Rússia, Império. Olha, olha, tu queres ver? Rússia, o país. Império, o restaurante na Alameda. À nossa frente, um bife com ovo estrelado, molho do best e batatas fritas. Ligeiramente mais à frente, no outro lado da mesa, o poveiro José Milhazes. O homem das barbas. O jornalista da TSF. O cronista do Público e, hoje, do Observador. A cara da SIC. Todo o Império o reconhece, nota-se pelo silêncio repentino à sua passagem. Dono de uma voz peculiar, é ouvi-lo a falar de tudo um pouco, até de futebol, agora que Portugal já chegou à Rússia para disputar o Mundial 2018.
Quando é que chega à Rússia?
Vais tratar-me por tu, certo? Senão armo aqui uma barraca.
Boa boa, vamos a isso. Chegaste à Rússia em que ano?
1977.
E foste para onde?
Moscovo.
O que é que sabias da URSS?
Nada, não sabia nada, só o que a propaganda do PCP dizia.
E então, batia certo?
Nada, era tudo ao contrário. Mas foi interessante: a única coisa de que estou arrependido foi de ter ficado lá 38 anos. Devia ter ficado menos. Não que não gostasse, mas porque depois não consegues entrar aqui [em Portugal], nesta sociedade: és um ser estranho.
Por ti ou pelos outros?
Pelos outros.
Como assim, em pleno século XXI?
Além de jornalista, sou doutorado em História, mas nenhuma universidade me quer a dar a história da Rússia ou geopolítica da Rússia.
Como era a vida das pessoas em Moscovo?
Aparentemente, normal. As pessoas vão para o trabalho e voltam para casa, tudo normal. Enquanto não entras naquela sociedade, via aquela gente toda com bolsas e pastas de um lado para o outro e dava por mim a pensar ‘isto são tudo intelectuais’.
E?
Não. Toda a gente andava com bolsas e pastas para acumular compras.
Como?
Se passassem por uma loja e houvesse alguma coisa para comprar, enchiam as bolsas ou as pastas, compreendes? E quando aparecia papel higiénico, aí era um cenário daqueles. As pessoas levavam fios de arames e metiam os rolos por entre o fio. Cheguei a ver muitas pessoas com rolos de papel higiénico à volta do pescoço, como se tivessem sido condecoradas com a ordem de não sei quem.
E tu, no meio de tudo isso?
Vim de uma família muito humilde, os meus pais são pescadores. O meu pai andou com o pai do André [internacional português, campeão europeu pelo pelo Porto em 1987], até com o avô do André, no mesmo barco à pesca do bacalhau. Nós éramos a arraia-miúda e já estava habituado a uma vida espartana. Se é preciso aguentar, um gajo aguenta. E estava preparado para isso. Só que depois apanhas-te com mulher e filhos, aí é mais complicado. E começas a ver que toda aquela mitologia [da URSS] nada tem a ver com a realidade. Começas a aprender que o tal paraíso terrestre de que fui à procura, o tal futuro radioso da humanidade, como dizia a propaganda, era mais pó pó pó pardais ao ninho. Quando tens de arranjar dinheiro para os miúdos, com fraldas, alimentos, bebidas e tudo o mais, vês outro mundo.
E habituas-te?
Habituas-te, claro que sim. O ser humano é capaz de se habituar a tudo, a todos os esquemas, a todas as situações, por mais incríveis que sejam. Quando os meus filhos eram pequenos, tínhamos fraldas de papel e fraldas de pano. Nem sempre se podia comprar fraldas boas, então eram as de pano. Tinhas que lavá-las, secá-las, lavá-las outra vez e fervê-las com soda para desinfectar. Depois há choques mais fortes.
Como por exemplo?
A ida da minha mulher, que é da Estónia, para Portugal. Queria apresentá-la à minha família e nem imaginas o que ela passou.
Então?
Passou o purgatório e o inferno para vir cá e até foi parar ao hospital completamente extenuada, com interrogatório atrás de interrogatório.
Sobre?
Ela tinha que saber a história do Partido Comunista Português de trás para a frente e de frente para trás, entendes? Porque tinha que chegar a Portugal e ter as resposta na ponta da língua, se alguém lhe perguntasse alguma coisa. Ela tinha de se mostrar muito inteligente, que sabia quem era Mário Soares, Sá Carneiro e por aí fora. Até tinha de saber a história do Glorioso [Benfica]. Repara, o nosso mundo de lá era tão surrealista que os meus filhos começaram a ler, ainda pequenos, o Kafka. Vê bem, entendiam o Kafka como literatura infantil porque aquilo do surrealismo atinge todos, ninguém escapa, e tens de aprender a viver assim.
E como era Moscovo à noite, entre restaurantes, bares, discotecas?
Nos restaurantes, era um problema. Diziam sempre que estava cheio, só que estava às moscas.
Então?
Tinhas de comprar o porteiro, entendes? Era só esquemas. Uma vez, a propósito da primeira bolsa que recebi, decidi ir jantar com um grupo de estudantes portugueses e fomos a um hotel chique para ser à grande. O hotel era mesmo no coração da Praça Vermelha e estávamos mesmo decididos a entrar para comer caviar preto e champanhe. Estás a ver, não estás? Tudo à grande. Chegámos lá, ao restaurante, e disseram-nos que estava cheio. Muito bem, demos meia volta e, como éramos estrangeiros, entrámos pela porta principal do hotel e daí fomos para o restaurante. Qual cheio, qual quê. Vazio, vazio, vazio. E comemos como nunca. Foi caviar preto, foi champanhe, só faltou a mulher vestida de branco para bebermos champanhe dos seus sapatos. É uma história.
Por falar nisso, sempre gostaste de história?
Sempre, mas no início fui estudar filosofia na Rússia.
E então?
Quando cheguei lá e vi aquilo, disse: “Epá, isto não dá”.
Porquê?
Era um ensino muito limitado, em termos ideológicos. Por exemplo, tinha-se como disciplina “a crítica dos pensadores burgueses” e depois era proibido ler esses pensadores burgueses.
Um curso em russo ou inglês?
Russo. Estudávamos russo um ano e depois era mais fácil.
Um ano?
Um ano, bastava um ano.
E aprende-se bem num ano?
Então não aprendes, claro que sim.
O que é que sabias quando foste para a Rússia?
Camarada. Só sabia essa palavra.
Mais nada?
E é bom, é mesmo bom que não saibas mais nada, sabes porquê?
Nem ideia.
É como trabalhar numa estátua. Se a estátua já está feita, não lhe vais dar retoques com medo de estragar a estátua. Agora, se te dão um bloco bruto, tens mais facilidade em trabalhar. É a mesma coisa com a língua. Se não sabes nada, o melhor mesmo é aprender no país em questão. Se aprendesse russo cá em Portugal, chegaria à Rússia cheio de defeitos.
Sabes falar e escrever?
Entrei numa escola preparatória e tínhamos disciplinas como língua russa, história da União Soviética, história da literatura russa, geografia da União Soviética. O problema é que os exames de lá são todos orais, excepção feita a matemática. Por isso, compreendo muito bem russo, falo bastante bem, mas escrever é uma desgraça e preciso da ajuda do dicionário.
E a tua turma?
Só oito pessoas, acho: um português, uma iraquiana, uma finlandesa, uma de Laos, um de Mali e uma uruguaia, estás a ver a confusão que aquilo é?
E vivias onde?
No primeiro ano, numa residência estudantil só para estrangeiros. Depois em diante, já com russos.
Vinhas a Portugal?
Epá, não vim a Portugal nos primeiros três anos. Primeiro, aproveitei para conhecer a Polónia. Depois, fiquei por problemas de saúde e também aproveitei para ver as espartaquíadas, uma espécie de pré-Jogos Olímpicos. Só voltei a Portugal em 1980, no ano dos Jogos Olímpicos em Moscovo. Nessa altura, só havia duas opções: ou ir para uma casa de repouso no Mar Negro ou sair da União Soviética.
Quê?
É isso mesmo. Não se podia ficar em Moscovo. A cidade dos Jogos tinha de ficar limpinha. Até há uma peça de teatro famosa que é sobre a forma como a polícia apanhou as prostitutas todas e as mandou para fora de Moscovo, o chamado “quilómetro 101”.
Hã?
Como estavam a limpar a cidade, só deixavam as prostitutas, que estavam a trabalhar para os Serviços Secretos. Elas eram necessárias para os Jogos, por assim dizer. Foi aí que aproveitei para umas férias prolongadas e voltei a Portugal.
E não ficaste mesmo para os Jogos Olímpicos?
Não dava, não tinha residência em Moscovo. O meu visto era de estudante e então vim para Portugal.
Meteste-te num avião e bora aí.
Meti-me num comboio.
Hããããããããã?
Ahahahahah. Moscovo-Paris. Chegavas ali à Gare du Nord. O problema é que quando chegavas de Moscovo, o Lusitância Expresso para Lisboa já tinha partido. Assim, tínhamos de ficar mais uma noite em Paris.
Beeeem, imagino os filmes.
É surrealista, sobretudo o atravessares fronteiras. Como a da Polónia para a República Democrática Alemã, em que nos revistavam. Depois, da República Democrática Alemã para Berlim Ocidental, revistavam-nos outra vez. Depois, entrávamos outra vez na República Democrática Alemã e éramos revistados. E, à saída da República Democrática Alemã para a Bélgica, pumba, mais uma revista. Ahahahahah.
E o que fazias na Rússia, além de estudar?
Olha, para ti que és dos futebóis, fui ver aquele 5-0 da União Soviética a Portugal [qualificação para o Euro-84] e também fui tradutor de alguns treinadores portugueses em Moscovo.
https://www.youtube.com/watch?v=PVJ7kZeqUGc&t=29s
Não.
Ai fui, fui. Do Toni, do Inácio. Quando o Inácio foi lá com o Sporting, em 2000 ou 2001, era a Liga dos Campeões. Lembro-me perfeitamente do Perestrelo na TSF. Estava um frio do caraças e até se jogou com uma bola vermelha por causa da neve. Às tantas, avisei os jornalistas que era preciso beber vodca para aquecer o corpo. O Perestrelo reagiu: “Estás maluco, não estou habituado a essas coisas”.
E?
Ele chegou à cabina da rádio e aquilo era como se estivesses dentro de um frigorífico. Disse-lhes “Epá, vocês podem fazer o que quiserem, mas eu vou comprar vodca”. Naquela altura, ainda se vendia vodca nos estádios. Só para os jornalistas, atenção. Comprei, levei para a cabina e fui um sucesso, ahahahah.
Ah, pois.
O Perestrelo aqueceu num instante. “Epá, isso aquece mesmo”, dizia ele. E começou a dizer aos outros para beber. Claro que os outros ficaram de pé atrás e eu, uma vez mais, incentivei-os: “Vá lá, são só cem gramas”.
Gramas?
Na Rússia, as bebidas alcoólicas vendem-se a peso.
Toni e Inácio, Benfica e Sporting. Há mais clubes?
Então não há? Olha, o Boavista. Foi com o Dínamo Moscovo e a filha do treinador do Dínamo era minha colega de universidade. E quase andava à pancada com o Valentim Loureiro. O gajo é uma besta, uma besta, mas uma besta daquelas.
Porquê?
Sou da Póvoa de Varzim e aquilo ali somos todos parentes afastados, somos todos Milhazes, os Milhazes são todos irmãos, primos, sobrinhos ou qualquer coisa assim. Olha, o Paulinho Santos, por exemplo. A avó do Paulinho Santos é prima do meu avô. Bom, isto para explicar a cena de Moscovo: um ex-jogador do Varzim chamado Artur trazia bacalhau, encomendado por mim, e fui encontrar-me com ele ao hotel. Quando o Valentim nos vê no hall, começou a insultar-nos assim do nada.
Como?
“Estes gajos são do KGB, vieram-me espiar.” Se eu fiquei pior que estragado, o colega que estava comigo disse mesmo: “Venha e diga-me isso lá fora”. Aquilo foi um sururu enorme, a malta a separar-nos. Epá, qual Valentim qual major, qual quê, metade da equipa estava a separar-nos. Ainda me lembro de ver o filho do Valentim, aquele famoso da música.
O João Loureiro?
Um puto assim pequeno, ele também andava ali. Lá tentaram explicar ao major que nós tínhamos ido buscar uma encomenda ao hotel e ele continuava intransigente, “não quero saber de nada”.
Ahahahah, g’anda cambalacho.
Também apanhei o Braga, só não me lembro do treinador. E também apanhei o Porto do Villas-Boas. Dessa vez, até disse ao encarregado de imprensa, que trabalhava na RTP…
… o Rui Cerqueira?
Esse mesmo. Disse-lhe: “Ó Rui, em minha casa, os meus filhos são malucos pelo Porto, pede lá ao Pinto da Costa a ver se ele me manda uma camisola com uns autógrafos dos jogadores”. Bem, achei que tinha caído em saco roto. Epá, não caiu. Passado um mês ou dois, recebo um pacote registado, abro-o e está lá a camisola do Porto campeão da Liga Europa, devidamente autografada por todos.
Os teus filhos são do Porto, e tu?
Epá, nasci na Póvoa, era do Varzim, óbvio. E ia a todos os jogos. Grandes memória, sobretudo daquela época do António Teixeira, que meteu o Varzim em quinto lugar [1978-79]. E lembro-me perfeitamente da euforia na Póvoa quando chegava o Benfica com Eusébio, Colunas, Simões, Torres, José Augustos, Cavéns. Era uma festa, a gente queria era acompanhá-los para todo o lado.
E do Sporting?
Também havia movimentações, claro que sim. Agora o Porto, só me lembro a partir do tempo do Pedroto. Vou contar-te uma história sobre aquela eliminatória entre Sporting e Spartak Moscovo para a Liga dos Campeões, a tal do Inácio. Se não me engano, o Sporting apanha lá três lâmpadas e cá mais três.
Verdade, vi o jogo de cá.
Eu também vi, a convite do presidente Dias da Cunha.
Eisch, grande honra.
Dias da Cunha é um gajo porreiro. Ouve-me lá isto: o Sporting vai primeiro a Moscovo e o Severino pede-me ajuda. Já sabia ao que ia e estava preparadíssimo. Já sabes como é, ajudar com as linhas telefónicas, com a linha RDIS, as tomadas e aquelas coisas todas. Como aquilo era tudo incompatível e trinta por uma linha, eu desbloqueava os problemas de qualquer jornalista. Às tantas, o Severino pergunta-me se quero traduzir o Spartak em Lisboa.
E tu?
“Pagam-me o bilhete e eu vou, claro que sim; aproveito e visito a família.”
Claro.
Lá fui e, na véspera do jogo, há o jantar entre os clubes. O Severino pediu-me para acompanhar e traduzir o pessoal do Spartak. Disse-lhe que sim, óbvio, e sabia que os gajos do Spartak tinham levado comida à grande e à francesa, entre caviar, vodca, esturjão. Aquilo eram baldes e mais baldes. Só para descargo de consciência, perguntei ao Severino onde ia ser o jantar.
Onde é que era?
No Hotel da Lapa. Quando chego lá e olho para a ementa, disse ao Severino “Está tudo lixado”.
Escalopes ou lombo de porco, não?
Pior que isso. Caldo verde, bacalhau à lagareiro e vinho verde.
Uyyyyyy.
Os gajos do Spartak sentiram-se ofendidos e recusaram-se a comer. Então os gajos vão lá com baldes de caviar e tal e dão-lhes peixe como nós damos ao gato. É quase a mesma coisa que convidares árabes e dar-lhes carne de porco.
Ahahahahahah.
Nem imaginas. Um ambiente todo bonito e metem-lhes as sopas à frente. Eles olham para aquilo, umas folhinhas a nadar com uma mortadela, e dizem ‘que merda de sopa é esta?’ Mas assim mesmo, nestes termos.
Vingaram-se no dia seguinte, está visto.
Espera aí, a história ainda não acabou porque os russos estão mesmo lixados e ninguém queria comer aquilo. Eles consideravam-se ofendidos e o Dias da Cunha só me dizia ‘nós só queremos mostrar o melhor que temos’.
Como é que isso se resolveu?
Pediram-me para resolver o problema e liguei para o Albatroz.
O hotel em Cascais?
Esse mesmo. Liguei e pedi-lhes para preparar em hora e meia, no máximo, uma travessa de marisco, com lavagantes, lagosta, santolas recheadas, camarões tigre e muita cerveja mais vodca. No dia seguinte, o Severino abraçou-me e quase me deu um beijo. “Ó Zé, isto é que é um jantar.” O Dias da Cunha também ficou contente.
A partir daí, a táctica era marisco.
Calma, ainda há mais. No final do jogo, tenho de traduzir o Oleg Romantsev. Epá, o gajo não fala quase nada e quando abre a boca, é só asneiras. O Spartak ganha 3-0 em Alvalade e a malta mete o Inácio antes do Romantsev, no flash-interview. O gajo passa-se à minha frente: “Vocês metem-me em segundo lugar? Vão-se lixar, somos todos umas bestas”. Nem houve conferência de imprensa nem nada, o gajo foi para o autocarro. Claro, os jornalistas a pedirem-me ajuda. Lá o deixei acalmar-se um bocadinho e depois disse-lhe que a culpa não era minha nem dos jornalistas à espera dele na sala de imprensa. Ele lá pensou um pouco e concordou em ser entrevistado perto do autocarro do Spartak. Lá foi, os jornalistas saíram da sala de imprensa e falaram com o Romantsev fora do estádio.
Tu eras de quem, na Rússia?
Primeiro, Dínamo. Depois, Zenit. Acompanhei sempre o Danny, um gajo excepcional.
O Dínamo tinha muitos portugueses, não era?
Além do Danny, era Nuno Espírito Santo, Maniche, Jorge Ribeiro, Costinha e sei lá quem mais. Eram muitos, eram. Há histórias maravilhosas, uma delas relacionada com o trânsito. É tão confuso andar de carro em Moscovo, demora-se tanto tempo para percorrer uns míseros três quilómetros, que o metro é a melhor solução. Uma vez, Costinha, Maniche e Jorge Ribeiro apanharam o metro e só assim é que chegaram a tempo ao treino. E também há histórias extra-Moscovo.
Diz lá uma.
Olha, tenho o cartão vermelho do Valentin Ivanov, o árbitro do Portugal-Holanda no Mundial-2006.
O jogo dos 20 amarelos e quatro vermelhos?
Ahahahah, esse mesmo. Estive na casa de campo dele, entrevistei-o para o Público e é um gajo porreiro, fantástico. Fui bem recebido por ele e passámos horas a falar sobre tudo e mais alguma coisa. Às tantas, pergunto-lhe sobre a tentativa de suborno por parte da Holanda, uma acusação de Portugal naquele tempo e ele mostra-me a prenda de Portugal nesse dia, antes do jogo: um galo de Barcelos, feita em barro.
Ahahahahahahah.
No fim da entrevista, perguntei-lhe que se me podia oferecer um dos cartões que ele tanto utilizou nesse jogo e ele não vai de modas: ‘Quer o amarelo ou o vermelho?’
E tu?
‘Olhe, prefiro o vermelho e com o seu autógrafo’. E assim foi, assinou-me. Está religiosamente guardado em casa, ao lado da medalha de Comendador da Ordem da Terra de Santa Maria, da Estónia.
Chique.
Ahahahahahah.
Porquê Estónia?
A minha mulher é de lá.
O que era a Estónia na época da URSS?
Tããão diferente.
Antes era o quê?
Era uma espécie de montra da União Soviética. Sabes que a Estónia tinha uma vantagem muito grande em relação às outras repúblicas?
Nem ideia.
Porque a Estónia está junto à costa do Báltico e, com uma antena normal, podias ver a televisão finlandesa. Era todo um mundo novo, nem imaginas. E foi através dessa televisão que vi o Carlos Lopes a ganhar a maratona Los Angeles-84. Porque a União Soviética boicotou os Jogos Olímpicos-84 e não deu nada na televisão. Então, os maluquinhos do desporto iam para aquela parte da União Soviética e assistiam aos jogos através do canal finlandês. Alugavam-se quartos, alugavam-se até colchões para ver o canal.
Eischhh, maravilha. Nunca te sentiste tentado a fazer o Transiberiano?
Nunca fiz nem aconselho, porque é uma estupidez.
[Arregalo os olhos]
Calma, calma, ahahahah. É uma estupidez se tu te puseres num comboio e andares sete dias a olhar pela janela, compreendes? Eu andei entre Moscovo e Campanhã, ‘tás a perceber? Um gajo entra em Moscovo e sai em Campanhã sem conseguir andar em terra. O Transiberiano só é bonito e aconselhável se tiveres dinheiro para parar naquelas cidades todas e ficares por lá. Há cenários incríveis, nunca vistos, e há paisagens inacreditáveis que te permitem experiências únicas. Olha, por falar nisso, Chernobyl.
Então?
É uma experiência única. Se não fosse pecado, até diria que é deslumbrante. Imagina-te: entras num vila, toda limpinha, com praças, ruas, prédios, casas, quiosques, parques, baloiços à espera de acção. Estás a olhar para aquilo, à espera de alguém, e nada. Só vês escaravelhos a passear no chão, porque são os gajos que resistem a tudo. E ouves os passarinhos a cantar. A nível de paisagens, vês coisas belíssimas, como uma igreja ortodoxa lá no meio, só que não podes tocar em nada por culpa da quantidade da radioactividade. Que poderia ser pior se a cidade não fosse limpa todos os dias. Aquilo é como se entrasses numa outra dimensão, como se estivesses no paraíso, uma paz impressionante. Vim de lá quase convertido, não sei ao quê: se à energia nuclear se ao quê, mas saí de lá com uma paz na alma. E há mais.
Como por exemplo?
O número de pessoas que ainda vive lá, em Chernobyl. Pessoas que se recusam a sair de lá e que querem morrer ali. E há o fenómeno das excursões, uma espécie de turismo radical. Aliás, há um filme bem interessante do Tarkovsky sobre o assunto. Chama-se Stalker e fala sobre a Zona, um local isolado, gigantesco, em que as pessoas têm de se adaptar.
Por falar em adaptação, onde é que estavas na queda do muro de Berlim?
Estava lá, em Moscovo, à espera de uma reacção da União Soviética.
E os ventos de mudança na URSS?
Foi uma coisa absolutamente vertiginosa.
Imagino, tu estavas lá. Foste ator secundário de um filme de primeira.
Aquilo não dava para acompanhar como agora. Para ligar à TSF, tinha de pedir ligação à telefonista. Só a TSF é que podia ligar directamente para minha casa. O inverso era impossível. Então, era uma vida mais difícil em termos logísticos. Até porque só havia um jornal semanário, com três mil exemplares de tiragem. Tinhas de ir para a fila às seis da manhã para ler a imprensa e reportar à TSF. Felizmente, tive o apoio da minha mulher. Quer a ler jornais, a ouvir rádio ou a ver televisão para dar as notícias em primeira mão. Foi um desafio fantástico, o de ser jornalista. E nunca pensei em sê-lo, ahahahah. Depois tomas-lhe o gosto e não queres deixar, é quase como um toxicodependente. Aquilo transforma-se e transforma-te. Tanto eu, como jornalista, como as pessoas de Portugal, na redacção da TSF. Havia quem não ligasse a miníma para a diferença de três horas e ligava-me às três da manhã. “Milhazes, o que é que estás a fazer?” e eu: “O que é que um gajo honesto está a fazer às três da manhã? Estou a dormir, caraças”. E eles nem pestanejavam: “Podes entrar em directo?”.
E tu?
“Claro que posso, até entro em directo a dormir.” Ahahahahah. Muito estimulante. Havia bocas daqui e dali, tudo fazia parte de uma aventura sem paralelo. Tanto na rádio como no Público, porque ainda não havia faxes e era uma trabalheira escrever as notícias. Aí, toda a gente participava, até os putos.
Os teus filhos?
Sim, eles participavam. Por gosto.
Gosto?
Nem imaginas. No dia 19 Agosto 1991, no início do fracassado golpe de Estado contra Gorbachov, os putos estavam fascinados, histéricos até, com a quantidade de tanques nas ruas, colados às nossas casas. Nós, os pais, a tentar esconder o nervosismo e eles, os putos, numa alegria pura. Nós diziamos-lhe “calma, muita calma, se nos acontecer alguma coisa, se vierem prender o teu pai e a tua mãe, vocês têm aqui o telefone do avô e da avó ou então vão ali ter com a senhora tal”, que era uma vizinha nossa, de nacionalidade russa, que já nos tinha dito que ficava com os putos se houvesse algum stress.
Beeeem, que emoção.
Nem imaginas, era a loucura. Para nós, adultos, também. Até porque todas as conversas eram sobre política, já não se podia esconder nada nem evitar o que quer que fosse. As informações já voam a uma velocidade fora do normal e lembro-me que nesses dias do golpe [de 19 a 21 Agosto 1991] nem sequer precisávamos de ligar às telefonistas. Era directo e pronto. Tive a sorte, muita sorte, de fazer jornalismo num ambiente em que poucos conseguiram acompanhar tantas mudanças.