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Medicamento para diabetes também previne enfartes e AVC (e ajuda a perder peso). Mas corrida ao Ozempic compromete tratamento de diabéticos

Médicos consideram "um marco importante" a redução de 20% nos eventos cardiovasculares e "significativa" a perda de 17% do peso conseguida com Wegovy, uma variação do Ozempic. Vendas dispararam.

GLP-1. A sigla pode parecer estranha e a esmagadora maioria dos portugueses nunca terá ouvido falar dela. Trata-se do nome de uma hormona, produzida no trato intestinal, que estimula a produção de insulina — essencial ao corpo humano, no controlo dos níveis da glicose. É quando essa hormona falta e a produção de insulina se começa a ressentir (levando ao desenvolvimento da diabetes) que pode entrar em cena o semaglutido, uma substância — com apenas seis anos de existência — capaz a imitar os efeitos da GLP-1 e controlar os níveis da glicose em pessoas com diabetes tipo 2.

No entanto, depressa médicos e doentes se aperceberam de que, para além de ser um poderoso antidiabético, o semaglutido tinha outra grande vantagem: era (extraordinariamente) eficaz na perda de peso e na prevenção de eventos cardiovasculares, como o AVC e o enfarte do miocárdio. A utilização off label (ou seja, para tratar uma patologia não incluída nas indicações oficiais) do medicamento generalizou-se sobretudo entre pessoas com excesso de peso, o que levou à rutura de stock do Ozempic (nome comercial do semaglutido) em vários países, nomeadamente em Portugal. As dificuldades de acesso medicamento, depois do aumento exponencial da procura de Ozempic por pessoas com excesso de peso, comprometem o tratamento de diabéticos.

“Histórico”. Wegovy reduz em 20% risco de eventos cardiovasculares

Entretanto, a meio do ano passado, a farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk, que produz o Ozempic, lançou um outro fármaco (cuja substância ativa é também o semaglutido) destinado especificamente à perda de peso, o Wegovy, que ainda não está a ser comercializado em Portugal. Este novo medicamento, também em formato de caneta injetável, com uma dose de 2,4 miligramas (superior à de Ozempic), tem a capacidade de diminuir o risco de eventos cardiovasculares em 20%, um feito recebido com entusiasmo pela comunidade médica e que os especialistas consideram “histórico” e um “marco” no tratamento da obesidade.

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Wegovy. "Pela 1ª vez, comprovou-se que um fármaco para o tratamento da obesidade reduz os eventos cardiovasculares", diz a Presidente da Sociedade de Endocrinologia, Paula Freitas

“Já sabíamos que os agonistas dos recetores de GLP-1 [onde se incluiu o semaglutido] reduziam não só o peso mas também a pressão arterial, o colesterol e os triglicéridos. Mas agora sabemos que reduzem também o risco cardiovascular, na ordem dos 20%. É um marco importante”, realça ao Observador a Presidente da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo.

Paula Freitas refere-se aos resultados do estudo SELECT, que acompanhou 17 mil doentes com obesidade durante cinco anos, pessoas que já tinham sofrido eventos cardiovasculares no passado, sendo, por isso, considerados doentes de alto risco. O tratamento com uma injeção de Wegovy semanal reduziu os casos de enfarte do miocárdio (vulgo ataque cardíaco), AVC e outros eventos cardiovasculares em 20% em relação ao grupo que foi medicado com placebo.

“É histórico. Pela primeira vez, comprovou-se que um fármaco para o tratamento da obesidade reduz os eventos cardiovasculares”, assinala a endocrinologista do Hospital de São João. Um outro estudo, publicado no final de agosto do ano passado, concluiu que o Wegovy é também eficaz a reduzir os efeitos de uma doença muito comum nos países desenvolvidos: a insuficiência cardíaca — que em Portugal afeta cerca de 300 mil pessoas. A investigação, que incluiu cerca de 500 pessoas, demonstrou que o medicamento reduziu alguns sintomas típicos da insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada (o tipo mais comum da doença), como cansaço, falta de ar ou inchaço dos membros inferiores.

A Food and Drug Administration (FDA, a agência norte-americana que regula os medicamentos) aprovou, a 8 de março, a comercialização do Wegovy para redução do risco de AVC, enfarte e outros problemas cardiovasculares em pessoas obesas ou com excesso de peso, sendo que o fármaco já é comercializado nos EUA desde 2021, mas estava apenas indicado para o tratamento da obesidade. Já na União Europeia, a luz verde da Agência Europeia do Medicamento (EMA) surgiu em 2022, para o uso mais restrito, mas poucos países o comercializam. São apenas 10 em todo o mundo.

A EMA avalia agora a extensão da indicação, de modo a abarcar a redução do risco de doenças cardiovasculares. “O Comité dos Medicamentos para Uso Humano da EMA está atualmente a analisar um pedido de extensão da indicação para o Wegovy [não comercializado em Portugal]”, confirmou a entidade à Lusa, na semana passada, não se comprometendo, no entanto, com um prazo para a conclusão da apreciação do pedido apresentado pela Novo Nordisk, o fabricante. Contactado pela Observador, a farmacêutica admite que “não tem, ao momento, uma data prevista para a disponibilização em Portugal do medicamento”.

Medicamentos para obesidade não são comparticipados, o que dificultará acesso ao Wegovy

Apesar de, para os doentes, a questão estética ser muitas vezes o principal problema trazido pela obesidade, a comunidade médica realça, por outro lado, a relação direta e já amplamente evidenciada entre o excesso de gordura acumulada no organismo (a obesidade) e as doenças cardiovasculares, que ainda são a principal causa de morte no mundo e em Portugal. “O tratamento da obesidade não é só perder peso. Reduzir o peso, a pressão arterial ou o colesterol são outcomes intermédios, mas o objetivo último é prolongar a vida e reduzir as comorbilidades associadas, entre elas as doenças cardiovasculares”, diz a especialista.

O impacto do Wegovy em Portugal (onde dois terços da população tem excesso de peso ou obesidade e onde a cada 15 minutos morre uma pessoa por doença cardiovascular) é, contudo, incerto. Isto porque, ao contrário dos medicamentos para o tratamento da diabetes, as soluções terapêuticas para a obesidade não têm comparticipação do SNS, o que dificulta o tratamento, cujo custo pode ascender às centenas de euros por mês. Enquanto o Ozempic (o fármaco com semaglutido já comercializado em Portugal) custa 120 euros — sendo comparticipado a 90% pelo SNS —, o Wegovy é bem mais caro. No Reino Unido, o custo mensal varia entre as 180 e as 300 libras (cerca de 210 a 350 euros), no Brasil é vendido por 2480 reais (cerca de 450 euros) e nos EUA por 1350 dólares (cerca de 1240 euros). Os outros países que já vendem o Wegovy são a China, a Suíça, Noruega, Alemanha, Japão, Emirados Árabes Unidos e Islândia.

“Momento crucial” na luta contra a obesidade: Reino Unido vai aplicar medicamento usado para a diabetes para a perda de peso

Gostava que houvesse um maior acesso aos fármacos para a obesidade em Portugal e que fossem comparticipados. É muito triste para um médico ter um doente obeso à frente e o doente dizer-me que não tem capacidade económica para se tratar”, lamenta a médica Paula Freitas, que espera que o poder político perceba a importância de comparticipar estes medicamentos.

Vendas de Ozempic dispararam em dois anos

Apesar de não estar indicado para a perda de peso, a prescrição do Ozempic disparou em Portugal no ano passado. Em 2023, foram vendidas 358 mil embalagens, quase seis vezes mais do que em 2021, quando foram comercializados cerca de 62 mil embalagens, segundo dados do Infarmed, enviados ao Observador. O medicamento custa 120 euros e é comparticipado a 90%, o que fez elevar a despesa do SNS com este fármaco para mais de 37 milhões de euros no ano passado, um aumento de mais de 500% em comparação com 2021, quando tinham sido gastos pelo Estado pouco mais de 7,5 milhões de euros.

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Venderam-se mais de 350 mil em Ozempic em 2023 em Portugal, quase seis vezes mais do que em 2021

BELGA MAG/AFP via Getty Images

Embora só esteja indicado para o tratamento da diabetes tipo 2 em adultos, o medicamento tem sido prescrito a pessoas sem diabetes e apenas com diagnóstico de obesidade ou excesso de peso. Uma situação que tem levado, desde 2022, à rutura de stock em várias farmácias portuguesas. Perante o aumento da procura em todo o mundo, a Novo Nordisk admitiu dificuldades no abastecimento ao mercado, situação que a farmacêutica indicou poder vir a ficar resolvida no primeiro trimestre de 2024.

Elevada procura esgota de novo medicamentos para a diabetes nas farmácias

A Novo Nordisk anunciou, em novembro, um investimento de mais de 3 mil milhões de euros na ampliação da fábrica que tem em Kalundborg, na Dinamarca, de forma a poder aumentar a capacidade de produção, nomeadamente no que diz respeito ao Ozempic, o medicamento ‘estrela’, que tem feito a empresa disparar em bolsa. No verão do ano passado, atingiu um valor de mercado de cerca de 385 mil milhões de euros (mais do que o PIB da Dinamarca), chegando mesmo a ocupar o lugar de empresa mais valiosa da Europa, ultrapassando a LVMH (do grupo Louis Vuitton).

Dificuldades no abastecimento mantêm-se

Preocupado com o acesso dos diabéticos ao Ozempic (que tem estado dificultado ou mesmo comprometido com a procura elevada por parte de pessoas obesas), a Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo lançou, em 2022, um alerta aos médicos para que só prescrevessem o medicamento aos doentes com indicação clínica, ou seja, com diabetes. Alerta esse que foi reforçado pelo próprio Infarmed, em outubro do mesmo ano, quando a autoridade nacional do medicamento pediu aos médicos que receitassem o fármaco “em consciência”. Para além disso, e praticamente na mesma altura, o Infarmed sugeriu ao Ministério da Saúde que incluísse um botão aquando da prescrição do Ozempic, em que o médico teria de confirmar que o doente cumpria os critérios de prescrição do fármaco. Se não cumprisse, a receita seria emitida sem comparticipação. No entanto, a introdução desta funcionalidade não impediu a corrida ao medicamento.

“O Ozempic deve ser reservado para os diabéticos e não para doentes com obesidade. Neste momento, há uma dificuldade grande de acesso e, perante a escassez de produto [originada pela compra do fármaco por doentes obesos ou com excesso de peso], o ideal é que os médicos não iniciem novos tratamentos a diabéticos, privilegiando os doentes que já estavam a ser tratados com este fármaco”, realça o endocrinologista João Jácome de Castro, ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo.

Ao Observador, a Novo Nordisk adianta que a procura pelo Ozempic se mantém elevada, “o que origina constrangimentos pontuais de acesso ao medicamento”, situação que a farmacêutica garante estar “a monitorizar em conjunto com as autoridades de saúde”. Ainda assim, a empresa dinamarquesa realça que se encontra “a desenvolver todos os esforços para manter o fornecimento contínuo do mercado, de forma a que haja o menor impacto possível para os doentes em tratamento”.

“As nossas fábricas encontram-se em atividade 24 horas por dia, sete dias por semana. Ao mesmo tempo, duplicámos em 2023 o nosso investimento em 3,6 mil milhões de dólares na expansão da nossa capacidade de produção”, acrescenta a Novo Nordisk.

No terreno, os relatos feitos ao Observador indicam que os problemas de acesso ao Ozempic se mantêm, com as farmácias a não conseguirem responder à procura. As quantidades do medicamento são limitadas e é habitual serem formadas listas de espera para o comprar. Normalmente, quando chega um lote, todas as unidades já se encontram reservadas. Há casos de doentes que não conseguem continuar o tratamento por falta de stock. Ao Observador, fonte oficial da Associação Nacional de Farmácias confirma que se mantém a escassez no abastecimento — com a procura ainda a superar a oferta por larga margem — uma situação que se deverá prolongar durante todo o ano de 2024.

Já o Infarmed confirma o cenário de escassez, sublinhando, em resposta ao Observador, que se “continuam a registar dificuldades de acesso nas farmácias” ao medicamento Ozempic, sobretudo na dose mais pequena, de 0,25 miligramas.

"Há pessoas que perdem mais de 20% do peso, são valores muito importantes, que se associam a um melhor controlo das doenças associadas"
João Jácome de Castro, endocrinologista

O endocrinologista Jácome de Castro lembra que existe uma alternativa ao semaglutido no mercado, embora “não tão eficaz”: o liraglutido, vendido com o nome comercial Saxenda. No segundo semestre deste ano, espera-se, sublinha o médico, que chegue a Portugal um outro medicamento, o tirzepatida, comercializado pela farmacêutica norte-americana Lilly com o nome Mounjaro.

Semaglutido é eficaz a tratar a obesidade. Wegovy permite perder 17% do peso num ano

Não restam dúvidas, no entanto, de que o semaglutido é eficaz no tratamento da obesidade. No caso do Ozempic, na formulação mais fraca, não há dados que permitam aferir a perda média de peso e os especialistas contactados pelo Observador não quiseram avançar um valor concreto, embora seja certo que permite emagrecer. Já em relação ao Wegovy — que, recorde-se, ainda não é comercializado em Portugal —, os estudos mostram uma diminuição de 17% de peso corporal ao longo de 12 meses de tratamento, um resultado que João Jácome de Castro classifica como “muito significativo”.

“Há pessoas que perdem mais de 20% do peso, são valores muito importantes, que se associam a um melhor controlo das doenças associadas — diabetes, hipertensão, doenças osteoarticulares, doenças cardiovasculares — e a uma melhoria da qualidade de vida”, diz o especialista ao Observador, sublinhando a magnitude de perda de peso alcançados com Wegovy, se tivermos em conta que perdas de peso de 5% já se podem traduzir em benefícios relevantes para a saúde.

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