Hollywood é sinónimo de pele bem cuidada, vestidos milionários, maquilhagem, homens e mulheres bem parecidos, dentro e fora dos ecrãs. Melissa Leo, atriz nova-iorquina de 63 anos, parece ter deixado esse glamour há muito tempo. Não condiz com o que é. Aliás, não condiz em nada com o que sempre foi: frontal e sem filtros, a colocar o dedo na ferida quando é preciso. Foi possível encontrá-la em Espinho durante vários dias, num lugar onde se dá bem e ao qual não regressava há um par de anos, já que a faz lembrar dos seus tempos de infância, quando o pai, que abandonou demasiado cedo a família, ia pescar junto à costa em Long Island. Em finais de junho e início de julho, com mais de quarenta anos à frente das câmaras, a também vencedora de um Óscar de Melhor Atriz Secundária no filme The Fighter em 2010, veio encontrar-se com realizadores e dar uma palestra na vigésima edição do Fest – Novos Realizadores, Novo Cinema. “Não sei nada mais que não seja o de viver em liberdade”, disse. Como é que ainda há pessoas assim?
Numa longa conversa com o Observador, não deixou nada por responder. Falou sobre o movimento #MeToo, do qual é profundamente descrente, apesar de acreditar que, hoje em dia, mais mulheres (mas também homens) se podem chegar à frente nas denúncias. Do peso que carrega às costas desde que ganhou o Óscar, não por ter ficado com esse carimbo, mas porque, quatorze anos depois, nunca voltou a atingir aquele patamar, ainda que continue a “sentir-se livre”. E, claro, argumentou estar farta dos Estados Unidos da América, em especial quando o timing puxa sempre à conversa a corrida eleitoral à Casa Branca, que vai opor Donald Trump e Kamala Harris em novembro deste ano. “Estou farta dos EUA desde que nasci. Quando nasci, havia um homem branco que ia libertar o mundo inteiro e mataram-no: John F. Kennedy. Depois mataram o irmão e a seguir veio o assassinato do Martin Luther King. Este foi o país onde nasci. Nunca acreditei nos Estados Unidos, nunca me deram nada em que acreditar. E vai piorando. Um voto, uma pessoa? Não, votos do colégio eleitoral. Eu não voto, claro que não tenho orgulho, sei de países em que as pessoas deram a vida para votar mas este sistema não está a resultar”.
Não é possível conhecer por inteiro alguém que tenha começado numa novela, All My Children, “o formato mais baixo em televisão na altura”, feito teatro público em Nova Iorque durante “o período mais feliz da sua vida”, e entrado em projetos como a trilogia The Equalizer, em blockbusters de ação como Assalto a Londres (2016) ou em diferentes séries de televisão. Mas Melissa Leo, mais conhecida por interpretar mães complexas, não tem medo de se dar a conhecer. Confessa-se, antes de mais, atriz por inteiro. E não tem medo de dizer que aquilo que escolheu fazer para o resto da vida é um trabalho muito só. Vive sozinha. Viaja sozinha. Dorme sozinha. Não leva amigos para casa assim que termina uma rodagem. Mas tem agora o mundo inteiro para descobrir, ajudando a catapultar o cinema independente europeu com o seu know-how da indústria de Hollywood: anda a trabalhar com uma realizadora portuguesa, Francisca Dores, e está a desenvolver outro projeto com uma cineasta romena, por exemplo. É preciso saber acompanhá-la e não ter medo da sua língua afiada. O mundo não está virado para pessoas como Melissa Leo. E ela sabe-o. “Toda a gente sabia quem eu era e agora estou velha. Não sou mais a “nasty bitch” mas também não sou a Barbie. Sou eu. É uma boa qualidade de ser mais fora da caixa. Hollywood quer que tu sejas de um tipo, sigas um padrão, que sejamos todos iguais. Nunca foi assim o meu universo. Sou uma atriz de Nova Iorque, não sou uma estrela de cinema”, finalizou.
[trailer do filme The Fighter, pelo qual Melissa Leo ganhou um Óscar de Melhor Atriz Secundária]
Os atores nunca dizem algo que a Melissa disse durante uma entrevista: ser atriz é estar muito só. Porquê?
Não estou sempre a trabalhar. E quando trabalho, a Melissa não é tão importante. Estou mais interessada na personagem. Não me perco nela, não é preciso chamar-me pelo nome atribuído mas a minha atenção está aí, não em mim. Quando estou com as equipas, de que adoro, depois do trabalho não vamos jantar. Vou para casa. Vivo sozinha. Não tenho parceiro, o meu filho já está fora. Trabalho durante três semanas ou vários meses, portanto, manter amizades é complicado porque não estou em casa. A quarentena criada pela pandemia Covid-19 foi boa porque voltei a dar-me com alguns amigos. De resto, viajo sozinha. Como sozinha.
Mas está em paz com isso?
Por vezes, sim, outras vezes não. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, nem me interessa mais ouvir a conversa sobre Donald Trump e Joe Biden. Vai tudo à merda, é deprimente. Ninguém quer fazer nada pela situação do país. Torno-me intolerante com as pessoas, portanto, o retiro solitário é bom para mim.
[Já saiu o terceiro episódio de “Um Rei na Boca do Inferno”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de como os nazis tinham um plano para raptar em Portugal, em julho de 1940, o rei inglês que abdicou do trono por amor. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no YouTube. Também pode ouvir aqui o primeiro e o segundo episódio]
Países como Portugal são influenciados pelos EUA desde sempre. Os americanos podem ficar fartos de si mesmos?
Estou farta dos EUA desde que nasci. Quando nasci, havia um homem branco que ia libertar o mundo inteiro e mataram-no: John F. Kennedy. Depois mataram o irmão e a seguir veio o assassinato do Martin Luther King. Este foi o país onde nasci. Nunca acreditei nos Estados Unidos, nunca me deram nada em que acreditar. E vai piorando. Um voto, uma pessoa? Não, votos do colégio eleitoral. Eu não voto, claro que não tenho orgulho, sei de países em que as pessoas deram a vida para votar mas este sistema não está a resultar. Esteve quebrado a minha vida inteira.
O crescimento do populismo está também na Europa. Diria que vários sistemas políticos estão a passar pela mesma fase do que o seu país.
Exato.
Precisamos de um reset?
Não sei se conseguimos, mas é preciso admitir que o sistema está assim. Lembra-se quando falamos do coronavírus e de voltar ao normal? O que é o normal? Só é normal para privilegiados. As pessoas não vão entrar num autocarro sem saber para onde vão. Temos de saber saltar sem uma rede. Virar tudo ao contrário.
Já sentiu que precisava de sair dos EUA?
Não sei se é solução. Os problemas existem em vários locais do mundo. Já morei fora quando era nova. Cheguei a dizer que vou emigrar em tempo de eleições. Cresci sem casa, mudávamo-nos consistentemente, agora sim, sinto-me confortável no lar. O meu filho esteve na Europa durante vários anos. Só saio se ele sair, porque vou com ele. Mas quero trabalhar no resto do mundo.
O que a trouxe a Espinho?
Encontrei duas realizadoras com quem quero trabalhar. Este ano penso que trabalharei com mais. O pitch que uma delas fez, a Francisca Dores, estamos a discuti-lo há sete anos. Ela encontrou um co-argumentista, o guião estava quase pronto mas ainda não estava na página. Tivemos conversas mais difíceis há uns meses. O colega dela, como refilei com o desenvolvimento das personagens, perguntou-me porque raio queria fazer este filme. Respondi: porque quero trabalhar com ela. E, depois, encontrei a Elina Gregor, que é da Roménia, também vou ter com ela quando sair do festival. Andamos a falar de um projeto novo, a seguir ao seu filme Blue Moon (2021), que ficou em segundo lugar para ir aos Óscares. Agora a Elina tem outras ideias. Só porque se pode filmar, será que o devemos fazer? Só porque temos uma criança que consegue fazer de morta, será que lhe devemos pedir para o fazer quando cresceu com morte à sua volta? Não tenho uma resposta mas tenho perguntas. Mas o Blue Moon é muito bonito, uma história moderna à Checkov.
Há uma grande diferença entre um realizador europeu e americano?
É o mesmo em todo o lado. Consigo encontrar um realizador aqui e no meu país de que gosto de trabalhar. Não há uma muralha assim tão grande. Os Estados Unidos não são o que o mundo foi levado a acreditar que era. Desde o fim da Segunda Guerra que somos vistos como grandes heróis. Não somos. Não é verdade. É uma parvoíce, um desastre. Há tantas crianças a passar fome lá como no resto do mundo. Só não falamos delas. Também eu fui uma criança que passou fome, por exemplo.
O seu pai era pescador?
[ri-se] Sim, durante a segunda parte da sua carreira. Trabalhou como editor na Grove Press, viajou muito como uma espécie de hippie jovem e deixou as crianças para trás. Não foi bom para mim. Depois voltou para Long Island onde tínhamos uma quinta. Trabalhou muito com a comunidade pescatória, tal como aqui em Espinho. O barco que vemos lá fora, ali ao pé da biblioteca, é parecido com o que usávamos na nossa região. Os métodos de pesca são muito parecidos. A pesca que acontece ao pé da costa, e não falo da pesca de alto mar que é um desastre, é um modo de vida tão antigo como os seres humanos. É uma maneira segura de pescar.
Estava a falar do facto de estar desapontada com o seu país. Cresceu com o movimento hippie dos anos 60?
Sim, está muito relacionado. Nunca me foi vendida uma ideia, nunca tive pai e mãe às cinco da tarde na mesa, de levar os livros para a escola e perguntarem-me se tinha feito os trabalhos de casa, de ter dois carros na garagem à espera. Não cresci assim. Até em Nova Iorque, antes dos meus pais se separarem, vivíamos de forma boémia. Pouco dinheiro, quando o meu pai saiu, não havia mesmo dinheiro, algo que a minha mãe não estava à espera. Vivi com um grupo de pessoas de uma forma comunitária, uma casa, desconhecidos a viver como família. Nos anos 60 era pequena. Como os meus pais eram como eram, consegui conhecer gente com 15, 20 anos mais novos, que cresceram tal como eu. É raro conhecer alguém com a minha idade que tenha tido a mesma experiência. Demasiado livre. Agora os pais colocam mais regras.
Onde cresceu?
Nasci em Manhattan, fiquei lá até aos sete anos. Depois os meus pais separaram-se. O meu pai fez com que perdêssemos o nosso pequeno apartamento em East Village, pagávamos apenas 40 dólares por semana. O controlo de rendas era apertado. Perdemos essa casa, ficou tudo na rua, todos os nossos pertences.
Restou algo desse tempo em si?
Absolutamente. Fica sempre algo desde que saímos da barriga da nossa mãe. Pode não se lembrar, mas não se livra do melhor e do pior que lhe aconteceu. É assim que somos.
Sentia-se mais livre do que agora?
Não sei nada mais que não seja o de viver em liberdade. Como posso perceber de autoridade ou segurança se nunca a senti na minha infância. É algo que rejeito quando se aproxima. Não a percebo. As crianças aprendem o que lhes é ensinado.
A Melissa já interpretou várias mães, mais complexas, mais despojadas daquela ideia típica de pessoa que fica em casa a tomar conta dos filhos. Já resolveu o mistério da maternidade?
Certamente não durante a minha carreira. O grande problema, e parte de ser um mistério para si, é que, quando a mãe é representada no cinema, tirando algumas exceções, ela é o problema. Não a que dá a vida, não a que mantém tudo junto, mas sim um problema. “Sou assim porque a minha mãe não fez isto e aquilo”. Agora não trabalho tanto porque, olhando para trás, as mães que interpretei não são, nem de perto, parecidas com a que tive. Nem como eu fui. É um grande, grande problema.
Foi difícil então entrar nesses papéis e ser uma mãe diferente?
No “The Fighter”, que toda a gente gosta de falar, O Mark Wahlberg e o David O. Russel, queriam alguém bitchy. Tive jornalistas a perguntar-me: como é interpretar uma cabra? Não percebia a pergunta. Queriam que falasse sobre interpretar alguém que teve nove filhos sem pai à vista numa pequena cidade de Massachusetts? Assim, sim. Mas uma cadela, uma cabra? Não.
Será que percebemos, hoje em dia, melhor os papéis atribuídos à mulher no cinema?
Com filmes feministas como a “Barbie”, como é que vamos aprender algo?
O que sentiu ao ver esse filme?
Não vi. Recuso-me. Para quê? Já sei o que é: publicidade da Mattel. O que quer que aquelas mulheres pensaram que estavam a fazer, talvez percebam que erraram quando é o Ryan Gosling que ganha os prémios todos. Tenho um problema com esta mensagem de que os EUA estão a enviar ao mundo. Quem fez esse filme tem bom coração. A Greta Gerwig tem tudo no sítio. Mas são todas bonitas. Não faz sentido, nem estou interessada. O único envolvimento que tenho com a Academia de de Artes e Ciências Cinematográficas é ajudar na seleção de cinema internacional. Há um grande problema na forma como são escolhidos. A realizadora romena de que falei, Elena Gregor, se os cineastas tivessem os dois filmes romenos a competir, diriam que era o Blue Moon a ganhar e ela teria uma chance de vencer Óscar. Mas o que enviaram é um filme como a “Barbie”: de uma mulher que agrada a um homem. É a única forma dessas mulheres conseguirem ter dinheiro para fazer o filme. Se se fizer um com assuntos femininos, vai ter menos orçamento.
A “Barbie” é uma aposta segura?
Completamente.
Mas as pessoas não sentiram isso. É um dos filmes mais rentáveis de sempre.
As pessoas pensam o que lhes é dito para pensar.
Por vezes, penso que o cinema está nesse lugar seguro.
Só porque não vemos tantos outros filmes. Costumo ver 15 internacionais do início ao fim para escolher pela Academia. Não consegui ver o “20 Dias de Mariupol”, cresci com imagens terríveis da guerra do Vietname. Não posso ver filmes com imagens de pessoas mortas a quem não foi pedida autorização para filmar. Tenho de assumir que não houve autorização para os filmar por parte da família.
Mas percebe o efeito.
Claro. E porque alguém o faria. Não o posso é ver, nem dizer se é bom ou mau. Sou atriz. Se estiver morta, estou a representar. É muito pessoal. Vi 14, quer apreciasse ou não. Não é sobre isso, é se é bom cinema.
Os atores sentem que querem fazer parte do jogo político nos dias de hoje. Durante entrevistas, com posts nas redes sociais. Nunca sentiu que podia acrescentar algo a esse diálogo?
Nunca quis fazer parte disso. Não era o meu desejo. Claro que foi bom quando ganhei a estatueta dourada mas não sabia o que fazer. Toda a gente sabia quem eu era e agora estou velha. Não sou mais a “nasty bitch” mas também não sou a Barbie. Sou eu. É uma boa qualidade de ser mais fora da caixa. Hollywood quer que tu sejas de um tipo, sigas um padrão, que sejamos todos iguais. Nunca foi assim o meu universo. Sou uma atriz de Nova Iorque, não sou uma estrela de cinema.
Mesmo com todos os movimentos culturais e sociais como o Me Too…
… O Me Too? O que é que isso vai fazer para mudar o mundo? É algo que as crianças dizem. Claro que agora podemos falar sobre certos assuntos, mas a conversa em contínuo é que importa. Tivemos esse movimento e agora está feito, vamos avançar. Um amigo disse-me que há um país qualquer em que vai haver igualdade entre homens e mulheres na política. Mas só durante dez anos. Porque é que acha que só fizeram durante esse período? Porque vai voltar tudo ao mesmo. Os homens brancos têm feito isto durante séculos. O homem branco oprimiu o resto do mundo porque tem medo dele. Não porque são inteligentes. Mas é tal como a Michelle Obama diz: são medíocres.
Os homens têm medo das mulheres?
Claro, crescem dentro de uma. Não há nenhum ser humano que tenha nascido de outra forma. Se nascerem num tubo de ensaio, talvez seja diferente.
Essa demonstração de força da mulher é bem visível no parto.
A sua mulher também gritou?
Bom, não como se vê nos filmes.
Exato, é uma treta completa. Mas os homens fazem filmes em que aterrorizam o nascimento e os partos, e assim as mulheres decidem fazer cesariana, porque o cinema fez com que tivessem medo sobre algo que é a coisa mais natural da vida. É indiferente do país de onde vem, o bebé vem do mesmo sítio.
Como atriz, o que mudou para melhor?
Foram-me oferecidos vários papeis de mulher triste, zangada, manipuladora e comecei finalmente a dizer que não queria. Dantes, aceitava tudo. Esse foi o presente, o de recusar. De tomar conta do que queria fazer, de não ter de esperar pelo agente para encontrar o trabalho. Conheço realizadores de todo o mundo e construo relações honestas de forma colaborativa para estar nesta arte que é o cinema.
Algo de positivo que tenha saído destes movimentos culturais e políticos?
Vamos ter a mesma corrida eleitoral que tivemos há uns anos. O que é que mudou? Talvez agora todas as mulheres que sejam abordadas ou abusadas por predadores possam dizer que não querem. Podem dizer que o que está a acontecer, está errado. A comunidade negra já não tem de explicar o racismo. O problema é de quem é racista. Já podem dizer que foram oprimidos e exigir o que querem. Há empoderamento aí. Nós, enquanto indivíduos, temos de melhorar o que saiu dessas lutas.
Para aceitar um próximo projeto, importa que algum realizador ou autor não tenha sido cancelado de certa forma por algum escândalo?
Depende da história totalmente.
Trabalharia outra vez com o Louis CK?
Sim, sim. Ele não é o Harvey Weistein. O Harvey tinha uma empresa, toda a gente sabia, pedia-lhes que mantivessem segredo. O Louis não é um predador. Sei que não fez com que as mulheres fossem ao seu apartamento, estava a ficar conhecido e elas não. Sei porque é que foram. E ele pedia-lhes para fazer o que veio relatado na imprensa, e, sim, sei que pedia porque trabalhei com ele. Sei quem é o Louis. Porque é que elas não saíram? Vá lá, foi isso que fiz a minha vida toda. Portanto, sim, depende. Foi como quando havia a lista negra dos comunistas durante a Guerra Fria. Era uma forma de controlar a informação. As pessoas dessa lista pensavam de forma diferente. Eram de esquerda. De repente, eram limpas do planeta. Porque é que não se pode ser de esquerda?
O Harvey Weinstein teve o que mereceu, então?
Não sei, foi preso, sim, mas continua a receber dinheiro de todos os seus filmes.
Há mais Harvey Weisteins em Hollywood?
Creio que sim. Absolutamente. Depende de quão grande for o crime que estás a cometer. Já ouvi histórias, há comportamentos que já não deveria ser possível ter em privado. Agora toda a gente está a descobrir o que se passa. Os seres humanos são horríveis, essa é a nossa natureza. É preciso lutar contra.
Uma vez disse que a televisão pode ser um trabalho frustrante para quase toda a gente. Ainda se sente assim?
Devo ter dito assim por causa de várias razões.
Foi em 2010.
As pessoas que mandam na televisão, quer seja uma cadeia de televisão ou uma plataforma de streaming, é que pagam o produto. Por exemplo, tenho admiração pelo Louis CK porque fez com que não houvesse controlo criativo sobre a série dele, a “Louie”. Com nomes grandes pode acontecer, claro, como o Steven Sodebergh, mas de resto, não. A interferência é um problema na televisão, do que podia ser para o que eles querem que seja. E , depois, a televisão passa rápido. Gosto de cinema independente, por exemplo, de gravar em duas semanas. Porque demorar seis semanas e gastar tantos recursos?
Está em paz com esta era de streaming?
É o que é. Demasiado conteúdo. Há muito mais mau conteúdo, claro. Tento ver o possível durante a noite. Agora, neste ponto, voltamos ao que víamos antigamente. Há muitos projetos a repetir padrões televisivos. A primeira temporada pode ser boa, mas a segunda é igual. A terceira pode ter ideias novas, de resto, é uma merda.
Li num artigo que a televisão americana está a voltar a modelos antigos, uma aposta forte em comédias, em sitcoms. Parece-lhe bem?
Não produzo televisão, portanto não sei. Quando se trabalha em televisão em vez de cinema, a escala é três pessoas que veem cinema, 3 mil que veem na televisão. Se queres enviar uma mensagem, a caixa pequena é uma ferramenta poderosa.
Conte-me lá uma boa história dos primeiros projetos em que entrou.
Quando saí da escola de representação e fui para Nova Iorque, tive muita sorte. Não estava interessada em sair e namorar. Queria trabalhar. Tive uma audição engraçada num teatro público. Fui sozinha, ofereceram-me um trabalho numa soap opera [novela], a All my Children, o mais baixo em televisão. Muitas atrizes teriam recusado, dito que eram verdadeiras atrizes, que não faziam novelas. Mas aceitei, não tinha nada. Depois do primeiro dia, pediram-me para voltar e assinar um contrato de três anos. Disseram-me para recusar, fazer só um ano. Ia de manhã, começava às cinco da manhã, acabava a meio da tarde, entrava no táxi, ou no metro, e ia fazer uma peça num teatro público. Aí senti que nunca mais seria tão feliz como fui naquela altura. Estava a fazer dinheiro na novela e estava num palco de Nova Iorque. Esta é a melhor história de que me recordo. Tenho muitas. Tenho trabalhado com gente incrível. Agora estou a tentar ser mais seletiva e ter mais cuidado.
Voltaria a entrar num blockbuster como entrou no Equalizer?
Se for convidada, sim. Mas estou há dez anos à espera para ter papéis oferecidos. Só me ofereceram porcaria, papéis pequenos. Como o que aconteceu na mini série da Max, I know this Much is True, interpretado pelo Mark Ruffalo. Só se vê o meu ombro. Trabalhei imenso nessa série. O livro que inspira é sobre ela!
Porque é que isso aconteceu?
Porque o Mark Ruffalo produziu.
Porquê dez anos?
É assim que Hollywood trabalha.
Porque a Melissa é assim?
Sim. Não sabem o que fazer comigo. O Steve Buschemi, que é como eu, teve trabalho durante muitos anos, por exemplo.
Como a Melissa?
Sim. Não parece uma pessoa normal, não é uma estrela de cinema, mas é um grande ator. A maior parte dos grandes atores são homens, mas isso não é culpa das mulheres. A sociedade é que impôs que fosse assim. Há pouco tempo estive à procura de atores e atrizes entre os 35 e os 40 anos. Quando procurava mulheres, a pesquisa só me dava “escolha as mulheres mais bonitas, veja as mais sexys”. Não quero sexy nem bonito. Quero uma atriz. Parece que a única forma de ter trabalho é aumentar as mamas e meter maquilhagem.
Essa realidade mantém-se até hoje?
Claro. No caso dos atores europeus, dos britânicos, o espectro é maior. Dou o exemplo da Olivia Colman, que é incrível mas Hollywood vai lixá-la.
Acha?
Sei que sim. Mas pode ser que seja inteligente. É uma mulher adulta.
O Óscar que ganhou é uma cruz que carrega?
De certa maneira, sim. Não me comparo a Jesus Cristo a carregar a cruz, mas sim. No outro dia, ao anunciarem-me, referiram esse prémio. Sei que o mundo ainda me vê assim, mas eu sou a Melissa Leo, ando a representar há mais de 40 anos. Isso é um feito.
Costumava costurar e fazer ski, ainda o faz?
Já não costuro tanto como antigamente. Na verdade, nunca fiz nada de jeito por isso é que parei. Quanto ao ski, também larguei. Há muitos anos que não faço. Praticava quando o meu filho estava na escola, costumava ir até às montanhas, eram aí uns quarenta minutos de minha casa. Depois, conheci um homem que ensinava ski, fizemos imenso durante anos. Ainda tenho o equipamento.
O que gosta de fazer para relaxar?
Ofereceram-me aqueles cartões de presente para ir até um estúdio de olaria. Quando era miúda, fazia. Era um estúdio muito bonito a 25 minutos de minha casa. Sou louca por cerâmica. Gosto de fazer coisas práticas.