente contra a oposição.
Neste momento, a situação na Venezuela está progressivamente mais preocupante. Já tínhamos vindo a documentar nos últimos anos, desde 2014, vários tipos de atos que considerávamos serem tanto contra a lei nacional, como contra tratados internacionais de direitos humanos, e já tínhamos dado conta do que era uma repressão seletiva. De líderes sociais, políticos, jornalistas… Através de detenções arbitrárias, às vezes também seguidas de atos de tortura e outros maus-tratos, incluindo violência sexual. Isto incluía também ações contra membros das Forças Armadas, que se viam acusados de estarem envolvidos em conspirações contra o governo. Era algo que já vínhamos a documentar, em paralelo a várias restrições e limitações de outros direitos civis e políticos, como a liberdade de expressão e de associação. E, nos últimos meses, continuaram algumas dessas detenções seletivas, nomeadamente de membros dos partidos de oposição e do Partido Vente Venezuela, de María Corina Machado. Há vários dirigentes e militantes do partido que foram detidos nos últimos meses. E também ativistas de direitos humanos. Rocío San Miguel, por exemplo, foi detida este ano, supostamente por ligação a uma dessas conspirações — que são alegadas pelo Ministério Público e pelo próprio governo — e que pretendem supostamente derrubar o governo atual. Era algo que já nos vinha a preocupar, juntamente com decisões que não permitiam, por exemplo, María Corina Machado ou outros membros da oposição candidatarem-se às eleições.

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E o que aconteceu depois das eleições a 28 de julho?
Foi uma repressão mais dura, mais violenta e que foi executada num período de tempo bastante curto. Houve entre 24 e 25 mortes logo nos dois dias a seguir, mas depois o que assistimos foi uma vaga de detenções que consideramos arbitrárias, uma vaga massiva destas detenções associada a graves violações das garantias processuais.

"Há uma ingerência por parte do poder executivo na forma como os tribunais lidam com este tipo de casos. E os tribunais especializados para casos de terrorismo acabam por contribuir e serem responsáveis por várias dessas violações das garantias processuais."

Por exemplo, como dizem os relatórios da ONU, não existe um advogado, ninguém pode contactar um advogado…
Exatamente. Isso é gravíssimo e é uma das coisas que acontece de forma sistemática em todos estes casos. Alguns advogados e mesmo, por exemplo, uma organização que é muito conhecida no país, que se chama Foro Penal e que dá assistência jurídica, conseguiam ter algum contacto com as pessoas que eram detidas. Hoje em dia, não estão a conseguir. Portanto, não se permite a estas pessoas que são detidas por estas razões — seja em contexto das manifestações que tiveram lugar, seja estas detenções mais seletivas de membros da oposição, pessoas conhecidas ou ativistas e líderes sociais — que tenham contacto e que sejam representados pelos advogados. Isso é uma das coisas. A outra é que, nestes casos, não lhes é apresentado um mandado de detenção. São acusados de crimes muito graves, como terrorismo, incitamento ao ódio, conspiração…

Terrorismo é um crime particularmente grave na Venezuela…
Sim. É um crime grave e também é um crime que determina que estes casos sejam julgados pelos tribunais que foram criados especialmente para lidar com crimes de terrorismo. Isto quer dizer que são tribunais especializados, mas nós já documentamos várias irregularidades — e estou a falar de irregularidades graves — no devido processo que foram cometidas nestes tribunais. O que vemos é que há uma ingerência por parte do poder executivo na forma como os tribunais lidam com este tipo de casos. E os tribunais especializados para casos de terrorismo acabam por contribuir e serem responsáveis por várias dessas violações das garantias processuais. Uma das coisas que temos documentado é que estas pessoas são acusadas destes crimes graves, mas o que é realmente preocupante é que o fazem sem uma base legal e factual que o justifique. Também assistimos este ano, logo a seguir às eleições e quando se iniciaram as manifestações populares, ao próprio Presidente Maduro, e depois também ao seu procurador-geral, a anunciarem que as pessoas que seriam detidas — que eles qualificavam como terroristas — iam ser acusadas deste tipo de crimes. O que vemos depois na prática é que, efetivamente, não existe apresentação de provas que constituam uma fundamentação factual, legal e adequada. As pessoas são efetivamente acusadas e estamos a falar às vezes de menores, que estão a ser acusados de terrorismo e que foram detidos também neste contexto.

Gostava de lhe perguntar sobre a “Lei contra o fascismo”, que está neste momento a ser discutida [a nível parlamentar] e ainda não foi aprovada. A ONU tem conhecimento sobre ela e o que significará se for aplicada?
Sim. Ainda estamos a falar de uma proposta de lei, mas o problema que vemos nela é que algumas das disposições são exageradamente vagas e permitem que se proíba, por exemplo, o uso de certas expressões [como conservadorismo e neoliberalismo]. Entendemos isto como um ataque à liberdade de expressão, porque são realmente normas demasiado vagas e proíbem expressões que, em si mesmas, não constituem nenhum tipo de restrição. Não [há o que] justifique serem proibidas. E o problema desta lei é que há todo um contexto em que poderá ser adotada, de estratégias que já foram usadas por este governo para limitar a expressão e a publicação por parte de meios de comunicação independentes. Estou a falar do facto de terem fechado várias rádios, de terem impedido que, por exemplo, canais, até mesmo internacionais como a alemã Deutsche Welle, pudessem emitir vídeos. Na Venezuela há uma série de limitações à liberdade de expressão que criam este contexto no qual seria adotada esta lei. E com estas normas e com este texto formulado de forma tão vaga, vemos que há um perigo de ser utilizada de forma indevida. Aliás, como a lei contra o ódio tem sido. Porque em si mesma é uma lei que poderia proteger direitos dos cidadãos, mas o que nós temos visto é que, na prática, está a ser utilizada precisamente para silenciar vozes dissidentes e oposição política. Por isso não é só a norma em si, ou a lei em si, mas o contexto em que ela seria adotada.

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Missão da ONU acusa o regime de Nicolás Maduro de não colaborar

AFP via Getty Images

Ida para o exílio de Edmundo González para Espanha: “Existe um risco real de se passar o mesmo com María Corina Machado”

O candidato da oposição, Edmundo González, fugiu para o exílio, nomeadamente para Espanha. Esta ida para o exílio de Edmundo González preocupa-a e o que pode significar para os direitos políticos na Venezuela?
A saída de Edmundo González não me surpreende completamente, porque sabíamos que ele estava em risco de ser detido e, aliás, um risco bastante iminente, porque já tinha sido iniciada uma investigação, assim como contra María Corina Machado, mas depois houve realmente um mandado de detenção contra o candidato. O que isto representa é o que se tem estado a passar na Venezuela e continua a passar, que é realmente uma perseguição com motivos políticos, contra os membros da oposição, pessoas destacadas politicamente, mas também outros militantes, dirigentes do partido. Portanto, é realmente, digamos, um passo mais naquilo que se tem vindo a passar na Venezuela e é um risco bastante iminente, até porque outros líderes no passado já foram detidos e vários deles, aliás, estão exilados também em Madrid. Ou seja, é uma ameaça real e é uma ameaça real que afeta várias pessoas. É claro que este risco se aplica também, eu penso que é um medo fundado em relação a María Corina Machado, também, no futuro.

María Corina Machado disse que permaneceria na Venezuela e que ia continuar a lutar. Considera que pode estar em risco e também pode, eventualmente, ter de sair do país?
Eu penso que pessoas como Edmundo González, María Corina Machado e outros, antes deles, enfrentam uma decisão muito difícil, a nível pessoal e a nível político, que é de enfrentar um sistema de justiça que não é independente e, portanto, não há uma igualdade se eles realmente se apresentarem, perante o Ministério Público e os tribunais, ou de saírem do país. É uma decisão muito difícil para estas pessoas e são, claramente, decisões que representam violações dos direitos de participação na vida política destas pessoas. Portanto, eu penso que, em relação a María Corina Machado, infelizmente há um risco bastante real de o mesmo se passar relativamente a ela, ou seja, de um mandado de detenção ser emitido, até porque o procurador-geral já tinha anunciado uma investigação contra ela. E, portanto, é, talvez, mais uma forma de debilitar e, de uma forma bastante grave, debilitar a oposição e a capacidade da oposição continuar a lutar.

As estratégias usadas por Maduro para controlar opositores: “O mais comum são serem seguidos pelos serviços de inteligência”

Como é que, por exemplo, o regime controla os opositores? Existe um mecanismo de vigilância? E depois como é que as pessoas são detidas? Qual é o modus operandi das forças de segurança?
Temos visto algumas estratégias que estão a ser aplicadas agora de uma forma talvez mais frequente. Têm a ver com as denúncias feitas por outras pessoas, que podem ser vizinhos ou outros cidadãos comuns. E isto foi parte de uma estratégia que é pública do governo. O governo criou, aliás, uma aplicação, o VenApp, que era precisamente para pedir aos cidadãos comuns para denunciar outros que estivessem contra os resultados anunciados pelas autoridades eleitorais. E que, nesse sentido, estariam a querer atacar o governo atual e a ordem pública e o Estado. Essa é uma das estratégias que… Não é que não existisse já antes, essa denúncia de particulares, mas agora foi anunciada, é algo público, é algo admitido pelas autoridades.

Passa a ser quase oficial, deixa de ter essa conotação mais escondida?
Exatamente. O que também já comentámos em vários dos nossos relatórios é que certas pessoas — e aqui já estou a falar de certas pessoas com um perfil público, membros da oposição ou ativistas sociais e de direitos humanos — dão conta de que estão a ser seguidas por carros, muitas vezes sem matrícula. Temos documentado que isto tem acontecido em casos em que depois as pessoas são efetivamente detidas, normalmente por membros dos serviços de inteligência.

"Pensamos que vai ser agora, nas próximas semanas e meses, que vamos começar a saber mais sobre aquilo que se tem estado a passar nesses centros de detenção. Nomeadamente possíveis maus-tratos ou formas de tortura, incluindo violência sexual, que vimos no passado." 

Pelo SEBIN [Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional]?
O SEBIN ou o DGCIM, dependendo se são civis ou se são militares. A própria atuação do DGCIM, que é a Direção-Geral de Contrainteligência Militar, faz este tipo de seguimento às “pessoas de interesse”. [São] pessoas que se expressam publicamente contra o governo ou então que [sobre as quais] há informação de que poderiam estar de qualquer forma envolvidos ou serem simpatizantes de algumas iniciativas para subverter o governo atual. E, portanto, eles fazem este tipo de ações de seguimento, não só no país como também fora. Mas, dentro da Venezuela, o mais comum são o serem seguidos pelos serviços de inteligência, sobretudo o SEBIN, para pessoas com um perfil conhecido. Hoje em dia estamos a ver números altíssimos de detenções de cidadãos comuns, que simplesmente escreveram algo nas suas redes sociais a discordar dos resultados anunciados pelo Conselho Nacional Eleitoral, por exemplo. O modus operandi que temos visto também muito recentemente — e há vídeos disto — é que as forças de segurança do Estado (e aqui temos casos em que esteve envolvido o SEBIN, mas também a Polícia Nacional Bolivariana) vão às casas das pessoas porque viram um vídeo ou alguma declaração nas redes sociais por parte de um membro daquela família que, lá está, falou sobre os resultados das eleições e a falta de transparência. E levam as pessoas detidas. Também houve vários casos relatados de pessoas que, simplesmente porque foram membros das mesas de voto e que, portanto, são militantes ou simpatizantes de partidos de oposição, foram detidas nas suas casas e levadas para centros de detenção, onde ainda continuam.

E a Missão do Conselho Direitos Humanos tem alguma ideia de como são as condições de detenção dessas pessoas? Para onde é que as pessoas são levadas?
Temos alguma informação sobre onde estão detidas estas pessoas, mas não podemos dizer que sabemos onde estão detidas todas. Agora, o que tem sido muito complicado é que não lhes tem sido permitido estar em contacto com advogados ou com as ONG que prestam este tipo de assistência jurídica e, em muitos casos, com os próprios familiares. Muita dessa informação sobre as condições de detenção e sobre o tratamento que lhes tem sido dado — não sabemos. Pensamos que vai ser agora, nas próximas semanas e meses, que vamos começar a saber mais sobre aquilo que se tem estado a passar nesses centros de detenção. Nomeadamente possíveis maus-tratos ou formas de tortura, incluindo violência sexual, que vimos no passado. Há já algumas alegações, mas esse tipo de informação só vai ser possível chegar a ela quando os advogados privados ou ONG conseguirem ter acesso. Ou nós mesmos, através, por exemplo, de pessoas que entretanto são libertadas e que consigam falar com a nossa missão. Há muito que não sabemos ainda. Há outras coisas que sabemos, os centros de detenção que já comentámos, como o do SEBIN, etc. E aí sabemos que há várias preocupações, também em relação às condições de detenção, mesmo a nível de acesso à comida, itens de higiene… E uma das coisas realmente muito preocupantes é a falta de acesso aos familiares ou a demora em permitir esse acesso.

Como no helicoide, uma das prisões do SEBIN.
Sim, exatamente. Em Caracas é onde várias das pessoas com este perfil, que são vistas como opositoras ao governo, estão detidas. Pessoas com um perfil mais público, mais conhecido.

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O helicoide, prisão dos serviços secretos SEBIN, onde há relatos de maus-tratos e tortura

AFP via Getty Images

As condições são bastante más?
Sim, as condições são más. No passado, documentámos vários casos em que foram usados métodos de tortura e outros tipos de maus-tratos. Nesse centro de detenção em particular, o helicoide, ainda hoje o que está a acontecer é que os familiares das pessoas que são detidas vão procurar informação sobre elas e não lhes é dada a informação. Ficam sem saber se a pessoa está ali realmente, se está bem, se não está bem… Isto acontece às vezes durante alguns dias, outras vezes durante algumas semanas. E, portanto, as pessoas acabam por não ter a possibilidade de comunicar com os suas familiares e advogados. E ao não lhes ser permitida essa comunicação, ficam também muito mais vulneráveis a qualquer tipo de maus-tratos, porque não têm como denunciar. Espero obter mais informações sobre onde estão essas pessoas.

A “repressão não vai diminuir” na Venezuela e as sanções internacionais

A Missão espera que nos próximos tempos a situação e o nível de repressão vá diminuir na Venezuela ou está dependente de vários fatores?
Penso que está dependente de vários fatores, nomeadamente da pressão internacional que tem que continuar a ser feita. Penso que deve ser intensificada. Porque o nível de repressão e os vários mecanismos de repressão que têm sido utilizados nas últimas semanas fazem-nos crer que a repressão não vai diminuir. Se há algo que vimos nos meses antes das eleições e depois das eleições, [é que] a repressão foi diminuída e depois houve uma escalada clara, muito repentina e violenta, depois das eleições. Nada neste momento nos indica que esta repressão e estas estratégias de silenciar qualquer voz dissidente ou crítica vão abrandar. Pelo contrário, e isso é verdadeiramente preocupante. Porque cada dia estamos a ter notícias de mais uma forma de limitar não só a liberdade de expressão, mas mesmo direitos fundamentais como o direito à vida, à integridade física, enfim. Uma das últimas notícias que recebemos foi o mandado de detenção contra [o candidato presidencial da oposição] Edmundo González. Infelizmente não nos surpreende, porque já estamos a ver uma escalada realmente muito preocupante. E, por isso, nada neste momento indica que haja um abrandamento nessa situação. Por isso mesmo é que é importantíssimo que se continue a denunciar aquilo que se está a passar na Venezuela e a não normalizar. Que haja indignação e pressão a nível internacional também, de vários estados e dos organismos internacionais.

Perante tudo isto, considera que os acordos de Barbados falharam? Porque a situação está outra vez, como descreveu, pior.
Falharam e falharam de uma forma grave. Vários dos pontos-chave desses acordos não foram respeitados pelo Estado e não o foram mesmo antes da realização das eleições. Relembro que um dos pontos, por exemplo, era permitir a observação eleitoral e depois sabemos que, por exemplo, a Missão de observação eleitoral da União Europeia e de outros observadores que tentaram entrar não foram permitidos. Esse era um dos pontos. O outro era que, efetivamente, deveria haver uma liberdade de escolha dos candidatos. Isso não aconteceu. Não só foi confirmado que María Corina Machado não se podia candidatar às presidenciais — relembro que, com base numa decisão a que ela própria nunca teve acesso —, [como] a sua substituta não se pôde registar. E depois foi com base na pressão internacional à altura, porque nesse momento o Brasil e a Colômbia pronunciaram-se, que abriram uma exceção no prazo para inscrição. E foi aí que Edmundo Gonzalez conseguiu inscrever-se como candidato. Mas já era a terceira pessoa, a terceira opção da plataforma unitária. Temos outras pessoas a quem também não foi permitido anteriormente serem candidatos. Não é só a Maria Corina Machado. Henrique Capriles é outro que queria ser candidato e não o pôde ser. Várias pessoas têm sido objeto destas decisões, que consideramos também arbitrárias, e alguns deles estão no exílio, até porque foram detidos [antes]. E é bom não esquecer também todos esses casos. Temos Leopoldo López, Antonio Ledezma e outros que estão no exílio. Claro, Juan Guaidó também. Porque não só não lhes foi permitido continuarem a participar na vida política, como também foram detidos ou tinham mandados de detenção contra eles. E saíram do país. É bom não esquecer tudo isto. Já existe um precedente, não aconteceu só depois das eleições.

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Maria Corina Machado, líder da oposição que foi impedida de concorrer a eleições

AFP via Getty Images

Já falou dos direitos políticos, que são poucos na Venezuela. Também existe um problema económico. Isso piora a situação? As Nações Unidas relatam condições muito difíceis de fome…
Bom, sobre o aspeto económico e mesmo dos direitos sociais e culturais, não me posso pronunciar muito.

Porquê?
Porque como esses temas não fazem parte do nosso mandato de Missão. Não temos feito o mesmo nível de análise e de reflexão sobre esses temas. É claro que, como qualquer outro observador da situação da Venezuela, sabemos que a situação económica agrava a situação da população em geral, e claro, da população mais desfavorecida, como é óbvio. Mas não posso entrar realmente em mais detalhes, não posso dar muito mais informação do que aquela que conhecemos através de relatórios de outras entidades. Não lhe posso dizer muito mais.

Disse que é importante a comunidade internacional estar atenta. De que forma é que pode, na área dos direitos humanos, exercer pressão sobre o regime de Nicolás Maduro?
Tem de se usar diferentes estratégias em paralelo. Acho que é importante que países que estejam mais próximos em termos de relações diplomáticas com a Venezuela continuem a usar os espaços de diálogo que possam ter. Esses países mais próximos podem ser, por exemplo, o Brasil, a Colômbia… E o México, embora neste momento estejamos numa fase de transição do governo no México. Mas ainda assim é um país com grande importância na região e são esses os três países que, diria, têm alguma influência sobre a Venezuela. Acho que é muito importante que esses países usem bem essa possível influência que ainda têm sobre as autoridades venezuelanas. Acho fundamental que se pronunciem e que sejam realmente guiados por uma preocupação pelos valores democráticos e pelos direitos humanos. Porque, na verdade, o que se passa hoje na Venezuela vai muito mais além de qualquer posição ideológica. É realmente uma questão grave de direitos humanos e que já é há vários anos uma questão grave também em termos humanitários. Mas penso que esses países que têm um papel fundamental têm que ser muito cuidadosos com [a forma como] usam o poder e a influência que têm e tenho esperança que o façam de uma forma que possa realmente ajudar a que os direitos humanos e a democracia estejam no centro da discussão e que as autoridades parar o tipo de repressão que está a acontecer hoje em dia.

Acha que não fizeram até o momento? Por exemplo, o governo do Brasil e da Colômbia emitiram uma nota a condenar o mandado de detenção a Edmundo González. Acha que não tem havido pressão suficiente do Brasil e da Colômbia e também do México?
Acho que tem havido declarações importantes destes países. Acho que a situação está de tal maneira grave que precisamos de posições assertivas claras e, portanto, diria que espero ainda mais declarações desses países. Mas penso que sim, que têm já emitido algumas opiniões bastante importantes e que têm sido um peso importante. Só que, como temos visto, não têm impedido certas ações e ações graves, nomeadamente esta ordem de detenção contra Edmundo González. Portanto, o que é preocupante aqui é que, apesar das posições que têm adotado esses países, ainda assim vemos estas atitudes políticas graves e preocupantes por parte do governo. Para além disso, acho que é muito importante que o resto dos países, tanto da União Europeia como países da região, falem realmente com uma voz unida e, mais uma vez, clara e assertiva. Também tem acontecido… Mas penso que é preciso que continue a ser o caso, precisamos que não se esqueça ou se normalize esta situação na Venezuela. Porque, como digo, muito disto que se está a passar hoje já se estava a passar antes e há problemas. Há dois anos não se estava a prestar a devida atenção àquilo que se estava a passar em termos de violações de direitos humanos. Portanto, é importante que não se permita que questões ideológicas ou políticas se sobreponham às preocupações dos direitos humanos e da democracia.

"Na prática, que quando temos enviado pedidos de informação, as autoridades não nos têm respondido. O que, honestamente, é algo que é negativo para elas, porque acabamos por não incluir nos nossos relatórios a informação que poderia dar aqui um contraditório. E não temos acesso a essa informação porque simplesmente não respondem aos nossos pedidos de informação e às nossas cartas."

Acha que esta fuga de Edmundo González para Espanha pode provocar uma reação mais forte da comunidade internacional contra o regime de Nicolás Maduro? E espera que isso aconteça?
Eu penso que sim e o que espero é que, realmente também não se vá normalizando e não se vá aceitando as várias violações de direitos fundamentais de várias pessoas, incluindo a de Edmundo González. Eu penso que já tem havido várias posturas bastante claras e bastante fortes de vários membros da comunidade internacional que, infelizmente, até ao momento, não têm levado a uma mudança da prática e da postura do governo da Venezuela. E isso, sim, é preocupante, mas eu acho que aquilo que há a fazer, que é necessário fazer, é que continue a haver esta indignação, esta denúncia daquilo que são violações graves de direitos fundamentais destes dirigentes políticos, mas de muitos outros cidadãos da Venezuela. 

“Autoridades venezuelanas não têm reconhecido a legitimidade da Missão”, que deve ser renovada

Tendo em conta tudo o que descreveu, a Missão [da ONU] encontra dificuldades para fazer o trabalho que faz? Como é que o regime lida com a Missão?
Desde a criação da Missão em 2019 que as autoridades venezuelanas não têm reconhecido a legitimidade da Missão. Aliás, a Venezuela era, nessa altura, membro do Conselho de Direitos Humanos e ainda assim não reconhecia a legitimidade de um mecanismo que é criado pelo próprio Conselho. Enfim, não é algo único da Venezuela. Há vários países que também se veem nessa situação em que são criadas estas missões de investigação e o próprio país. Ao rejeitarem esse escrutínio internacional, acabam por argumentar que são mecanismos que não são legítimos. Mas é óbvio que isto vai contra aquilo que foi adotado numa resolução do Conselho de Direitos Humanos, que cria não só a Missão, mas que também instrui as autoridades a colaborar com a nossa Missão. Isto quer dizer, na prática, que quando temos enviado pedidos de informação, as autoridades não nos têm respondido. O que, honestamente, é algo que é negativo para elas, porque acabamos por não incluir nos nossos relatórios a informação que poderia dar aqui um contraditório. E não temos acesso a essa informação porque simplesmente não respondem aos nossos pedidos de informação e às nossas cartas. Por outro lado, não temos autorização para entrar no país, não podemos realizar as nossas investigações dentro do território da Venezuela. Mas isso não nos impede de ter acesso a fontes dentro da Venezuela, pessoas com quem falamos de forma remota, e também temos acesso a vários documentos oficiais e vários documentos judiciais que nos são partilhados. Portanto, temos acesso a muita informação que vem de dentro do país, mesmo não podendo entrar. Outros obstáculos têm a ver, sobretudo, com o medo das pessoas que estão dentro da Venezuela, de falar sobre algumas das violações de que são vítimas ou os seus familiares. E este medo foi variando ao longo dos anos em que temos realizado as nossas investigações. Vemos que vai dependendo do nível de repressão que existe no país. E neste momento há um nível de medo em falar com os nossos investigadores, assim como com outros organismos internacionais, que não tínhamos visto, não a este nível. Hoje em dia estamos a ter mais dificuldade em documentar algum tipo de ato, por exemplo, relativamente às mortes que ocorreram agora, logo a seguir às eleições. As pessoas têm dito que é porque têm imenso medo que alguém saiba. Relembro o que disse há pouco sobre a estratégia do governo de pedir a cidadãos comuns para denunciarem outros que estejam a falar com organismos internacionais, com jornalistas, etc. [Há] este medo geral, que se tem vindo a agravar depois das eleições e por causa desta estratégia de detenções em massa, de ameaças, de desaparecimentos e também de declarações públicas feitas pelo próprio Presidente e pelo Procurador-Geral da República. Que põem realmente as pessoas com muito medo de falar sobre aquilo que lhes está a acontecer a elas e às famílias. Isto realmente é um obstáculo muito grande que estamos a enfrentar.

E até o próprio regime critica muitas vezes os nossos relatórios. Dizem que são “folhetins de propaganda política”. Há várias críticas mesmo por parte do regime à vossa Missão. O que, tendo em conta o que descreveu, não é propriamente surpreendente…
Sim, exatamente. Há várias críticas e não é só à nossa Missão, na verdade. É também ao trabalho do Alto-Comissário para as Nações Unidas, são críticas do presidente Maduro até contra o próprio secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres. Críticas a esse escrutínio internacional, por isso não é realmente surpreendente. Como estava a dizer, [a Venezuela] não é a única a nível do Conselho Direitos Humanos… Outros países adotam essa mesma postura perante as críticas e os mecanismos de direitos humanos. Mas obviamente é muito preocupante, porque se são países que pertencem a estes sistemas de proteção internacionais e regionais de direitos humanos — e aqui [quando falamos em] regionais estamos a referir-nos ao sistema inter-americano de direitos humanos — e não fazem caso ou até criticam a existência destes mecanismos, realmente é preocupante. Porque, na verdade, ratificaram os tratados de direitos humanos a que fazemos referência, não estão a respeitá-los e fazem isso de uma forma aberta e sem qualquer hesitação.

Qual é neste momento o estado da Missão? Vai ser renovada?
O nosso mandato agora dura até ao final de setembro deste ano e depois poderá haver uma proposta de resolução para a renovação do mandato da Missão, que seria discutida no início de outubro. E aí os membros do Conselho de Direitos Humanos decidirão se vão renovar o mandato ou não.

E tendo em conta a situação, provavelmente deverá ser renovada, ainda por cima depois das eleições.
Sim, penso que como há uma grande preocupação internacional pela situação, é uma possibilidade. É claro que depois depende sempre da composição atual do Conselho de Direitos Humanos, há várias posições dentro do Conselho, que está bastante dividido em vários temas. Não só da Venezuela. Mas sim, claramente há uma preocupação grande por parte de vários países e de várias zonas geográficas em relação à Venezuela. E também pelo facto de que as autoridades venezuelanas expulsaram a equipa do Alto-Comissariado para os Direitos Humanos. Isso foi este ano. Eles tinham presença no território venezuelano, tinham um escritório lá e já não o têm. Penso que isso também é um fator a ter em conta em termos de pensar uma renovação do mandato da Missão.

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