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Entramos no supermercado e dirigimo-nos ao corredor dos frutos vermelhos em busca de framboesas. Há duas opções à escolha, duas caixas de plástico exatamente ao mesmo preço: 2,79 euros. Porém, uma diferença salta à vista. Uma delas contém 200 gramas de framboesas; a outra, embora custe o mesmo, tem apenas 125 gramas, pouco mais de metade da quantidade de um produto à partida semelhante. Como explicar tal discrepância de preços em produtos aparentemente iguais? A única diferença parece ser o pequeno selo verde, com as letras “BIO” impresso no rótulo do mais caro. Como chegámos, então, a esta diferença?
Produto após produto, prateleira após prateleira, corredor após corredor, o padrão repete-se nos supermercados portugueses: um selo “BIO” faz disparar o preço de qualquer produto, às vezes para o dobro do valor em relação à versão convencional do mesmo bem. Acontece com a fruta, com os ovos, com a carne, com os legumes e com tantos outros produtos — e o fenómeno elevou a alimentação de origem biológica a uma marca de estatuto social.
Sob o argumento de que, com a compra de produtos biológicos, o consumidor pode reduzir significativamente o seu impacto nocivo no planeta, as grandes superfícies promovem as frutas e os legumes biológicos como alternativa “verde” à alimentação tradicional e como fórmula para o alívio da consciência ambiental. Feitos em menor escala, com mais cuidado, sem fertilizantes e herbicidas sintéticos e oriundos de explorações que respeitam as boas práticas agrícolas, os produtos biológicos são apresentados como, inevitavelmente, mais caros do que os tradicionais devido às especificidades da sua produção.
O tema voltou recentemente à atenção do público com a polémica em torno da líder do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), Inês de Sousa Real. A deputada era, até ao final de 2019, sócia-gerente de uma empresa de produção de framboesas e mirtilos que os críticos da líder do PAN dizem desrespeitar os princípios do partido: na exploração agrícola são usadas estufas (do tipo túnel, sem ser totalmente fechadas, que permitem a circulação de animais e a exposição parcial das plantas aos elementos) e uma grande parte dos frutos são comercializados em embalagens de plástico.
As empresas, o tipo de agricultura e as dúvidas. Seis questões sobre os negócios da líder do PAN
À conta de situações de exploração agrícola intensiva como as plantações de frutos vermelhos de Odemira, concelho onde se concentra cerca de 90% da produção nacional de framboesa e onde o próprio respeito pelos direitos humanos tem sido posto em causa, o uso de estufas foi publicamente demonizado e transformou-se num sinónimo imediato de agricultura intensiva, pouco sustentável e incompatível com o respeito pela dignidade humana — uma generalização que está longe da verdade.
Inês de Sousa Real garantiu (e o Observador confirmou) que a sua exploração se encontra devidamente certificada para o modo de produção biológico — uma certificação que atesta que a exploração agrícola cumpre vários pressupostos, incluindo a garantia de que não são usados pesticidas, herbicidas e fertilizantes sintéticos, que não há recurso a organismos geneticamente modificados, que a exploração não se trata de uma monocultura intensiva, que são respeitados um conjunto de princípios ambientais, entre outras exigências.
No fim de contas, quando chegam às prateleiras dos supermercados, os produtos biológicos acabam por ser significativamente mais caros do que os convencionais. Porquê? Há, de facto, todo um conjunto de especificidades que tornam a agricultura biológica mais cara, mais morosa e mais exigente. Tanto que a ciência estima que, se toda a agricultura do mundo fosse convertida em produção biológica, seria impossível alimentar o planeta de modo sustentável, uma vez que a produção alimentar poderia diminuir e, em sentido contrário, provocar um aumento da emissão de gases com efeito de estufa. A somar a isso, a falta de uma economia de escala deixa os produtos biológicos mais longe da maioria das carteiras.
À boleia do caso que envolveu Inês de Sousa Real vs o das estufas de Odemira, olhemos para o exemplo dos mirtilos e das framboesas.
Uma pesquisa feita pelo Observador em três grandes superfícies portuguesas (Continente, Lidl e Pingo Doce), nas lojas e nas páginas de internet, permitiu concluir que há um padrão de encarecimento dos produtos biológicos. No caso dos mirtilos, os convencionais custam em média 12,46 euros por quilograma, mas quando passamos para os biológicos o preço dispara em cerca de 60% para cerca de 19,92 euros por quilograma. Já no que respeita às framboesas, foi possível encontrar as convencionais a uma média de 13,05 euros por quilograma, um preço que sobe em 71% para 22,32 euros por quilograma quando procuramos framboesas biológicas.
Impõe-se uma nota fundamental: esta consulta foi feita pelo Observador em novembro, no final do outono, já muito fora da época destes frutos clássicos do verão. Isto significa que a maioria dos mirtilos e das framboesas encontrados nas prateleiras dos supermercados portugueses são, por esta altura, importados — maioritariamente de países da América do Sul, incluindo a Argentina e o Peru, onde nesta altura do ano é verão. A necessidade de importar estes frutos (ou de investir na sua produção fora de época) faz subir os preços nesta altura do ano, como é visível na curva da flutuação anual dos preços do mirtilo.
Em todo o caso, a diferença de preços é evidente e deixa margem para muitas dúvidas. Afinal, o que é (e o que não é) a agricultura biológica? Quais os fatores que a diferenciam da agricultura convencional? O que é permitido e o que é proibido? As estufas são incompatíveis com o modo de produção biológico? E que características acabam por tornar os produtos biológicos mais caros do que os convencionais? Com a ajuda de especialistas, o Observador procura dar resposta a algumas das questões centrais sobre os produtos “BIO”, cada vez mais presentes nas prateleiras dos supermercados portugueses.
O que é — e o que não é — a agricultura biológica?
A Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR), entidade responsável pelo controlo da produção biológica em Portugal, responde com uma definição curta: “A produção biológica é um sistema global de gestão das explorações agrícolas e de produção de géneros alimentícios que combina as melhores práticas em matéria ambiental e climática, um elevado nível de biodiversidade, a preservação dos recursos naturais e a aplicação de normas exigentes em matéria de bem-estar dos animais.”
Mas, para compreender melhor o que é e o que não é a agricultura biológica, é preciso mergulhar mais a fundo na definição do conceito e, sobretudo, nos pressupostos subjacentes a este tipo de agricultura — o que se pode fazer e, mais importante ainda, o que não se pode fazer.
O engenheiro agrónomo Pedro Mendes Moreira, especialista em produção agrícola biológica e coordenador do mestrado em Agricultura Biológica do Instituto Politécnico de Coimbra, explica ao Observador que é preciso recuar pelo menos até 1972 para compreender a história contemporânea da agricultura biológica. Foi nesse ano que foi criada a IFOAM (sigla inglesa para Federação Internacional dos Movimentos de Agricultura Biológica), um organismo internacional que estabeleceu diálogos formais com a ONU e diversas outras instituições internacionais — e deu uma dimensão formal a um movimento, até então, relativamente informal e disseminado por todo o mundo.
Foi também no contexto da IFOAM que começaram a realizar periodicamente os congressos internacionais de agricultura biológica, decisivos para a definição do próprio conceito. “Em 2005, no congresso mundial de agricultura biológica em Adelaide, na Austrália, foram indicados os quatro princípios norteadores da agricultura biológica: a saúde, a ecologia, a integridade/justiça e a precaução”, explica Pedro Mendes Moreira.
A partir dos quatro princípios norteadores, as organizações internacionais desenvolveram legislação específica para classificar um produto agrícola como biológico ou não. No caso português, há 11 entidades privadas autorizadas a emitir certificações de MPB (Modo de Produção Biológico) a explorações agrícolas, que atuam sob o controlo da DGADR e estão, por seu turno, acreditadas pelo IPAC (Instituto Português da Acreditação e da Certificação). A certificação biológica dá direito a usar nos rótulos o logótipo comum a todos os países da União Europeia — um símbolo verde com 12 estrelas dispostas em forma de uma folha que, provavelmente, já viu em vários produtos no supermercado.
E que requisitos é preciso cumprir? Em primeiro lugar, há uma série de proibições a respeitar em relação ao método de produção: organismos geneticamente modificados, clonagem animal, radiações ionizantes, herbicidas de síntese química (ou seja, produtos obtidos através de um processo artificial em laboratório, e não obtidos diretamente a partir da natureza), fertilizantes sintéticos e vários produtos fitofarmacêuticos não regulados estão liminarmente proibidos. Só são admitidos processos naturais de controlo da produção e, em alguns casos, um conjunto de produtos de origem natural e orgânica para ajudar na fertilização e no controlo de pragas.
Além destas proibições técnicas, a agricultura biológica pressupõe, acima de tudo, o respeito por um conjunto de princípios filosóficos relacionados com a preservação dos ecossistemas, com a regeneração dos solos, com o respeito pelos ciclos naturais — pelo que qualquer prática deve ser analisada à luz do respeito ou não por esses princípios.
“Por exemplo, em relação a alguns aspetos como as estufas, o que fazemos na agricultura biológica é a análise destes princípios. Deve a agricultura biológica adotar uma perspetiva de eficiência? Sim, mas não a todo o custo, não através do sacrifício dos princípios. As estufas são permitidas? Sim, mas é preciso perceber qual a intensificação que é feita de determinados sistemas, se são cumpridas as regras ou não”, explica Pedro Mendes Moreira.
Isabel Mourão, engenheira agrónoma e coordenadora do mestrado em Agricultura Biológica do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, aponta no mesmo sentido. “A agricultura biológica usa estufas, obviamente”, diz, lamentando que se tenha criado uma situação “sem pés nem cabeça” em torno da polémica com Inês de Sousa Real. A académica explica que existe até a horticultura biológica protegida, que recorre a estufas, redes de ensombramento e outros mecanismos artificiais para melhorar as condições da exploração agrícola — e nem sequer a exploração intensiva é totalmente incompatível com a certificação biológica. É possível desenvolver explorações biológicas com “intensificação ao mais alto nível”, desde que sejam respeitadas as regras fundamentais da agricultura biológica: através do uso de fertilizantes orgânicos para o solo, do respeito pelo ciclo dos nutrientes e da decomposição da matéria orgânica, sem recurso a produtos sintéticos para adulterar a produção agrícola.
A produção biológica contrasta com os métodos convencionais de produção agrícola, em que são admitidos fertilizantes sintéticos, herbicidas e um conjunto muito alargado de mecanismos artificiais para adulterar as condições ambientais, os ciclos naturais e o próprio ritmo de desenvolvimento das plantas — mecanismos que permitem que os produtos hortícolas e frutíferas de produção convencional cheguem em massa a um preço muito mais baixo às prateleiras dos supermercados.
Os produtos “BIO” são sempre mais caros?
A quantidade de requisitos necessários para certificar um produto como biológico permite-nos intuir que os produtos biológicos são tendencialmente mais caros que os convencionais — e essa intuição é quase sempre confirmada com uma visita a um supermercado. Alguns exemplos:
- Azeite Virgem Extra: 3,59 euros por litro (convencional) vs. 6,58 euros por litro (biológico);
- Cebolas: 0,99 euros por quilograma (convencional) vs. 1,72 euros por quilograma (biológica);
- Ovos: 1,78 euros por dúzia (convencionais) vs. 3,58 euros por dúzia (biológicos);
- Cenouras: 0,69 euros por quilograma (convencionais) vs. 1,78 euros por quilograma (biológicas);
- Maçãs: 1,59 euros por quilograma (convencionais) vs. 3,98 euros por quilograma (biológicas).
Apesar de ser este o padrão, não se pode transpor para todos os setores da agricultura. A vinha, por exemplo, é uma exceção, como explica ao Observador o engenheiro agrónomo Jorge Ferreira, um dos principais especialistas portugueses em agricultura biológica e responsável pela conversão de várias propriedades nacionais em explorações biológicas. Jorge Ferreira, que coordenou a conversão da Herdade do Esporão, no Alentejo, em produção biológica, sublinha que no caso das produções de grande escala, como a vinha, é possível reduzir o custo de exploração com a aplicação dos pressupostos da agricultura biológica.
“No caso da vinha, em áreas maiores e mais mecanizáveis, aumentamos os custos de investimento em maquinaria e equipamento, mas reduzimos os custos de exploração”, aponta Jorge Ferreira. “Antes, a vinha usava herbicidas para combater as ervas infestantes. Como na agricultura não são usados herbicidas, tivemos de instalar equipamento próprio para trabalhar com os tratores, para retirar as plantas mecanizadamente. Mas deixa de se gastar dinheiro com herbicidas.”
Com efeito, essa é uma das grandes linhas orientadoras da agricultura biológica: não podem ser usados produtos de síntese química para combater pragas. Isto significa que os herbicidas não são permitidos e que os agricultores biológicos têm de usar modos naturais e mecânicos para combater as pragas. Além disso, também os fertilizantes químicos estão proibidos, o que obriga os produtores a recorrerem a métodos naturais para adubar os solos.
“Normalmente, numa exploração agrícola convencional, gasta-se bastante dinheiro em adubos químicos. O que eu geralmente recomendo é que se aproveitem as entrelinhas para cultivar culturas fixadoras de azoto. É a chamada adubação verde. Lá no Esporão foi feito em grande escala. Em vez de se gastar dinheiro em adubo, cultivaram-se trevos e favas” nos corredores entre as várias filas de vinha, sublinha Jorge Ferreira, assinalando que o cultivo destas espécies reforça os solos, beneficiando as vinhas. Por isso, diz o especialista, “no caso dos vinhos, não é mais caro” produzir em modo biológico do que de modo convencional.
Mas se a vinha é a exceção, a maioria dos produtos hortícolas e frutícolas são, efetivamente, mais caros se forem produzidos de modo biológico — mesmo quando a prática biológica é aliada a algumas ferramentas de aumento da eficiência, incluindo o recurso a estufas e a intensificação da produção. Isso deve-se a uma multiplicidade de fatores, que vão desde a produção à distribuição das frutas e dos legumes.
Com o mesmo terreno, agricultura biológica produz menos alimento
O primeiro fator de encarecimento do preço dos produtos biológicos, apontado de modo unânime por todos os especialistas ouvidos pelo Observador, é a produtividade. “Na agricultura biológica, há alguma quebra de produtividade, que o agricultor tem de compensar com o aumento do preço”, explica Jorge Ferreira, com dados concretos: “Em média, a quebra de produtividade da agricultura biológica, pensando no estudo mais abrangente que conheço, feito em mais de 30 países, é de 19%. Ou seja, em agricultura biológica produz-se menos 19% de produto por hectare em relação à agricultura convencional.”
A que se deve esta produtividade mais reduzida? Também aqui entram em jogo vários fatores:
- Por um lado, os princípios da agricultura biológica determinam que os produtores zelem pela regeneração dos solos, o que significa que as explorações precisam de deixar parcelas do terreno em pousio durante uma campanha inteira, de modo a poderem ser utilizados na campanha seguinte — e com o mínimo recurso possível a fertilização artificial;
- Por outro lado, as explorações agrícolas biológicas, mesmo aquelas que têm uma maior intensificação da produção, tendem a ser mais diversificadas (evitando-se a prática da monocultura intensiva), o que significa que poderá haver menos plantas por hectare em comparação com uma exploração convencional;
- Além disso, segundo explica Isabel Mourão, o facto de não serem usados adubos químicos de síntese, mas apenas a chamada adubação verde, “os ciclos produtivos na agricultura biológica demoram mais tempo”. É também por isso que “têm mais aroma e mais sabor”, mas a contrapartida é a de demorarem mais tempo até estarem prontos a vender.
Tudo isto contribui para uma realidade inevitável: com o mesmo terreno à disposição, um produtor convencional consegue obter mais produto em menos tempo do que um produtor biológico. As desvantagens ambientais e de qualidade do produto acabam por ser menos consideradas na determinação do preço final do que a economia de escala moldada pela oferta e procura, pelo que, no fim, custa mais dinheiro a um agricultor biológico produzir a mesma quantidade de produto.
A tudo isto, soma-se ainda o fator risco, como adverte Pedro Mendes Moreira. “Na agricultura convencional, se houver um problema faço o tratamento com o pesticida e fica resolvido. Na agricultura biológica não posso fazê-lo”, diz o investigador, salientando que o risco de perda das colheitas faz aumentar o preço dos produtos.
Em conversa com o Observador, os engenheiros agrónomos Jorge Ferreira e Isabel Mourão apontam para os mesmos valores: uma quebra de produtividade na ordem dos 20% da agricultura biológica em comparação com a agricultura tradicional traduz-se num aumento de preços, pelo menos, também na ordem dos 20%. Porém, há mais fatores a considerar.
Agricultura biológica gasta mais dinheiro em mão-de-obra
Os preços mais elevados dos produtos biológicos devem-se também aos custos mais elevados com a mão-de-obra associados a este tipo de produção. O investigador Pedro Mendes Moreira, do Politécnico de Coimbra, dá um exemplo. “A questão das infestantes é um aspeto crucial. Nós não usamos herbicidas, por isso há uma necessidade de alguma mecanização ou mão-de-obra”, explica. Na prática, isto significa que o surgimento de ervas invasoras numa plantação biológica não pode ser combatida com a aplicação de herbicidas em larga escala: é preciso recorrer a processos mecânicos (que, no limite, podem implicar a recolha manual) para as arrancar. Isto demora mais tempo e exige mais mãos.
“É por aí que, muitas vezes, os custos aumentam. É preciso mais mão-de-obra para obter a mesma quantidade de produto”, explica o engenheiro agrónomo.
O aumento das necessidades de mão-de-obra não é semelhante em todas as culturas biológicas. Jorge Ferreira sublinha que isto se verifica “especialmente nas hortícolas” e dá o exemplo concreto da cenoura. Trata-se de uma planta de folha pequena que “demora mais tempo a crescer”, pelo que as ervas invasoras “passam à frente” e tornam-se maiores. Para as remover, é preciso recorrer “à monda mecânica ou à monda manual”, o que exige “mais empregados” e leva a cenoura biológica a custar “quase o dobro do preço” do que a convencional.
O mesmo fator é sublinhado por Isabel Mourão como um dos principais contributos para o encarecimento dos produtos biológicos: “Como não se utilizam herbicidas, produtos químicos de síntese, há mais trabalho manual ou mecânico para remover as infestantes.”
Por outro lado, há culturas em que esta diferença é residual. É o caso, por exemplo, dos mirtilos, uma vez que a colheita é sempre manual, independentemente do modo de produção, aponta Jorge Ferreira.
Ainda no capítulo da mão-de-obra, além da diferença objetiva de necessidades laborais (são precisas mais pessoas por cada hectare de agricultura biológica do que na agricultura convencional), também importa sublinhar que a produção em agricultura biológica pressupõe o respeito pelos princípios da justiça social e laboral — o que, pelo menos em teoria, impede as produções biológicas de seguirem padrões muitas vezes seguidos por grandes explorações intensivas na agricultura convencional.
Situações como aquelas que o Observador testemunho numa longa reportagem publicada em maio deste ano sobre as explorações intensivas de amoras, framboesas e mirtilos em Odemira, são totalmente incompatíveis com a prática da agricultura biológica. Naquele concelho do Baixo Alentejo, vários milhares de trabalhadores migrantes, oriundos de países asiáticos como o Nepal, a Índia, o Paquistão ou a Tailândia, vivem em condições abaixo do limiar da dignidade humana e trabalham horas a fio nas enormes estufas, de onde sai a maioria da produção nacional de frutos silvestres.
“Normalmente, as explorações hortofrutícolas biológicas são mais pequenas. Não se pode generalizar, mas se cumprirem os princípios da produção biológica, então há que ter preocupações sociais”, diz Jorge Ferreira. Também este fator poderá contribuir, em média, para um aumento dos custos da agricultura biológica com a mão-de-obra.
Produção biológica respeita (mais) a sazonalidade
Quando é a época ideal para cada fruta e legume? Aquilo que, em tempos, constituía um conhecimento básico já há muito deixou de estar na ponta da língua da maioria das pessoas. A agricultura intensiva e em estufas deu-nos o luxo de comer praticamente todos os produtos agrícolas durante praticamente todo o ano. A agricultura biológica, por seu turno, implica, pelo menos em alguma medida, um regresso a essa prática antiga de só comer os produtos da época — uma vez que são rejeitadas várias das ferramentas artificiais usadas para contrariar os ciclos próprios da natureza.
“Também se podem usar estufas em agricultura biológica, não são proibidas. Não se pode é forçar em demasia, porque senão não temos recursos”, explica Jorge Ferreira, sublinhando que existem casos de agricultura biológica intensiva e que a definição do que é e do que não é biológico obriga a caminhar numa linha ténue entre as regras rígidas e, de modo mais abrangente, os princípios gerais da agricultura biológica.
“Infelizmente, na minha opinião, algumas empresas de certificação limitam-se a ver o que é proibido e o que é autorizado. Se há adubos, pesticidas ou OGMs, e esquecem ou fecham um pouco os olhos ao resto”, lamenta o engenheiro que foi responsável pela conversão de centenas de hectares agrícolas de Portugal em agricultura biológica. Além de olhar rigidamente para os produtos usados, Jorge Ferreira salienta que é fundamental compreender as intenções dos agricultores, a integração entre as práticas e preservação da natureza e o cumprimento dos princípios da agricultura biológica, incluindo as questões sociais, ambientais e ecológicas.
A mera existência de uma estufa — que tanta polémica motivou no caso de Inês de Sousa Real — não determina se a agricultura ali praticada é biológica ou não. O que importa é perceber o que sucede dentro da estufa e qual o grau de adulteração dos ciclos naturais que é praticado. Intensificar uma produção mantendo os pressupostos da agricultura biológica implica também um aumento de custos, de acordo com o que explicaram os vários especialistas ao Observador.
Um dos grandes desafios é a fertilização dos solos. Segundo Jorge Ferreira, “há práticas prioritárias que, em princípio, são mais baratas” — a tal adubação verde já mencionada, que passa pela substituição dos fertilizantes sintéticos pela plantação de culturas de apoio que ajudem a fixar nutrientes no solo em torno da plantação principal. Contudo, o especialista admite que “isso é mais viável em vinha ou em olivais, que são culturas permanentes, e menos viável em explorações de pequena dimensão, como são maioria das produções biológicas”.
Nesses casos, quando um agricultor biológico pretende aumentar a produtividade da sua exploração, então precisa de comprar “fertilizantes minerais naturais ou orgânicos, que são, em geral, mais caros do que os químicos”. O mesmo diz Isabel Mourão, que aponta o elevado preço dos “fertilizantes orgânicos do solo” como um dos fatores de encarecimento dos produtos biológicos. E a que se deve esse preço mais elevado? O biólogo José Mateus, responsável pela implementação de várias explorações biológicas no Alentejo, explica que nestas situações — que classifica como exemplos do “bio industrial” — são usados produtos orgânicos que “são mais caros, porque são mais difíceis de fazer e são mais raros”.
Na prática, o que acontece é que a agricultura biológica procura interferir menos nos ciclos e nos processos naturais, ficando impedida de produzir alimentos durante todo o ano à escala da agricultura convencional. Quando o faz, fá-lo através da estimulação dos processos naturais (por exemplo, a “biodiversidade funcional”, como diz Isabel Mourão, ou seja, o recurso a várias espécies de plantas e animais para promover o crescimento das culturas), que são mais caros e têm uma capacidade menor de competir com a grande escala da agricultura tradicional.
Ainda falta escala à economia do biológico
A falta de uma economia de escala é, justamente, um dos maiores fatores que explicam a diferença de preços entre os produtos biológicos e os seus equivalentes convencionais. Isso comprova-se facilmente com uma rápida visita ao supermercado, onde os produtos biológicos estão habitualmente remetidos a um pequeno setor próprio — além de também se venderem em lojas próprias, dirigidas a pequenos nichos.
“Temos uma produção limitada, falta uma economia de escala”, diz Jorge Ferreira, salientando que isto faz disparar os custos logísticos associados à distribuição e comercialização. “Quando se transportam poucos quilos a uma grande distância, gasta-se muito mais dinheiro por quilo”, explica. Também por isso, para evitar que os seus produtos fiquem ainda mais caros, os pequenos produtores biológicos costumam limitar a distribuição à área geográfica mais próxima do local da produção.
Tudo isto faz com que a agricultura biológica ainda ocupe um espaço de nicho, com os produtos — quase sempre mais caros — a serem consumidos essencialmente pelas classes média e alta. Contudo, este panorama está a mudar em Portugal e a agricultura biológica está a ganhar terreno no país.
Segundo números da própria Direção-Geral da Agricultura e Desenvolvimento Rural, Portugal tem hoje mais de 252 mil hectares ocupados com explorações agrícolas certificadas para o modo de produção biológico, o que representa 7% da superfície agrícola total usada no país. Encontram-se registados 4.674 produtores biológicos, 760 preparadores ou transformadores de produtos biológicos, 217 distribuidores e 22 importadores. Trata-se de um grande crescimento: entre 2009 e 2019, o número de produtores biológicos registados no país triplicou, em resposta à cada vez maior procura destes produtos. E quando se olha para um período mais abrangente, o crescimento é ainda mais impressionante: “Entre 1992 e 2014, houve um aumento de 40 vezes no número de produtores e de 30 vezes na área ocupada.”
Ainda assim, a produção biológica continua a ser uma minoria no panorama agrícola nacional — e essa condição minoritária traz alguns custos adicionais aos produtores biológicos. Por exemplo, a maioria das sementes usadas em produção biológica não são, elas próprias, provenientes de agricultura biológica, o que significa que não estão adaptadas para atingirem a sua produtividade máxima nesse tipo de exploração agrícola. Além disso, os produtores biológicos têm de pagar pela certificação valores que se situam na ordem de algumas centenas de euros — o que, para um produtor de pequena dimensão, pode influenciar o preço final das frutas e legumes.
A implantação da realidade da agricultura biológica em Portugal contrasta fortemente com o que acontece noutros países. Dados internacionais recolhidos pela FIBL (centro de investigação global em agricultura biológica), há atualmente 16,5 milhões de hectares ocupados por explorações biológicas na Europa, metade dos quais se encontram em apenas quatro países: Espanha, França, Itália e Alemanha. Todos estes países têm mais de 1,5 milhões de hectares de agricultura biológica — Espanha é a líder europeia, com 2,4 milhões de hectares.
Ainda assim, não é nestes países que se concentra o maior consumo de produtos biológicos. A Dinamarca lidera nesta lista, com os dinamarqueses a gastarem em média 344 euros por ano neste tipo de bens agrícolas. Segue-se a Suíça, o Luxemburgo, a Áustria e a Suécia. “Em Portugal estamos com uns 20 anos de atraso em relação a vários países da Europa no que toca à agricultura biológica. Aqui suponho que os portugueses gastem dois ou três euros por ano em média nestes produtos, porque a maioria nem compra”, considera Jorge Ferreira.
A médio e longo prazo, os especialistas ouvidos pelo Observador estimam que a agricultura biológica passe a ocupar um lugar cada vez mais preponderante no setor agrícola. Por um lado, devido às metas políticas específicas: a nível da União Europeia, há o objetivo (incluindo nas políticas climáticas europeias) de que a agricultura biológica represente 25% da produção agrícola até 2030. Por outro lado, as tendências de consumo vão levar a que a oferta se adeque de modo crescente à oferta. “A agricultura convencional já está, este ano, a atravessar a campanha mais cara da história. Ainda é mais barata que a biológica, mas está cada vez mais cara”, aponta José Mateus, explicando este facto com a pandemia, o aumento do preço dos combustíveis e de vários produtos de origem sintética.
Mas há um fator decisivo sem o qual a agricultura biológica nunca conseguirá competir com a produção convencional: o próprio modelo económico vigente, que não tem em consideração os custos ambientais dos bens e serviços (como o Observador explorou detalhadamente num artigo recente). “A agricultura convencional consegue entrar na economia de escala. Posso fazer 100, 200 ou 300 hectares de uma cultura que, se estiver ligado à máquina com fertilizantes e pesticidas, vai dando. Mas é mais barata porque os custos ambientais não são tidos em conta”, sublinha José Mateus. “Por exemplo, um olival intensivo não está a pagar os estragos que faz no ambiente, está apenas a receber o que produz. Por outro lado, os produtores biológicos não recebem pelo bem que fazem ao ambiente.”
Isabel Mourão aponta no mesmo sentido: “Se o preço dos alimentos estivesse a pagar aquilo que os alimentos custaram a produzir e os efeitos negativos no ambiente, na poluição dos solos, da água e da atmosfera, provavelmente os produtos biológicos custariam metade do preço dos convencionais.”