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Milan Kundera (1929-2023): o narrador da inquietação

Um exilado da geografia natal, (re)abraçado décadas mais tarde como prova da inevitabilidade de uma obra literária, social e política referencial como poucas. O escritor morreu aos 94 anos.

Após doença prolongada, o eterno candidato ao Nobel da Literatura morreu sem o galardão. Entre romance, ensaio, dramaturgia e poesia, Kundera foi fazendo uma obra compacta que lhe foi valendo prémios como o Médicis (1973), o Mondello (1978), o Comon Wealth (1981), o Jerusalém (1985) ou o Prémio Independent de Literatura Estrangeira (1991).

Em adolescente, o autor filiou-se no Partido Comunista. Depois da proximidade, houve o afastamento — e isto sem que Kundera se tornasse dissidente. Ainda assim, o autor viria a ser expulso em 1950 por discordâncias políticas, tendo sido acusado de “actividades anti-partidárias”, acusação que levou a uma perseguição posterior. Mas já lá vamos. Nesse ano, o autor tivera também de interromper os estudos por razões políticas. O facto é que o episódio conflituoso serviu para dar gás ao primeiro livro de Kundera, A Brincadeira, publicação que chegou às estantes em 1967. A Brincadeira fora escrito entre 1962 e 1965, e marcou o início de uma obra longa. Mais do que isso, marcou logo à cabeça a chegada de um grande escritor – e de um escritor que vinha para meter as mãos na vida. No ano seguinte à sua publicação, o livro venceu o Prémio da União de Escritores da Checoslováquia.

Pouco depois, ainda no mesmo ano, a União Soviética invadiu a Checoslováquia, o livro foi alvo de processos censórios e o autor foi perseguido por críticas ao regime comunista. Como se previa, num regime totalitário, foi o que bastou para a coisa dar para o torto. As críticas marcaram a forma de agir de Kundera e a perseguição moldou-lhe as décadas posteriores. A partir daí, houve uma guinada no seu rumo, tanto como cidadão como na atividade da escrita (divisão um pouco redundante, quando falamos de um escritor que fez da vida observada, imaginada e vivida a sua matéria prima).

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Milan Kundera com a sua mulher, Věra Hrabánková, fotografados em Paris em 1990

Gamma-Rapho via Getty Images

Pouco depois disto, Kundera publicou também O Livro dos Amores Risíveis (1969), em que, para lá de uma contundente crítica ao regime, o autor se referiu a Gustav Husak, o presidente do país de então, como “o presidente do esquecimento”. O verniz estalava sem hipótese de cura. Tanto o primeiro como o segundo livro pegavam nas ilusões políticas das geração do golpe de Praga, que em 1948 levou os comunistas ao poder. O cunho crítico não caiu bem e o autor, logo após a Primavera de Praga, ficou na lista negra do regime.

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Aqui, cabe ainda dizer que o passado político de Kundera foi conturbado e, em 2008, uma revista checa chegou a exumar um documento da polícia comunista de Praga, datado de 1950. Ali se sugeriu que o autor havia denunciado um concidadão durante o período estalinista. A história nunca ficou esclarecida, uma vez que Kundera não respondeu, embora escritores tão considerados, elogiados (e também criticados, convenhamos) como Roth e García Márquez tenham falado publicamente em sua defesa.

Politicamente perseguido, o autor exilou-se em França em 1975. Em 1979, o seu país de origem retirou-lhe a nacionalidade. Esta decisão imiscuiu-se a sério na sua escrita, já que foi o que bastou para que a língua de trabalho de Kundera se alterasse: em vez de checo, passou a escrever em francês. Em 1981, François Mitterrand, então presidente de França (1981-1995), concedeu ao escritor a nacionalidade francesa, passando Kundera a referir-se a Paris como a sua “segunda cidade-Natal”. O afastamento em relação ao seu país de origem tornava-se cada vez mais evidente (além disso, e em certa medida, inevitável). Esta situação viria a durar quase toda a vida, já que só em 2019 é que o governo da República Checa, num acto de reparação de injustiça, resolveu devolver-lhe a nacionalidade.

Tendo nascido, vivido, crescido, num ambiente conturbado, em que os fios da história mexem com os fios dos destinos individuais, o autor levou à sua prosa esse movimento que, ao invés de dicotómico, é complementar, debatendo e explorando a condição humana perante tempos conturbados.

Os conflitos da Europa central e o que Kundera ia encarando como uma crise ocidental foram sempre fontes de preocupação suas, tendo marcado a sua obra. Ainda este mês, a D. Quixote, editora do autor em Portugal, publicou Um Ocidente Sequestrado – ou a tragédia da Europa Central. A publicação reúne dois textos antigos: um data de 1967 e é o discurso que o autor fez no Congresso de Escritores da Checoslováquia; o outro foi publicado em novembro de 1983 na revista Le Débat.

A sinopse da própria editora diz o seguinte:

“Apresentados respetivamente por Jacques Rupnik e Pierre Nora, estes textos debatem corajosamente as ameaças que pesam sobre a Europa e a sua identidade cultural, a necessidade de liberdade e de autonomia dos criadores artísticos contra uma cultura de propaganda e contra a censura, o papel da barbárie na vida das nações e dos seus povos. São surpreendentemente premonitórios, como acontece muitas vezes com os grandes escritores. Passos importantíssimos foram dados na construção dessa Europa livre e democrática, e a história deu razão a Milan Kundera: as «pequenas nações» centro-europeias integram agora esse mundo fundado numa cultura livre e respeitadora das línguas e das tradições dos povos que as compõem. Mas as ameaças estão de novo bem à vista, com o ressurgimento das ideias censórias e autoritárias e com a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022. As batalhas por essa Europa sonhada por Kundera voltam à primeira linha das nossas preocupações. Eis um livro com uma missão: a de armar o nosso pensamento ajudando-nos a travar essas batalhas.”

O livro vai mostrando Kundera como pensador social, muito além de escritor. Aliás, esse pensamento social já fica visível na forma sensível e atenta como o autor se debruçava sobre questões de crises ocidentais ou de alinhamentos morais/anímicos nos seus livros. Tendo nascido, vivido, crescido, num ambiente conturbado, em que os fios da história mexem com os fios dos destinos individuais, o autor levou à sua prosa esse movimento que, ao invés de dicotómico, é complementar, debatendo e explorando a condição humana perante tempos conturbados. Desta forma, texto une-se a contexto, e contexto é mais do que pano de fundo: em vez disso, é um elemento interno da própria criação literária – ou, em sentido mais amplo, textual –, fundando-a ao invés de meramente a possibilitar.

Agora que morreu, aos 94 anos, o autor deixa para trás uma obra que vai oscilando entre o quotidiano palpável e cogitações filosóficas subjectivas

A D. Quixote, que acaba então de publicar este Um Ocidente Sequestrado – ou a tragédia da Europa Central, manifestou na manhã desta quarta-feira 12 de julho a sua “grande tristeza” pela morte daquele que de forma célebre integrou com classe e distinção a lista dos nóbeis que nunca o foram. O autor, que tantas vezes figurou na lista de possíveis vencedores do prémio maior das letras mundiais, nunca o recebeu, assim como nunca chegou a pertencer à Academia Francesa. Ainda assim, é considerado um dos maiores autores da contemporaneidade, e para isso muito contribuiu a publicação de A Insustentável Leveza do Ser, em 1984, considerada a sua magnum opus.

Trata-se de um quadrado amoroso e sexual, uma história feita de personagens que procuram uma libertação feliz através das possibilidades da sexualidade sem dogmas. Ao mesmo tempo, as mesmas quatro personagens que dão os corpos à história são também observadores e peões da História em mudança, de uma Praga em 1968 que é tanto cenário de prisão como de anseio por tempos sem amarras. Daí ter-se tornado uma leitura influente para dgerações distinta, um marco de crescimento e de reflexão.

Este romance, que gira em torno da condição humana, volta-se para o destino não só de um país, mas também de uma civilização inteira, através de perspectivas entre a melancolia e a revolta. Com uma grande multiplicidade estilística, o livro teve várias traduções, arrebanhou leitores e tornou-se, sem dúvida, no maior sucesso literário da vida de Kundera. Considerado um dos romances míticos do século XX, o livro foi adaptado ao cinema em 1988 por Philip Kaufmann, norte-americano, tendo tido Juliette Binoche e Daniel Day-Lewis no elenco. Aliando-se a obra de ficção à obra de não-ficção de Kundera, vê-se um homem focado nas crises da coetaneidade, tanto políticas como existenciais – ou existenciais por serem políticas.

O trabalho de Milan Kundera valeu sempre por si mesmo, furtando-se o autor a ter muito a dizer sobre a matéria. Assim se justifica que a última entrevista que tenha dado guarde a data de 1986, dois anos após a sua última aparição na televisão. Um ermita do mundo que o empurrou a mudar-se e a observar a mudança à sua volta.

Em 2014, Kundera publicou o seu último romance, intitulado A festa da insignificância, que a D. Quixote publicou em Portugal ainda no ano da publicação original. O livro marcou o regresso à ficção ao fim de treze anos, tendo sido, por isso, muito aguardado. Em cena, há quatro amigos em Paris, que vivem à deriva, num movimento inócuo, estando em cena um quadro contemporâneo esvaziado de sentido. Também aqui se vêem os temas e as sensações que marcaram, ao longo das décadas, a sua produção literária.

De resto, o trabalho de Milan Kundera valeu sempre por si mesmo, furtando-se o autor a ter muito a dizer sobre a matéria. Assim se justifica que a última entrevista que tenha dado guarde a data de 1986, dois anos após a sua última aparição na televisão. Um ermita do mundo que o empurrou a mudar-se e a observar a mudança à sua volta.

Agora que morreu, aos 94 anos, o autor deixa para trás uma obra que vai oscilando entre o quotidiano palpável e cogitações filosóficas subjectivas. Em 2011, os seus livros foram publicados pela Bibliothèque de la Pléiade, uma colecção editada pela Gallimard de maior prestígio dentro das letras. Com traduções para cerca de 40 línguas, Kundera é também um dos autores mais traduzidos do mundo.

A autora escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico

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