César Luis Menotti. Historicamente, o homem é rei e senhor dos três efes: fumo, filosofia e futebol. Cada frase sua é digna de manchete. Como jogador, é avançado do Rosario Central da sua cidade-natal (a mesma de Messi) e Boca Juniors antes de cruzar o país para jogar no Brasil, ao lado de Pelé no grande, enorme Santos, em 1968. Penduradas as chuteiras, abraça a carreira de treinador. Com uma competência ímpar. Em 1973, por exemplo, é campeão argentino pelo Huracán. É o primeiro e único título do clube, que joga com um quinteto avançado de respeito (Houseman, Brindisi, Avallay, Babington e Larrosa). É a rampa de lançamento para dois títulos mundiais pela Argentina e outros dois espanhóis pelo Barça. Destes quatro,três com Maradona. Música, maestro.
Bom dia, tudo bem?
Todo bien, quien habla?
Daqui é Rui Miguel Tovar, de Portugal.
Portugal, hein? Estás muy lejos. Estás perdido, no?
Para nada, quero falar com o Menotti.
Ah, estou a ver. Queres ficar perdido, é isso? Jajaja [aviso: isto são gargalhadas, e não tosse provocada pelo tabaco]
Não me importo nada.
És de Portugal, certo?
Certíssimo. Tem alguma memória daqui?
Futre, no?
Futre?
Claro, treinei-o no Atlético Madrid em 1987-88.
Isso é a primeira época do Futre em Espanha.
Correto. Gil y Gil contratou-o, eu lancei-o.
Lembra-se de lançar Futre?
Claro que sim, não estou assim tão velho. Jajaja.
E que tal?
Havia uma expectativa enorme. Imagina só, milhares de pessoas foram vê-lo na apresentação e mais uns quantos milhares apareceram no Calderón para idolatrá-lo. Ainda não tinha tocado na bola e já era uma certeza. Se não me engano, foi com o Sabadell. Ganhámos 1-0 mas substituí o Futre à volta de uma hora de jogo, mais coisa menos coisa.
Então porquê?
O homem estava cansado e os adversários pegavam-lhe forte e feio. Tirei-o mais cedo nesse dia porque ele mais parecia um saco de pancada. Passou mais tempo no chão do que em pé, mas levantava-se sempre, com vontade de ter a bola. Parecia um jogador de subbuteo.
Nessa época 1987-88, o Menotti não acaba a época e…
Jesús Gil y Gil [em forma de desabafo], el presidente.
E… tudo bem?
Sim, claro. Já passou, tranquilo. Nessa época, a melhor recordação é um 4-0 no Santiago Bernabéu. Que espectáculo. Experimenta ver esse dérbi. Jogámos ao ataque como nunca. Parece-me que o Futre participou em todos os golos. Se não foi, anda lá perto. Uma coisa é certa, o 2-0 é dele. Disso tenho a certeza. Aquela jogada típica a simular o remate duas vezes para livrar-se de dois defesas e depois, tique, golo.
Ah sim, sim. Isso foi no fim-de-semana seguinte à vitória do Real Madrid sobre o FC Porto campeão europeu, não foi?
Bem, disso já não me lembro. Não estou assim tão novo, jajaja.
Por falar em idade, quantos anos tem?
Quase quase 80.
E então?
Sinto-me bem, preparado para ver o Mundial-2018.
Qual é o seu primeiro Mundial?
De ver com olhos de ver, o de 1958, na Suécia. O Brasil la rompió [partiu a loiça toda], com o Pelé a 9.
Como?
É assim mesmo, o Brasil de 1958 foi a primeira seleção a abdicar do WM a favor do 4-2-4. Nesse Mundial, jogaram com dois laterais ofensivos (Nilton e Djalma Santos), dois extremos bem abertos (Garrincha e Zagallo), um ponta-de-lança clássico (Vavá) e um falso 9 (Pelé).
Pelé, que figura.
Foi o maior de sempre.
A sério?
Joguei com ele no Santos.
A sério?
Em 1968. As coisas que ele fazia nos treinos não eram normais nem nunca mais fiz alguém fazer. Ele fazia tabelas com os adversários.
Como assim?
Se ele não visse companheiros por perto ou em situação favorável de fazer tabelinhas, fazia triangulações com os pés ou as pernas dos adversários. Sabes que mais? Resultava.
E mais?
Nas bolas pelo ar, das duas, uma: ou ele saltava mais alto que todos os outros, e ele nem era assim tãããão alto, ou parava-a com o peito quando pensavas que ele ia cabecear.
Nem Maradona nem Cruijff?
O quê?
Perto de Pelé?
Nãããão, Pelé é único. Atenção, adoro Maradona e Cruijff: duas referências incontornáveis, dois jogadores no top 5 dos melhores de sempre, mas Pelé é do outro planeta.
Pelé a 9. Essa não sabia.
Houve muitos falsos 9 ao longo da história. Mira, mira, no Mundial sub-20 em 1979, o Ramón Díaz foi o nosso 9 falso e foi o Bota de Ouro da competição.
Então mas o Ramón Díaz era o quê?
O Ramón era 10, como o Maradona. Só que não podia jogar com dois 10. Então, optei por lançar o Ramón a 9. E, mira, ganhámos esse Mundial sub-20.
No Japão.
Que sítio raro. Um mundo bem diferente do que estávamos habituados. Até por falta de informação, apanhámos ali uma cultura tão diferente, já para não falar da diferença horária, da comida, dos costumes. Que experiência.
Isso é só um ano depois do Mundial-78.
Pois é. Naquele tempo, o meu contrato com a federação englobava AA e camadas jovens. Sempre que a seleção jogasse um Mundial, eu dizia presente.
É obra, dois títulos mundiais em menos de um ano.
Foi uma epopeia memorável.
https://www.youtube.com/watch?v=IVvUBMPn3lo
Comecemos pela de 1978.
Ganhámos 3-1 à Holanda, na final.
Há muitas críticas pelo jogo da Argentina ao longo do torneio?
Boludos [qualquer coisa como palermas]. Quem diz isso é um boludo. Jogar em casa é uma tarefa hérculea. Diz-me só o anfitrião que ganha o Mundial depois de nós?
…
Fazemos o caminho juntos: Espanha 1982, um desastre; México 1986, quartos-de-final; Itália 1990, meias; EUA 1994, oitavos; França 1998, campeã; Coreia e Japão 2002, nem vou falar; Alemanha 2006, meias; África do Sul 2010, fase de grupos; Brasil 2014, meias. Só a França é que ganhou. E porquês, sabes?
Ni idea.
É difícil, muito difícil. Se fores então um país de futebol, como é o caso de Itália em 1990 e Brasil em 2014, a pressão é tremenda. Nota-se quando os adeptos param de apoiar, quando o silêncio toma conta do estádio. Aí, dá-se o clique e percebes que estás fora do teu sítio. Mas como, se jogas em casa? Pois, é isso de que falo. Da tal tarefa hérculea. É preciso dar a volta aos nossos sentimentos mais primitivos.
Isso notou-se em 1978?
Claro. Só começámos a jogar bem em Rosário, na segunda fase de grupos.
É a sua terra.
E também a de Mario Kempes [melhor marcador desse Mundial]. Na primeira fase de grupos, zero golos. Depois, abriu a torneira e ninguém o travou.
Mas a Holanda esteve quase a surpreender.
A Holanda surpreendeu-me num aspeto.
Qual?
O meu adjunto foi ver os treinos da Holanda e veio com o trabalho de casa todo feito. Perguntei ao Sapo se o Nanninga ia jogar. O Nanninga era um holandês alto, bem mais alto que os outros. Se jogasse, obrigar-me-ia a mudar ligeiramente a táctica. O Sapo disse-me que não, que o Nanninga nem sequer conseguia andar. Tenta lá perceber o meu espanto quando o Nanninga entra em campo. Olho para o Sapo e apetecia comê-lo vivo. Multiplica por mil a minha angústia quando o Nanninga marca o empate, de cabeça. O Sapo, coitado, todo encolhido.
Uma seleção sem Maradona.
A minha lógica de raciocínio foi esta: Maradona era muito novo, com imensa margem de progressão, e havia jogadores já veteranos, para quem só havia mais esta oportunidade de jogar um Mundial. Daí que tenha chamado o Alonso. E não o Maradona.
E o Maradona?
Picou-se, claro. Mas o Maradona é o Maradona. No ano seguinte, fomos campeões do mundo sub-20 e ele foi eleito o melhor jogador da competição. É um craque da cabeça aos pés, tem tudo.
Li algures que, uma vez, a Argentina jogou com o Benfica e o Menotti era o treinador.
Sim, sim, do que te lembraste.
E então?
Sempre respeitei a história e o Benfica faz parte dela. A equipa que acabou com o domínio do Real Madrid na Taça dos Campeões. Eles vieram num dia, jogaram no outro e regressaram a Portugal.
Uiii, viagem-relâmpago?
Não dava para mais. Nós queríamos só fazer um último teste.
E foi um bom teste?
Não me digas nada, o público despediu-se com uma assobiadela valente.
Quanto ficou?
Um-zero para nós.
E assobiaram a selecção?
Quando se é grande, a exigência é maior. Éramos os campeões mundiais. Jogámos mal, errámos passes e só marcámos porque o Kempes atirou uma pedrada lá para dentro. A bola entrou rente ao poste, sem hipótese para o Bento.
Sabe quem é o Bento?
Se sei? O Bento não defendia, voava. Vocês, portugueses, também devem ter essa noção, não? Têm de ter. Aliás, ele também voou nesse golo mas não a apanhou.
Com que então, 1-0 e assobiados?
Foi o pior jogo da minha era.
Xiiiii.
Sabes que as tácticas não são inventadas pelos treinadores e sim resolvidas pelos jogadores. Quanto melhores os jogadores, mais eficaz e brilhante é o sistema. Naquele dia, pffff.
E mais?
Não me lembro, só do Maradona.
Espere aí, o Maradona jogou?
Jogou. Quer dizer, não.
Então?
Aí é que está, ele esteve lá mas não esteve. Saiu lesionado. Apanhou tanto que achei por bem substituí-lo não fosse aquilo dar para o torto. Quem ficou furioso foi o Núñez.
Quem?
O Núñez, presidente do Barcelona. Eles andavam em cima do Maradona para contratá-lo antes do Mundial-82.
E conseguiram?
Sim [contrato assinado uma semana depois do jogo com o Benfica, a troco de 1,4 milhões de contos]. E o Núñez teve uma tirada ótima sobre a marcação cerrada: “O Maradona foi perseguido até nos pontapés de baliza.”
[a pergunta persiste: quem é o marcador implacável de Maradona? Explica-nos, Carlos Manuel. “Esse jogo foi no fim da era Baroti e ele meteu o Paulo Campos, um avançado brasileiro contratado ao Portimonense, a marcar o Maradona. E deu-lhe tanto… ]
Maradona é melhor que Messi?
Repara, o Maradona levou o Nápoles a dois títulos de campeão de Itália e ainda a uma Taça UEFA. Nunca visto, jamais repetido. Além disso, é o capitão da seleção campeã mundial em 1986. Maradona tem tudo, embora jogasse numa equipa aceitável, que não uma de topo mundial. Percebes? Messi joga com tigres ao seu lado, é diferente.
Qual a diferença do futebol jovem de então com o de agora?
Antes de responder, vou dar-te um exemplo. Nunca gostei de matemática, sabes porquê?
Ni idea.
Porque tive dois monstros a dar-me aulas, duas professoras que me fizeram detestá-la. Com o futebol é igual. Se apanhas um treinador sem paciência, não aprecias o que fazes. Ou quando muito, não aprecias tanto. Quer isto dizer que o treinador mais importante é o da formação. Todos os clubes de topo deviam ter treinadores sensacionais na formação. O Real Madrid devia ter, o Barcelona também, e por aí fora.
Falou do Barcelona. O Menotti também foi treinador deles, não foi?
Sim, sim, e escreve uma coisa: não foi o Guardiola a usar o falso nove, nem o Cruijff. Fui eu, jaja.
https://www.youtube.com/watch?v=Zu96ergzDqs
Então?
Comigo, Maradona era o 9, com Carrasco e Marcos nos extremos. Nem imaginas os assobios que ouvíamos dos adeptos. Com 0-0, então, pffff, o desânimo era completo no balneário. Com 3-0, já não. Era olés e olés por todo o estádio.
Em que é que ficamos então, foi bom ou mau? Vejo aqui que ganhou a Taça do Rei e a Taça da Liga em 1982/83, mas perdeu o campeonato.
A minha mãe morreu ao mesmo tempo que a democracia voltava à Argentina. Uma coisa e outra fizeram-me voltar à terra. Os números estão certos, ganhámos a Taça do Rei mas nessa altura era uma copita. Agora é que transformam a Taça do Rei num acontecimento.
A sua imagem de marca era o tabaco.
Estava sempre no banco a fumar, desde o Mundial-78 até há uns anos cinco/seis anos.
Então porquê?
Tive de parar de fumar e fui operado. Por mim, tudo bem. Os médicos é que sabem do meu pulmão, eu apenas sei de futebol.
E tem sido suportável não fumar desde então?
Para nada. E digo-te mais: mentiram-me. Os médicos disseram-me que era fácil, que o mais difícil seriam os primeiros 30/40 dias. Mentira! O meu tempo de vida estendeu-se mas já não é tão agradável.
E sentir o fumo dos outros?
Ahhh, isso é outra coisa. Uma vez, e já disse numa entrevista ou outra, estava num bar e uma pessoa conhecida pediu-me licença para ir fumar noutro lado, eu intercedi e disse-lhe que não, que fumasse ali ao meu lado, jaja.
Menotti sempre foi relacionado com futebol-arte. Ainda é assim?
Já escrevi isto mas digo-te, sem problema. O futebol tem que ser encarado como uma arte, e a arte é disciplina. Há obrigações que necessitam de uma ordem, porque nada se cria na desordem. Sempre utilizei o futebol como forma de expressão de valores como estética, beleza e fair-play, com jogadores solidários. As minhas equipas sempre cresceram assim. Daí admirar o Barcelona, sobretudo o trabalho de Guardiola.
Corro o risco de repetir-me, mas então porquê?
Aconteceu com Cruijff, sabes? Ele chegou lá ao Barcelona e escolhe o Bakero.
https://www.youtube.com/watch?v=DCaRuxxd9s8
Um basco, ainda por cima.
Pois, jajaja. É isso, o Bakero. E constrói a equipa à volta dele. É o Bakero e mais dez. Claro que há Zubizarreta, Koeman, Stoitchkov e outros, mas Bakero é o farol. Com Guardiola, é o mesmo. Quantos treinadores fariam de Piqué o extraordinário defesa-central que é? Ou então Busquets? Parece-me um dos fenómenos mais interessantes do futebol espanhol nos últimos anos: Busquets tem técnica, sabe adaptar-se tacticamente a qualquer posição e sacrifica-se por todos. É um fenómeno, não tenhas dúvidas. E Pedro, quem era Pedro antes de Guardiola? Antes e, já agora, depois. Sem falar nos Messis, Xavis, Iniestas… Iniesta.
Desculpe?
Iniesta é o maior. Que jogador.
É o tal futebol-arte.
Sin duda.
E o Guardiola?
Exprime-se muito bem. Falámos muito sobre futebol.
Menotti e Guardiola?
Sim, antes de se agarrar ao cargo de treinador, veio cá falar com pessoas ligadas ao futebol. Uma delas, fui eu. E gostei de o receber porque não veio cá beber da minha experência nem pedir-me conselhos. Veio aqui com uma ideia definida e apenas queria falar de futebol, alguns conceitos. Começámos a jantar às sete-e-tal, acabámos às três da manhã. Gostei muito das suas inquietações, percebi que ia longe.
Foi bem sucedido, portanto?
Nós somos treinadores para colocar 11 homens a jogar futebol. De qualidade, de referência, para convidar as pessoas a visitarem-nos duas vezes por mês, ao domingo. Se é assim, temos de criar um grupo, uma equipa. Ninguém é mais do que ninguém. Isto é uma orquestra e todos tocam a nota mais afinada possível no momento ideal. Não há como enganar. O Barça é assim. Pode-se contratar o melhor violencista, o melhor pianista e o melhor saxofonista. Só vale a pena se todos se esforçarem para o mesmo lado. Falo de sentido coletivo. Os melhores músicos para um maestro capaz de os conduzir. Se for assim, a equipa está no caminho certo. O Barcelona traça esse percurso com habilidade, golos e classe. Não é à toa.
É preciso coragem?
Diria que sim. Sabes, pertenço a uma geração que lutou muito para mudar o mundo. Hoje, olho para o mundo e vejo que poucos têm tudo e muitos têm pouco. Pergunto-me se valeu a pena, não me agrada. Sempre vivi com coragem e esperança. Agora, a coragem permanece em mim, a esperança deixo para os mais novos.