Se naquela manhã de fim de agosto de 2018 Carola García Vinuesa não tivesse atendido o telefone, o mais certo é que Kathleen Folbigg continuasse a ser “a mulher mais odiada da Austrália”, condenada a 40 anos de prisão pelo homicídio involuntário do primeiro filho, aos 19 dias de vida, e pelo assassínio dos outros três bebés que teve depois dele — Caleb, Patrick, Sarah e Laura, assim se chamavam as crianças, que morreram todas antes de completarem dois anos de vida.
Espanhola, natural de Cádiz, a imunologista e geneticista tinha-se mudado para a Austrália anos antes por amor mas, pelo caminho, tinha já sedimentado uma carreira de sucesso, ganho prestigiados prémios científicos e, mais importante ainda, recebido uma bolsa para abrir o Centro de Imunologia Personalizada do país, na Universidade Nacional da Austrália, onde também dava aulas e era responsável pelo Departamento de Imunologia e Doenças Infecciosas.
Naquela manhã de quarta-feira, fechada no seu gabinete em Camberra, Carola Vinuesa, há pelo menos dois anos embrenhada numa investigação sobre doenças autoimunes que daria origem a uma descoberta sobre lúpus, que só veria a luz do dia em 2022, mas correria o mundo inteiro, não tinha o prato cheio, tinha o prato a abarrotar.
Ainda assim, atendeu o telefone e quando, do outro lado, um antigo aluno, com quem nem sequer tinha especial afinidade, lhe pediu que revisse um caso antigo e complicado, de uma mulher que tinha sido condenada por matar os próprios filhos, num julgamento sem provas físicas ou materiais, disse-lhe que sim, que ia dar uma vista de olhos.
David Wallace, estudante de Direito que anos antes tinha feito uma especialização em ciência, era agora um advogado na área da saúde. Falou-lhe numa reportagem que tinha visto, no famoso “Australian Story”, sobre o crime que tinha chocado a Austrália no início do milénio — e de que Carola nunca tinha sequer ouvido falar. Queria saber se a investigadora espanhola, uma das primeiras pessoas na Austrália a utilizar tecnologia de sequenciação genómica para procurar ligações entre doenças e variações genéticas, achava que valia a pena analisar o ADN das quatro crianças alegadamente mortas pela mãe, todas entre o primeiro mês e o ano e meio de vida, para perceber se Kathleen, que continuava a clamar a sua inocência, tinha ou não sido presa injustamente.
Perdão para mãe australiana condenada pela morte de quatro filhos
A ideia era encontrar, 15 anos depois e com a tecnologia entretanto existente, provas que, pelo menos, levantassem dúvidas sobre a condenação, apoiada sobretudo em excertos dos diários da mulher e nas teses de Roy Meadow, o pediatra britânico que nos anos 1970 descreveu a síndrome de Münchhausen por procuração — e acabou por cair em desgraça e a ser proibido de exercer, quando se provou que os filhos de Sally Clark, uma mãe inglesa que ele mesmo tinha ajudado a condenar a prisão perpétua, por alegadamente ter morto os dois filhos bebés, tinham afinal morrido de Síndrome de Morte Súbita do Lactente.
Em tribunal, em 1999, o especialista Roy Meadow garantiu que a probabilidade de dois irmãos morrerem de morte súbita era de 1 em 73 milhões. “Uma morte súbita de um bebé é uma tragédia, duas são suspeitas e três são homicídios até prova em contrário”, já tinha escrito uma década antes, em “O ABC dos Abusos Infantis”.
Condenada a passar o resto da vida na prisão, Sally Clark acabaria por ser libertada três anos depois, em 2003, justamente o ano em que Kathleen Folbigg foi sentenciada a 40 anos de prisão sem possibilidade de liberdade condicional durante 30. Cinco anos depois de ser libertada, a inglesa, então com 42, foi encontrada morta em casa, vítima de intoxicação aguda por álcool, que na altura as autoridades declararam “acidental” mas que os seus sempre acreditaram ter sido um ato planeado de desistência. “Nunca recuperou totalmente dos efeitos deste terrível erro judicial”, foi como a família, que se manteve sempre ao seu lado, reagiu, em comunicado, à tragédia.
Quando recebeu o telefonema para ajudar a defesa de Kathleen Folbigg estava a trabalhar na sua investigação sobre lúpus. Ainda assim, aceitou de imediato rever o caso. Porquê?
Inicialmente não foram os advogados de defesa da Kathleen que me contactaram, foi apenas um advogado que, por acaso, tinha tirado um curso de ciências e fez a tese no meu departamento. Tinha visto um programa de televisão, sobre um caso que tinha estudado na Faculdade de Direito. Disse-me que sempre achou um pouco estranho que ela tivesse sido condenada apenas com provas circunstanciais, e que nesse programa em particular estavam a falar da patologia das crianças e havia bastantes imagens da miocardite de Laura, a filha mais velha, a que o médico legista disse ter tido “morte indeterminada” — essencialmente porque tinha sido avisado de que tinha havido três outras mortes na família, porque, na verdade, ela tinha uma doença cardíaca bastante grave.
Então este cientista telefonou-me e disse: ‘Acha que pode haver uma causa genética? E se houver uma causa genética, temos as tecnologias para fazer este trabalho?’. Acho que se lembrou de que estávamos a criar um centro de sequenciação de genomas humanos e queria saber se era possível fazer isso e sequenciar genomas de crianças que tinham morrido, e todo esse tipo de coisas.
Contou-me a história das crianças e disse-me que pelo menos duas delas estavam muito doentes, um dos rapazes tinha epilepsia grave e cegueira, e uma das raparigas tinha miocardite. E depois outra rapariga tinha tido uma infeção respiratória na altura da morte, e o primeiro rapaz tinha tido laringomalácia [uma anomalia congénita da laringe, relativamente comum em crianças com menos de um ano], tudo isso parecia… Eu sou médica, por isso, para mim, tudo aquilo me pareceu estranho, e também lhe disse que tínhamos acabado de sequenciar uma família na Europa que nos tinha sido remetida, onde havia quatro mortes na família…
Uma família na Macedónia, certo?
Sim, com mortes a rondar os 20 dias de vida. Por isso, na altura, disse-lhe: ‘Isto pode ser feito, acho que vale mesmo a pena fazê-lo se ainda não foi feito’. Mas disse-lhe também que não sabia se éramos as melhores pessoas para isso: ‘Como se trata de um caso legal, talvez seja melhor arranjar uma instituição governamental ou uma equipa de pessoas que trabalhem especificamente nesta área’. Então ele falou com os advogados de Kathleen Folbigg, que tentaram mas não conseguiram encontrar ninguém que quisesse fazer isto. Telefonaram-me e eu disse: ‘Se ninguém o quer fazer, acho que deve ser feito, porque quando ouvi toda esta história, pareceu-me muito bizarra e achei que valia a pena fazê-lo’. Na altura, também não sabia que ia acabar por dar tanto trabalho, tantos relatórios e tantos processos legais… Pensei que, se houvesse uma causa genética, em 50% dos casos a podíamos encontrar, e ofereci-me para ajudar.
Começaram por analisar a mãe e não as crianças. Porquê?
No início pensámos que seria bastante difícil obter autorização para aceder às amostras das crianças. Mas muitas destas doenças são hereditárias, por isso havia uma hipótese — podia ser remota, mas havia uma hipótese — de que a mutação pudesse estar na mãe. Por isso, decidimos começar por ela. E, nessa altura, os advogados ficaram bastante interessados e facilitaram o nosso acesso à prisão.
Nessa altura, Kathleen estava a cumprir a pena a que tinha sido condenada. O processo já tinha sido reaberto?
Uma semana depois de esse programa de TV ir para o ar, o Procurador-Geral de Nova Gales do Sul anunciou um novo inquérito — isto foi em 2018 —, mas ainda não havia intenção de fazer qualquer investigação genética, as equipas não tinham sido reunidas, os advogados não sabiam… Quer dizer, acho que nem sequer tinham pensado em ir pela genética…
Como não?
Bem, podiam ter pensado nisso, mas ainda não havia trabalho feito. Foi depois de fazermos esta descoberta, e de a submetermos aos advogados, que eles enviaram o pedido para a Coroa, que depois reuniu uma equipa de geneticistas. Pediram-me entretanto para participar nessa equipa, para analisar o genoma das crianças.
Essa descoberta de que fala foi a mutação que detetaram no gene CALM2 de Kathleen Folbigg?
Sim. Recolhemos as amostras dela em setembro, fizemos toda a sequenciação entre outubro e novembro, e encontrámos o resultado no final de novembro de 2018. No dia 2 de dezembro enviámos uma carta aos advogados a dizer que tínhamos encontrado esta mutação e, algumas semanas depois, recebi um convite para fazer parte desta equipa de genética que montaram no final de 2018. Em janeiro de 2019 já estávamos a ter reuniões.
O que é ao certo este gene CALM 2, que mutação é que encontraram na mãe das crianças e por que é que pensaram que a chave para a morte delas podia estar ali?
É uma mutação num gene que codifica uma proteína chamada Calmodulina, que sabemos que é essencial para um ritmo cardíaco normal. Por isso, se a Calmodulina sofrer uma mutação, o coração não bate ritmicamente e podem ocorrer arritmias que causam a morte. Os genes da Calmodulina são extremamente conservados — existem três genes, o CALM1, o CALM2 e o CALM3, que codificam a Calmodulina para uma proteína idêntica e os três são essenciais. Esta mutação em particular está num resíduo chamado Glicina 114, que é tão conservado que é idêntico em todos os animais, em todas as plantas e na levedura. É por isso que sabemos que esse resíduo é muito importante para a vida e que, provavelmente, se sofrer uma mutação, vamos ter um problema.
Mas Kathleen Folbigg não era saudável?
Bem, na altura do inquérito de 2019 ela ainda não tinha feito um exame cardíaco completo, mas já tinha dito ao meu colega, que recolheu as amostras na prisão, que tinha tido muitos episódios de desmaio, o que é típico de arritmias cardíacas — muitas síncopes, chamamos-lhes assim. Em criança, em adulta, muitas delas testemunhadas, muitas delas na prisão, após exercício físico, com stress… Portanto, isso já nos dizia que ela provavelmente tinha alguns sintomas, mas não tinha feito um exame cardíaco completo, isso só aconteceu depois das audições do inquérito de 2019, e só agora foi analisado em pormenor.
Agora, muitos especialistas acham que ela provavelmente tem um sistema cardiovascular anormal, com sinais de TVPC [Taquicardia Ventricular Polimórfica Catecolaminérgica], que é uma dessas arritmias que ocorrem com o stress. E também sabemos que, em algumas famílias, nem todos os membros são afetados quando têm a mutação, porque pode haver modificadores genéticos — genes que atenuam o risco e outros que aumentam o risco. Na verdade, acabámos por descobrir que as duas raparigas tinham uma segunda variante do pai num gene que agrava o risco deste tipo de arritmias cardíacas. E isso já foi descrito antes; essa variante específica do gene REM2 agrava o risco.
Portanto, basicamente é complexo, mas na altura do inquérito de 2019 tínhamos bastantes provas de que isto poderia ser prejudicial. Eram apenas previsões, mas muitas delas eram previsões bioinformáticas, com um sistema de pontuação que nos dizia que estas circunstâncias têm de ser levadas a sério. Esta mutação particular nunca foi vista no mundo, ocorre num resíduo que não é tolerante à substituição, porque foi conservado através da evolução em todas as espécies, e este é um gene que já tinha sido objeto de algumas publicações que diziam que pode causar morte cardíaca súbita na infância. Portanto, com tudo isto, como geneticista, não tinha muitas dúvidas…
O passado de terror de uma pretensa “baby-killer”, abandonada pela mãe — que o pai assassinou
No dia em que o antigo aluno lhe ligou e lhe enviou uma série de ficheiros, com exames, certidões de óbito, registos médicos e relatórios forenses, ainda antes de fazer todas estas descobertas, Carola García Vinuesa, hoje com 54 anos, intuiu imediatamente que valia a pena investigar. “Como mãe, não consigo pensar em nenhuma causa mais digna para investir tempo e esforço. Custa-me acreditar que haja alguém na prisão por causa disto”, escreveu no e-mail que lhe enviou nessa mesma noite, já as duas filhas adolescentes, com quem então morava, sozinha, estavam na cama.
Na altura, a cientista, espanhola, ainda não fazia ideia de quão mediático o caso de Kathleen Folbigg, uma espécie de inimiga pública número 1, era em toda a Austrália.
Em 2018, 15 anos depois do julgamento, a mulher continuava sujeita a um regime de 22 horas por dia fechada, sozinha numa cela, no complexo correcional de segurança máxima de Silverwater, a cerca de 20 quilómetros de Sydney — os “baby killers”, “assassinos de crianças”, são dos alvos mais apetecíveis nas prisões em qualquer parte do mundo, escrevia a Wired, num artigo publicado no verão passado.
Em 2003, ao longo do julgamento no Supremo Tribunal de Nova Gales do Sul, em Sydney, a história familiar de Kathleen Folbigg não foi revelada, para não influenciar o júri, mas assim que a sentença foi anunciada, a imprensa mergulhou a fundo no passado da mulher, então com 35 anos.
Austrália. Condenada a 30 anos pela morte dos seus quatro bebés pode, afinal, estar inocente
Filha de um condutor de guindastes e de uma trabalhadora fabril, Kathleen Megan Donovan Britton nasceu a 14 de junho de 1967 em Balmain, então um bairro operário nos subúrbios de Sydney, mas com apenas 18 meses foi entregue aos cuidados da avó materna e de uma tia.
Semanas depois de a mãe, também ela Kathleen, ter saído de casa, no rescaldo de mais uma discussão, particularmente violenta, com o marido, Thomas encontrou-a na rua e tentou obrigá-la a voltar para a casa e para a filha bebé que tinha abandonado. Quando ela se recusou, ele, visivelmente embriagado, atacou-a com uma faca de trinchar. 24 golpes depois, já a vida se tinha esvaído de Kathleen, Thomas sentou-se no chão, com o seu corpo inerte ao colo, e embalou-a até chegarem polícia e paramédicos. Não consta que tenha voltado a ver a filha depois disso.
Após um primeiro ano passado com a avó e a tia, a pequena Kathleen acabou por ser enviada para um orfanato, de onde saiu aos 3, para viver com uma família de acolhimento em Kotara, um subúrbio de Newcastle, cidade costeira a 160 quilómetros de Sydney.
Até aos 17 anos, viveu com os Marlborough — ele era um pai distante, ela uma mãe austera, que lhe batia com o cabo de um espanador quando se portava mal, escreveram os jornais australianos, depois de a “baby killer” ter sido condenada a 40 anos de prisão.
Depois disso, Kathleen decidiu ficar por conta própria: deixou o liceu por acabar e foi viver com uma amiga. Foi nessa fase, escassos meses depois, numa discoteca, que conheceu Craig Folbigg, seis anos mais velho, católico, condutor de empilhadoras na maior empresa mineira da cidade. Três anos mais tarde, em 1987, estavam casados. No primeiro dia de fevereiro de 1989, tiveram o primeiro filho. Até 1997, veriam nascer outros três bebés. Nenhum deles viveu para lá dos dois primeiros anos de vida.
Foi Craig quem, em 2001, já separado de Kathleen, apresentou a queixa na polícia que deu início a todo o processo judicial, depois de ter encontrado um antigo diário dela e lido excertos em que falava de “culpa” e no peso da herança genética que nunca a faria deixar de ser “filha do seu pai”.
Em tribunal, explica Carola Vinuesa, terão sido apresentadas algumas partes, descontextualizadas, que entretanto a imprensa australiana publicou. “A culpa de me sentir responsável por todos eles assombra-me, o medo de que volte a acontecer assombra-me… o que mais me assusta será quando estiver sozinha com o bebé. Como é que vou ultrapassar isso? Derrotar isso?”, terá escrito Kathleen Folbigg numa noite de insónia. “Que Deus ajude o dia em que elas vierem à tona e eu me lembrar”, escreveu noutra ocasião, meses antes do nascimento da última filha, alegadamente a propósito da repressão de memórias perturbadoras. “Esse será o dia em que me vão trancar e deitar fora a chave. Algo que tenho a certeza que irá acontecer um dia.”
“Foram milhares de horas de investigação mas o juiz já tinha formado uma opinião: os diários eram incriminatórios e a ciência era complexa”
Se antes do julgamento já tinha sido abandonada pelo marido, durante e depois dele, Kathleen seria também abandonada pelo resto da família e amigos — ao seu lado, manteve-se uma amiga de longa data, com nome de cantora famosa, Tracy Chapman, pouco mais. Lea, a irmã adotiva, não só foi testemunha da acusação, como passou a um jornal australiano uma carta que Kathleen lhe escreveu, após ter sido considerada culpada — a irmã era “um monstro”, foi como se justificou, permitindo a publicação.
“É um dia triste quando uma mãe é presa pelo simples facto de ser uma mãe normal, que escreveu as suas emoções, ansiedades e frustrações na porcaria de um caderno”, tinha desabafado na carta Kathleen, que ao ouvir o veredicto do júri caiu no chão do tribunal, em pranto. Durante o julgamento, e depois dele, a mãe de Caleb, Patrick, Sarah e Laura manteve sempre que era inocente.
Fez todas estas descobertas no final de 2018 e apresentou o caso perante um juiz. Em julho de 2019 saiu finalmente a decisão. Que não foi favorável à defesa de Kathleen Folbigg.
Sim, no inquérito de 2019, o juiz disse que não estava convencido pela ciência, porque ainda havia um nível de incerteza, estava mais convencido pelos diários. Nesta altura não tínhamos provas definitivas, tínhamos previsões fortes — que se tornaram ainda mais fortes após a fase de audiências. Foi nessa altura que encontrámos uma segunda família na Europa com uma mutação também na Glicina 114 da Calmodulina, com uma criança que tinha morrido e uma irmã que tinha tido uma paragem cardíaca. O famoso professor Peter Schwartz, especialista em Calmodulina, escreveu uma carta ao juiz: ‘Na minha opinião, há uma grande probabilidade de isto ser patogénico, esta condenação é prematura e o inquérito deve ser reaberto”. Mas a carta chegou tarde, e o juiz não reabriu o inquérito porque já tinha formado uma opinião de que os diários eram incriminatórios e a ciência era complexa.
Teve oportunidade de ler os diários?
No primeiro inquérito, deram-nos umas pastas com uma série de excertos dos diários. Portanto, não nos deram apenas frases, deram-nos páginas inteiras, por isso, não os li na totalidade, mas li muitas páginas. E, sim, algumas partes são duras, mas eu também sou mãe. Já tive filhos a gritar e a chorar toda a noite, já me senti responsável quando eles estavam doentes. Por isso, para mim, não me pareceram necessariamente tão terríveis assim. Também me disseram que, no julgamento original, retiraram algumas frases do contexto e que as deram ao júri. Por isso, na minha cabeça, não formei uma opinião, mas pensei: ‘Olha, eu também podia ter escrito que só queria que a minha filha se calasse, e se ela tivesse morrido talvez pudesse ter-me culpado também’. Não sei… Quero dizer, uma das minhas filhas teve cólicas e eu achei que a culpa era minha, porque estava muito stressada — e um dos pediatras do hospital disse-me isso mesmo também! É fácil para as mães culparem-se a si próprias quando os filhos estão doentes: ‘Sim, não sou uma boa mãe, estou stressada, estou cansada’.
O seu empenho neste caso pode, de alguma forma, estar relacionado com esse sentimento de maternidade que tem? Conseguiu, de alguma forma, colocar-se na pele desta mulher?
Para ser sincera, estava convencida de que esta mutação tinha de ser patogénica. Porque quando se é geneticista e se vê uma mutação num gene que causa uma doença, e se vê essa mutação no mesmo resíduo a matar uma criança, quase duas, noutra família… Estava convencida de que tinha de ser isto. Fazia sentido, ela tinha síncopes. Por isso, desde o primeiro momento, estava convencida de que não se podia descartar isto. Havia mais do que uma dúvida razoável, era uma probabilidade muito forte. Por isso, para mim, esse foi o principal fator. Mas, claro, sabendo isto, tudo o resto ajudou ainda mais… Ela é uma mãe… Talvez me tenha colocado um pouco nessa posição. E acho que consegui perceber que, para mim, aqueles diários não eram assim tão terríveis. E perguntava-me porque é que o juiz tinha dito que não precisava que ninguém interpretasse os diários por ele — e continuo a pensar, quer dizer, como é que alguém pode tomar uma decisão baseada na interpretação dos diários de outra pessoa?!
Acho que há qualquer coisa no facto de sermos mulheres, de sermos mães e, para mim, tudo fazia muito sentido, por isso não conseguia perceber porque é que a fasquia tinha de estar tão alta em termos de probabilidades. Isso fez-me sentir frustrada e aumentou o meu desejo de o provar. Sabia que, se obtivéssemos um pouco mais de provas em laboratório, o limiar passaria de 90% de probabilidade para 99% de probabilidade. E aí disse: ‘Bem, se é isto que precisamos de fazer, façamo-lo. Publicamos um artigo, reunimos os especialistas e depois não haverá dúvidas’.
E foi aí que começou o trabalho a sério? De que volume de trabalho estamos a falar?
Eu diria que foram milhares de horas. Só o número de relatórios que tivemos de escrever para o primeiro inquérito… Quando se faz uma análise genómica de uma família inteira, passamos por milhares de genes e temos de categorizar todos os genes suspeitos, não apenas o CALM2, tivemos de analisar centenas de genes. Depois, houve muita troca de correspondência com os outros peritos e mais relatórios, relatórios atualizados e respostas a isto e àquilo. Toda a investigação é feita à base de provas, que têm de ser exatas, temos de apresentar tudo e de verificar todos os documentos. Por isso, nesse primeiro inquérito, penso que deve ter havido cinco ou seis relatórios extensos. Depois, tive de enviar e-mails a peritos de todo o mundo, de reunir as propostas que fizeram, encaminhá-las e de encontrar, na Academia das Ciências, uma equipa de peritos que fizesse a validação funcional… É bastante trabalho e, depois, neste novo inquérito, pediram-me que apresentasse um relatório científico sobre o mosaicismo que fizemos…
Mosaicismo? O que é isso?
Para saber se a Kathleen era um mosaico ou não [e perceber, por um lado, se podia ser imune à disfunção provocada pela mutação no CALM2 e, por outro, verificar se tinha a capacidade de transmitir essa mesma mutação aos filhos], fizemos bastantes experiências em diferentes tecidos da Kathleen, cabelo, unhas, urina, sangue, alguns testes diferentes no sangue… Tivemos de juntar tudo isso e de explicar os resultados — o que é outro relatório longo. Gerámos ratos que tinham as mesmas mutações que os rapazes no gene da epilepsia, e tive de apresentar um relatório com todo o trabalho científico feito à volta disso. Depois, fizemos um relatório genómico atualizado, com as novas mutações que encontrámos nas crianças. Depois, houve mais um relatório de 80 páginas com respostas às perguntas que nos fizeram; a seguir uma resposta às novas descobertas da equipa dinamarquesa e à forma como as interpretámos; depois, outra resposta a outro conjunto de factos que nos apresentaram… E como são documentos legais, temos de nos certificar de que estão absolutamente corretos.
Sendo que isto não era o seu trabalho. Não foi paga e, em simultâneo, manteve o seu trabalho de investigação, as suas aulas e a sua família. A que preço fez toda esta investigação?
Era uma mulher que estava na prisão e eu estava convencida de que a genética era sólida, por isso não pensei nisso. Mas teve custos, o stress, o tempo longe da família, o tempo longe do namorado da altura, que não estava muito contente por eu dedicar tantas noites a isto… Não é muito fácil… Mas, por outro lado, eu estava convencida de que era a coisa certa a fazer, por isso tinha de o fazer, não ia simplesmente desistir e esquecer o assunto.
Quando é que percebeu que ia mesmo conseguir tirá-la da prisão?
Quando encontrámos aquela segunda família, imediatamente após as audiências. Na Austrália, assim que as audiências terminam, as ordens de supressão são levantadas, pelo que se pode partilhar a informação com outras pessoas. Fiquei muito preocupada com o facto de, quando realizámos as audiências, não haver nenhum perito em Calmodulina, estávamos todos a falar sem sermos peritos, nós próprios e a outra equipa. Tinha a sensação de que esta mutação era importante e estava sempre a dizer ‘provavelmente é patogénica, provavelmente é patogénica’, mas tive medo de que pudéssemos estar a perder algo muito importante. Por isso, quando as audições terminaram, contactei os três especialistas mundiais em Calmodulina…
Três?! São só três em todo o mundo?
Sim, são três peritos. Dois detêm o registo internacional da Calmodulina, o outro publicou o resto dos artigos. Dois deles responderam-me, um deles o Peter Schwartz. Enviou-me um artigo, que iam publicar em junho, mas de que ele já tinha a pré-impressão e disse: ‘Olhe para a figura 3, vai ver que há uma mutação na Glicina 114. Esta mutação é patogénica. Matou um rapaz e quase matou a irmã dele’. A mutação não era idêntica, era G114W em vez de G114R, uma mutação para o triptofano em vez de para a arginina, mas porque ocorria no mesmo resíduo, do ponto de vista genético, era muito significativa. Nessa altura, pensei: ‘É isto! Vamos entregar esta prova ao juiz, ele vai ver que há outra família com filhos a morrer com uma mutação na Glicina 114, tudo o que foi dito na sala de audiências vai ser posto em perspetiva, a Calmodulina é muito importante, este resíduo em particular é muito importante, e já atinge claramente a pontuação de “provável patogénico”, é isto!’ Pensei mesmo que ela se ia safar. Foi por isso que fiquei tão desiludida quando li o relatório…
Da autópsia número 4, que deu o alarme, à liberdade com pizza e licor de café: “Ligou-me depois de sair da prisão, estava muito, muito feliz”
Foi na madrugada do dia 20 de fevereiro de 1989, trinta anos antes de mais este balde de água fria, que Caleb, o primogénito de Craig e Kathleen Folbigg, casados nem há dois anos, morreu. Tinha apenas 19 dias.
Umas duas horas depois de ter acordado à 1h para o amamentar, Kathleen, então com 22 anos, foi à casa de banho e, no caminho de volta para a cama, passou pelo quarto do bebé, para o aconchegar. “O meu bebé, passa-se alguma coisa com o meu bebé”, gritou para o marido, que rapidamente chamou uma ambulância — mas não havia nada a fazer. Caleb não estava a respirar e não reagiu às tentativas de reanimação da equipa de paramédicos. Não havia qualquer explicação para isso, mas por vezes coisas sem explicação aconteciam e os recém-nascidos não singravam, terão explicado aos inexperientes pais, na altura já se falava em morte súbita do lactente — aliás, foi nesse mesmo ano que o britânico Roy Meadow escreveu o seu “ABC” — mas o conceito não era tão disseminado quanto isso.
Patrick nasceu um ano mais tarde e tinha quatro meses quando o pesadelo se repetiu e Kathleen, mais uma vez acordada a meio da noite para ver se estava tudo bem com o bebé, encontrou-o imóvel e sem respirar, já a ficar azul. Desta vez, foi ela que chamou uma ambulância, enquanto Craig tentava prestar os primeiros socorros ao filho. Uma vez no hospital, Patrick voltou à vida, mas ficou com danos cerebrais que lhe provocaram cegueira parcial e viriam a provocar convulsões regulares. Quatro meses depois, algures durante o dia 13 de fevereiro de 1991, estava Craig no stand de automóveis onde entretanto tinha começado a trabalhar, Kathleen ligou, lavada em lágrimas. Dessa vez não haveria nada a fazer: depois de escassos oito meses de vida, também Patrick foi declarado morto. “Asfixia provocada por ataque epilético”, foi o que determinou a autópsia.
Quando Sarah, a primeira menina, nasceu, em outubro de 1992, Kathleen e Craig decidiram fazer as coisas de forma diferente e colocaram o berço do bebé no próprio quarto, para assim poderem manter uma vigilância praticamente constante. Na noite do dia 10 de agosto do ano seguinte, quando foi ao quarto buscar alguma coisa de que se tinha esquecido, Kathleen não acendeu a luz, para não acordar a filha, mas aproximou-se da cama, para perceber se estava tudo bem. Na ausência do ruído suave da respiração da bebé, correu para o interruptor, apenas para confirmar o pior: também Sarah estava morta, aos 10 meses e 16 dias de vida, também por aparente morte súbita do lactente, como o irmão mais velho.
Quatro anos menos três dias depois, nasceu Laura, a última filha do casal, numa fase em que a relação pouco mais tinha para dar. No dia 19 de agosto de 1997, tinha a bebé 12 dias de vida, foi submetida a uma série de exames clínicos: fizeram-lhe análises ao sangue, submeteram-na a um teste de sono e a outro de deteção de doenças metabólicas hereditárias — os resultados foram todos negativos. Ainda assim, a bebé foi enviada para casa com um monitor cardíaco que transmitia dados diretamente para o hospital, que eventualmente foi devolvido depois de se perceber que Laura era feliz, saudável, e tinha já ultrapassado a barreira do primeiro ano de vida. Depois, no dia 1 de março de 1999, a mãe deitou-a para fazer uma sesta e a bebé não voltou a acordar.
Laura foi declarada morta, aos 18 meses e 22 dias de vida — a autópsia determinou a existência da miocardite a que Carola García Vinuesa se refere. Ainda assim, o médico legista não assentou a grave inflamação do tecido muscular do coração no campo destinado à causa de morte. “A história familiar de ausência de filhos vivos após quatro nados-vivos é muito invulgar. A possibilidade de múltiplos homicídios nesta família não foi excluída”, escreveu, em vez disso.
Quando Craig Folbigg, entretanto já separado da mulher, bateu à porta da esquadra local, com o diário de Kathleen na mão, já tinha sido destacado um detetive para investigar o caso. No dia 19 de abril de 2001 a mãe das crianças foi detida, para ser julgada dois anos mais tarde, com o resultado que se conhece.
Em junho deste ano, já depois de a investigadora espanhola ter conseguido fazer com que o processo fosse reaberto, Kathleen foi libertada. O juiz determinou que existem dúvidas suficientes sobre a forma como foi conduzido o julgamento que a condenou — mas o caso não está ainda encerrado de vez. É por isso que Carola Vinuesa prefere ser cuidadosa e não falar abertamente sobre tudo o que aconteceu ao longo dos últimos anos de avanços e recuos no processo. O que interessa agora, assinala, é que Kathleen Folbigg está livre.
À porta da prisão, para a levar para casa, estava a amiga Tracy Chapman, que entretanto revelou à imprensa internacional como a mãe de Caleb, Patrick, Sarah e Laura passou as primeiras horas de liberdade, depois de duas décadas atrás das grades, a comer pizza e a beber licor de café, enquanto se espantava com iPhones, smart TVs e outros avanços da tecnologia recente. Só faltou contar que também telefonou a Carola Vinuesa, entretanto a morar e trabalhar em Londres, como senior group leader no moderno e conceituado Francis Crick Institute, para lhe agradecer.
Em 2019, o juiz não deu ouvidos à ciência. E depois? O que fez depois?
O relatório do juiz saiu em julho de 2019 e, quando o li, e vi que ele não tinha dado o peso que eu achava que devia ter dado à ciência, fui à Academia Australiana de Ciências. Nesse mesmo dia. Porque pensei: precisamos de melhores processos neste país, como é que alguém pode pesar ciência versus diários?! Especialmente quando a ciência é complexa e temos provas tão boas. Na Academia disseram-me que estavam interessados em que a ciência e a lei se entendessem e pediram-me que lhes enviasse alguns documentos. Ao mesmo tempo, disseram-me que no ano seguinte iam ter um simpósio conjunto da Academia de Direito e da Academia de Ciências e convidaram-me para fazer uma palestra. Um ano depois, em agosto de 2020, falei sobre o caso perante muitos advogados e penso que isso os sensibilizou. E eu, depois disso, percebi também que, no fim de contas, a ciência é levada a sério quando é publicada e quando é revista por pares. O que precisávamos de fazer era de juntar todas as provas num artigo — a genética, a miocardite — e de obter os testes funcionais adicionais que iriam confirmá-las. Foi aí que contactei uma equipa na Dinamarca, liderada pelo Michael Toft-Overgaard, que me tinha sido recomendado como sendo uma das pessoas que poderia fazer o trabalho laboratorial. Ele ficou muito entusiasmado e contactou duas outras equipas que faziam um trabalho semelhante, mas com sistemas diferentes, uma no Canadá e outra nos EUA. Cada uma delas fez ensaios diferentes, em canais diferentes, e em células versus proteína purificada, por isso, quando todos os resultados estavam reunidos, juntámo-los, apresentámo-los, foram revistos por pares, foram publicados e, depois disso, entregámo-los aos advogados, que decidiram apresentar um pedido de perdão, que era a única via legal ainda em aberto.
Foi aí que apresentaram a petição ao governador de Nova Gales do Sul.
Normalmente, o governador atua por recomendação do Procurador-Geral de Nova Gales do Sul, e o Procurador-Geral, um ano depois, decidiu que, em vez de possibilitar um perdão, ia abrir um segundo inquérito. Outro inquérito! Foi então anunciado no final de abril/maio de 2022, começou em novembro e terminou agora, no final de fevereiro de 2023.
E, desta vez, a ciência teve mais peso do que os diários, e Kathleen foi finalmente libertada.
O juiz ainda não produziu um relatório, mas disse ao Procurador-Geral que ia fazer essa recomendação, que havia um nível muito elevado de dúvida razoável. Então, ela foi perdoada e libertada.
Chegou a visitá-la na prisão?
Visitei-a brevemente em julho de 2021, antes de sair da Austrália. Não tínhamos ouvido falar do perdão, eu não estava muito otimista, na verdade até estava bastante pessimista em relação ao caso, mas achei que devia, pelo menos, explicar-lhe as últimas coisas que tínhamos feito. Achei que seria bom explicar-lhe pessoalmente o que estávamos a tentar fazer e que havia muitos cientistas que acreditavam na sua inocência.
Como foi esse encontro?
Foi muito especial, ela pareceu-me muito forte, disse-me algumas coisas muito bonitas, disse-me que a sua vida já tinha mudado, mesmo que não tivesse o perdão: ‘O que os cientistas fizeram por mim já mudou a minha vida’. Depois de ter sido anunciada a petição, em que 90 cientistas, incluindo vencedores do Prémio Nobel, apoiaram o indulto dela, 50 reclusas escreveram-lhe um postal a dizer-lhe que era bem vinda na prisão principal, e que já não precisava de estar isolada. Porque ela estava num confinamento de alta segurança, pela sua própria segurança. Disse-me que, de repente, podia viver numa casinha dentro da prisão com algumas reclusas, partilhar refeições, ver televisão, ter um pouco de convívio social, e que era vista como alguém que fazia parte da comunidade, e não como a assassina de bebés condenada ao ostracismo. Estava simplesmente grata e graciosa e gentil e normal. E eu pensei: ‘Uau, como é que alguém pode estar tão em paz depois de tudo o que passou?’. É simplesmente espantosa, é gentil, generosa, muito simpática, fiquei muito impressionada com ela.
Já falou com ela, desde que foi libertada?
Recebi uma chamada algumas horas depois de ela ter sido libertada, ela e a sua amiga Tracy ligaram-me juntas. Foi muito bonito.
O que é que ela lhe disse?
Ela estava muito feliz, entusiasmada, a rir. Estava feliz por falar comigo, agradeceu-me, a mim e aos outros cientistas. Foi uma conversa muito simples e breve. Ela estava tão feliz. Foi espantoso vê-la a rir sem parar. Estava muito, muito feliz.