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"Mataram o Pianista". Um filme para o talento e a morte misteriosa de Tenório Jr.

O filme de animação (de coprodução portuguesa), recorda a vida e a trágica morte de um músico raro e de uma América Latina caótica. Estreia-se esta semana. Falámos com o realizador Fernando Trueba.

O samba canção a levar até à rádio e à televisão os ritmos suados dos exorcismos físicos tradicionalmente brasileiros. A bossa nova a conquistar novos públicos, a ultrapassar fronteiras e a seduzir americanos (e, claro, o resto do mundo). E os tropicalistas, a baralhar tudo, a transformar o Brasil num santuário psicodélico e a criar heróis e divas de admiração intemporal. Pelo meio desta efervescente e intensa época, um virtuoso pianista brasileiro, Francisco Tenório Jr., que morreu em Buenos Aires, numa Argentina tremida e deprimida por ditaduras. Estávamos em 1976 e Tenório Jr., com 35 anos, estava a acompanhar Toquinho e Vinicius de Moares em palco.

Mataram o Pianista, longa-metragem de animação que marca o regresso da antiga parceria entre Fernando Trueba e Javier Mariscal depois de Chico e Rita, estreia-se esta quinta-feira em Portugal. Passou pela Monstra e pelo festival de San Sebastian. Uma coprodução portuguesa que relata a grande (e fictícia) investigação de um jornalista norte-americano, com a voz de Jeff Goldblum, e contém uma série de entrevistas de músicos, amigos e família de Tenório Jr. Até hoje, nunca foi possível encontrar o corpo nem houve direito a indemnização. “Quis que as pessoas de alguma forma conhecessem este grande artista em vida. E isso só podia acontecer através da animação”, conta ao Observador Fernando Trueba. A isto acresce uma banda sonora de referência.

Jeff Harris, jornalista reputado do New York Times, acaba de lançar um livro, em 2009, sobre a bossa nova. A voz de Jeff, que é de outro Jeff — Goldblum — conhecido, entre outros episódios clássicos do cinema, por ser A Mosca ou por andar a caçar dinossauros em Parque Jurássico, vai de malas aviadas até ao Rio de Janeiro para investigar a história de Tenório Jr., um talentoso pianista que morreu sem deixar rasto. Entrevista, com a ajuda do amigo João (interpretado pelo famoso Toni Ramos) Gilberto Gil, Chico Buarque, Bud Shank, grande saxofonista norte-americano, Susana de Moraes, mulher de Vinicius, ou Milena, namorada de Tenório Jr. As vozes que ouvimos são reais, de carne e osso, que Fernado Trueba e a sua equipa entrevistaram de 2005 a 2007.

Francisco Tenório Jr. morreu em 1976 aos 34 anos

Em Mataram o Pianista, toda a história de Tenório Jr., que foi comprar medicamentos para a namorada e nunca mais voltou, é contada ao detalhe, com todas as dúvidas e surpresas dos protagonistas. O músico saía do hotel, deixava um bilhete a avisar que voltaria em breve, e só dez anos depois um primeiro relato de um ex-integrante dos serviços secretos argentinos afirmava que o pianista tinha sido preso pela polícia militar. Tinha 34 anos, quatro filhos e um quinto a caminho. Entre investigações e outros depoimentos, ao longo dos anos, seria confirmada a morte do músico às mãos de militares do regime. Tenório, que não manifestava preocupações ou inclinações políticas, tinha outras prioridades.

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“Um sonho que não deu certo”, diz Milena, a certa altura, ao relembrar a morte do companheiro. “Não suportava que a música fosse mal tocada. Parecia um homem muito zen, sério, mas com grande sentido de humor. Toda a gente se ria com ele. Era culto e inteligente. Durante todo o tempo em que estive a fazer este filme, consegui desenvolver empatia pelo Tenório Jr. O jornalista que surge a fazer a sua investigação sobre a bossa nova deu os passos que eu dei. Teve os pensamentos que eu tive. Senti o Tenório Jr. como se fosse um amigo com quem podia ir beber uma cerveja. Um amigo querido que admirava”, confessou Trueba.

Fernando Trueba, um melómano à antiga, com filmes como Calle 54 (2000) ou O Milagre do Candeal (2004), prova viva de uma obsessão musical, foi muito influenciado pelo sogro, um amigo que viveu uma grande temporada no Brasil. Em pequeno, apaixonou-se pelo cinema novo daquele país. Ao crescer, foi influenciado pelo jazz — é daí que nasce Chico e Rita, homenagem a Bebo Valdés, compositor e pianista cubano — mas também por Tom Jobim, tendo mais acesso aos discos americanos do artista. De lá para Espanha, o sogro trouxe Construção, de Chico Buarque, que se ouvia a toda a hora. “Tornei-me obcecado por aquela discografia”, conta. O realizador espanhol sabia que não queria fazer “um filme como se fosse Disney” e que, ao lado do parceiro profissional Javier Mariscal (mas também de outro animador reconhecido, Marcelo Quintanilha), só poderia dar vida a Tenório Jr. através de diferentes estilos e formas de animação. “Este também é um filme sobre memória. Queríamos que o público também trabalhasse.” Nesta conversa, começámos pela parceria ibérica.

[trailer oficial do filme “Mataram o Pianista”, que se estreia esta quinta-feira em Portugal:]

Portugal e Espanha, juntos na animação. É uma relação que faz sentido?
Correu muito bem. Os animadores portugueses fizeram coisas muito bonitas, ficámos  contentes. E eu, que não costumo meter-me muito nos detalhes técnicos, desta vez fiquei curioso com alguns. Diziam-me que a razão estava nos animadores portugueses.

A sua carreira tem estado muito ligado à música, com especial enfoque no jazz. O que não conhecia sobre a bossa nova?
Já tinha algum conhecimento. Sempre gostei muito de jazz e de música instrumental. Conheço a música de Moacir Santos, Jobim, Pixinguinha. Sigo há bastante tempo e com muito interesse a música brasileira, antes e depois da bossa nova. Tenório Jr. é uma personagem contemporânea desse estilo, participa um pouco no género mas tem a sua própria personalidade. Claro que tem relação com alguns desses músicos, e há quem até fosse da sua geração. Portanto, sim, conhecia bem. Mas quando o descobri e à sua música, percebi que era muito rico e profundo. Era um músico rigoroso, sofisticado e elegante. Cruzava-se com todos os caminhos da música antiga do Brasil que, à sua época, estava a influenciar toda uma geração. E também estabelecia ligações com o jazz norte-americano, bem como com outros estilos da Europa. Até com Cuba. A arte não tem fronteiras. Está-se sempre a misturar, a enriquecer. Não pede passaporte a ninguém.

Descreve Tenório Jr. como um talento nato, alguém que estava à frente do seu tempo.
Conseguimos recuperar algumas partituras e percebemos que era, de facto, avançado para o seu tempo.

Mas que homem era este?
Através dos testemunhos que fomos juntando, percebe-se que tinha muito, muito rigor. Era quase excêntrico. Entrava num bar e se a música estava má, de acordo com o gosto dele, ia-se embora. Tinha fama de desaparecer. Não suportava que a música fosse mal tocada. Parecia um homem muito zen, sério, mas com grande sentido de humor. Toda a gente se ria com ele. Era culto e inteligente. Durante todo o tempo em que estive fazer este filme, consegui desenvolver empatia pelo Tenório Jr.. O jornalista que surge a fazer a investigação sobre a bossa nova deu os passos que eu dei. Teve os pensamentos que tive. Senti o Tenório Jr. como se fosse um amigo com quem podia ir beber uma cerveja. Um amigo querido que admirava.

Alguma vez alguém investigou Tenório Jr. de forma aprofundada o que lhe aconteceu?
Houve gente que o fez, sim. O Rogério Lima, professor universitário no Brasil, fez um documentário, Balada para Tenório Jr. de vinte minutos, sobre o seu desaparecimento. Há duas versões de entrevistas sobre o que lhe aconteceu. Houve, sim, quem tentasse chegar às causas. Um jornalista da Playboy foi até à Argentina investigar a morte dele, mas um militar ameaçou-o. Disse-lhe que ia acontecer o mesmo. Ele desaparece durante a ditadura militar brasileira e vai para o início de outra. Esteve uns dias na Escola de Mecânica da Armada, um dos grandes centros de tortura da Argentina, sofre um enfarte por causa da tortura. Quando recebem a informação de Brasília de que o Tenório Jr. não tem nenhuma inclinação política, decidem matá-lo. Porque, caso contrário, iria saber-se que o tinham torturado. Nos dias em que ele está detido, é quando acontece o golpe militar em 1976. Na manhã em que há uma entrevista com o Vinicius de Moraes, em que o músico pede ajuda para o encontrar, dá-se o golpe no país. Era a peça que nos faltava. Esse vídeo de 16 milímetros acaba no Brasil. Sinceramente, não sei como nem porquê. Saltaram-nos as lágrimas quando a vimos. Vemos a desolação dele. A desolação…

Foi o único pedaço televisivo que viu onde se fala de Tenório?
O único do Vinicius. Penso que haverá mais. Existe um arquivo de dez minutos da TV Cultura, onde Tenório Jr. fala e toca durante dez minutos. Era um programa dedicado a músicos. É o único de imagem em movimento. E muito arquivo de som.

Usou-os?
Recriámos, não tinham qualidade suficiente para ser usados. Mas os excertos do Vinicius, usámos. Fizemos quarenta e tal entrevistas. No Brasil, Argentina e Estados Unidos da América. Fizemo-las entre 2005 e 2007. Pensei que ia fazer um documentário só que, quando entrei no mundo da animação com o Mariscal e o filme Chico e Rita, achei que a melhor forma de contar esta história era através da animação. Se escolhesse o documentário, estaria a fazer mais uma obra sobre alguém que desapareceu, com entrevistas a dizer bem e mal dele. Não queria fazer algo sobre um morto. O meu primeiro dever neste filme foi para com ele. Nem sequer foi com o público. O Bebo Valdés, que inspirou a história do Chico e Rita, abraçou-me e agradeceu. Tinha mais de 80 anos. Disse-lhe que eu é que agradecia, mas ele fez questão de me dizer que, mesmo depois de morto, as pessoas iriam ouvir a sua música através deste filme. Isso impressionou-me. Portanto, escolhi fazer igual com o Tenório Jr. Queria que as pessoas o vissem vivo. Com os filhos em casa. A gravar o primeiro disco. Vivo a tocar. É isto que a animação permite. Com atores, não. Porque nunca era ele.

Imagino que também houve um trabalho intenso para a parte estética do Tenório Jr.
Fizemos muita pesquisa por materiais fotográficos. Dos amigos à família. Imagens dele em todas as cidades. Até se parece um pouco contigo.

Por essa não esperava…
É verdade.

A animação demora muito tempo, já se sabe. Como correu a montagem financeira? Que outros problemas teve?
Não tivemos. Não houve muito dinheiro. mas também não queríamos fazer algo convencional. Queríamos graus diferentes da animação, algo mais limitado. Temos duas partes: a mais contemporânea, do jornalista que faz a sua investigação, um alter-ego meu. E a visualização do que as pessoas contam. É um filme sobre a memória também. Para dar forma a todos estes relatos que falam do Tenório Jr, tentámos encontrar diferentes estilos, paleta de cores e texturas. Cada história é como um filme dentro do filme. Como se te metesses na cabeça de cada um. Foi um grande desafio. Não queríamos mais um projeto da Disney. Queríamos que o público também trabalhasse. Fizesse a sua parte. Acho que o conseguimos.

Esteve treze anos sem trabalhar com o Marcelo Quintanilha.
O Marcelo trabalhou no Chico e Rita e neste. Gosto muito dos seus comics, leio-os, estão em minha casa. Quero a versão portuguesa. Ele é mesmo bom. É bom trabalhar com ele. Um homem sério e inteligente. Funcionou como braço direito do Mariscal, chega até a fazer voz para uma personagem no filme. Foi uma boa fonte para todos os elementos brasileiros. Um “chope” [uma cerveja] não é o mesmo noutros países, por exemplo. Foi importante ter essa atenção e critério. O Marcelo fez vários detalhes do Rio de Janeiro, por exemplo, tinha uma grande exatidão, até exagerada. É possível reconhecer imensos lugares no Brasil no filme.

Como começa a sua relação com o país?
Arranca quando era jovem e via filmes do cinema novo, como aconteceu com António das Mortes, de Glauber Rocha. Nessa época, começo a ouvir discos do António Carlos Jobim. Curiosamente, entre os primeiros discos que começo a ouvir estão os americanos dele. Talvez só saíssem esses com mais regularidade em Espanha. Toca John Carter, mistura jazz, música clássica e brasileira. Entretanto, conheço o pai da minha mulher, grande amigo meu, que era ilustrador. Emigrou para o Brasil vindo de Espanha. Na casa dele, o Vinicius era Sócrates. O disco do Chico Buarque, o Construção, ouvia-se diariamente. Naná Vasconcelos também, por exemplo. Ou o Gato Barbieri, saxofonista argentino, que também tinha uma relação com o Brasil. Uma época muito bonita. Doze anos depois voltaram com toda essa cultura. É aí que me apaixono. Como sou obsessivo, comecei a ouvir toda a discografia do país. Toda a gente.

[“Embalo”, de Tenório Jr., único álbum que o artista brasileiro editou a solo, em 1964, para ouvir na íntegra no Spotify:]

Alguma vez ouviu música de intervenção portuguesa?
Não muito. Quando se dá o 25 de Abril, estávamos em Espanha com o Franco. O Grândola Vila Morena era um hino para os democratas. Gostava do jazz, do Bernardo Sassetti, que morreu novo, aí conheço mais nomes portugueses.

Temos um pianista português, o Filipe Melo, que tem feito muitos comics com um ilustrador, o Juan Cavia. E fizeram A Balada de Sophie, que é precisamente sobre um pianista.
Que engraçado. A ver se o encontro.

E porquê escolher Portugal para trabalhar?
Achei que íamos ter coprodução com Brasil e Argentina. Não aconteceu. Fomos a um festival de animação e o Humberto Santana, produtor português de animação, abordou-nos. Mostrou uma grande paixão com o nosso projeto desde o início. Juntaram-se uns produtores holandeses e depois França também entrou no Mataram o Pianista. Houve uma produtora no Brasil que se juntou, mas teve de sair por causa dos cortes orçamentais na cultura feitos por Jair Bolsonaro.

Já esteve em Lisboa?
Claro. Já fiz dois filmes em Portugal. Qualquer desculpa é uma boa desculpa para ir até Lisboa. Tenho muito boas recordações. É um país que quero muito. Na minha cabeceira estão Eça de Queirós e Fernando Pessoa.

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