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Quando a imprensa americana diz que um artista está constipado é porque ele já tem estatuto de lenda viva – e, claro, porque está mesmo constipado. Há um exemplo célebre: a reportagem assinada em 1966 por Gay Talese na revista Esquire, “Frank Sinatra has a cold”, hoje considerada um marco do Novo Jornalismo americano. E há um exemplo quase desconhecido que importa agora recordar — a notícia de nove linhas que o New York Times dedicou a Joan Miró em 23 de abril de 1981: está a recuperar de uma constipação, mas já regressou às oito horas diárias de trabalho com vista para o Mediterrâneo.
O pintor surrealista – que rejeitava qualquer corrente – era adorado nos EUA e nem se exilou do outro lado do Atlântico durante a II Guerra Mundial, como tantos artistas e intelectuais europeus. Em 1959, tinha recebido das mãos do presidente Eisenhower o Prémio Internacional Guggenheim, em reconhecimento pelos murais de cerâmica “Noite e Dia” criados no ano anterior para a sede da UNESCO, em Paris. Terá sido pioneiro junto dos americanos na disseminação de formas, técnicas e atitudes surrealistas e é hoje apontado como provável referência de Jackson Pollock ou Mark Rothko. Um génio do século XX, não se hesitaria dizer.
A morte na tarde de Natal, quase cego, aos 90 anos
Filho do ourives Miquel Miró i Adzerias, de Tarragona, e da doméstica Dolors Ferrà i Oromí, de Palma de Maiorca, dono de uma obra colorida, quente e utópica que incluiu pintura, escultura, cerâmica e tapeçaria, Miró desapareceu há precisamente 35 anos, na tarde do dia de Natal de 1983. Quase cego e com complicações cardíacas, tinha cumprido 90 anos em abril desse ano, “Um dos últimos gigantes da pintura do século XX”, lia-se no Diário de Lisboa do dia seguinte. “Um dos maiores artífices da expansão da criatividade neste século de grandes esperanças sobrepostas a grandes horrores”, acrescentava o El País.
Misterioso e impenetrável, isolado, intuitivo e infantil, assim o descrevem os que o conheceram. “Criou uma linguagem formal e visual totalmente nova”, é “um dos artistas visuais mais importantes do século XX e de sempre”, ombreando com Picasso e Matisse, disse há um ano, em Lisboa, Robert Lubar Messeri, professor de belas artes e especialista em Miró.
Nos últimos anos fez manchetes em Portugal por causa de 85 pinturas pertencentes ao extinto Banco Português de Negócios, e avaliadas em 35,9 milhões de euros, que passaram em 2008 para o Estado português e estiveram à beira de ser leiloadas pela Christie’s de Londres, até finalmente serem deixadas à guarda da Fundação de Serralves, que para tanto receberá 3,5 milhões de euros da Câmara do Porto ao longo de 25 anos.
Em 2016 e 2017 essas mesmas 85 obras, produzidas entre 1924 e 1981, foram exibidas pela primeira vez no Porto e em Lisboa. Algumas delas juntam-se a obras provenientes de coleções públicas e privadas de Espanha e França e são exibidas por estes dias, até 3 de março de 2019, na Casa de Serralves – exposição “Joan Miró e a Morte da Pintura”, centrada no ano de 1973 e na “raiva estética” que então se apoderou do artista, levando-o a perfurar e queimar telas, o que é descrito como uma tentativa de renovar recursos e procedimentos no ato de criação.
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Miró está mais vivo que nunca. Em Espanha saiu uma nova biografia, El Niño que Hablaba con los Árboles, do jornalista Josep Massot, baseada em documentos até agora nunca estudados, incluindo a correspondência e os livros da biblioteca pessoal. Aí aparece, no resumo oferecido pelo El País, como homem dual, com fases eufóricas e depressivas, otimista criativo e melancólico sombrio, protagonista de uma rotina diária espartana que passava por desporto frequente e alimentação cuidada, incluindo o hábito de mastigar lentamente.
Em Paris, noutra prova de vitalidade mironiana, o Grand Palais apresenta até 4 de fevereiro uma retrospetiva que tem sido promovida nas redes sociais da internet através deste vídeo de 46 segundos que se apropria de cores e motivos de Miró para criar efeitos visuais novos e inesperados.
Si Miró est influencé par la poésie, le surréalisme, ou encore la nature, il est avant tout habité par un esprit contestataire et engagé ! Ne ratez pas l'#ExpoMiro jusqu'au 4 février 2018 au #GrandPalais ???? https://t.co/3SjdXKrgh5 pic.twitter.com/7UCqs2uhIp
— Le Grand Palais (@GrandPalaisRmn) December 12, 2018
O pai autoritário: “Até o ar que respiras me pertence”
Nascido em Barcelona a 20 de abril de 1893, Miró começa a pintar aos 19 anos, contra a vontade de um pai autoritário que lhe terá dito um dia: “Até o ar que respiras me pertence.” Tinha estudado na Escola Comercial de Barcelona e iniciado carreira na firma Dalmau i Oliveres. Mas eram as artes plásticas que o fascinavam e assim passou a assistir às aulas da Escola Superior de Artes Industriais e Belas Artes na cidade natal. Diz-se que era tal a contrariedade de trabalhar como amanuense que em 1911 foi tomado pela febre tifoide, caiu na cama em depressão e esteve meses a recuperar-se numa quinta da família em Mont-Roig, Tarragona.
A partir do ano seguinte, renasce como artista de corpo inteiro. Inscreve-se na Escola de Arte de Francesc Galí, depois frequenta o Círculo Artístico de Sant Lluc. Vem a conhecer o “marchand” Josep Dalmau e instala atelier com o também pintor Enric Cristòfol Ricart. Frequenta o mítico café de artistas Els Quatre Gats, no bairro gótico, e começa a interessar-se por poesia e pelas vanguardas estéticas, que descobre através de revistas. Identifica-se então como fauvista.
As cores quentes ou garridas, uma das marcas do fauvismo e da obra de Miró, estavam desde sempre nas lojas e nas ruas da velha Barcelona da sua infância, mas também no mundo rural indistinto da cidade a que o ligavam as origens. É disso exemplo a paisagem de 1919 “Catalogne. Arbres et montagnes à Tarragone”. “Pintor da terra – a terra firme e áspera de Tarragona – e das estrelas – as estrelas do céu de Maiorca –, Miró soube filtrar e plasmar em telas, murais e esculturas os estímulos de uma sensibilidade vívida e ao mesmo tempo intimista”, descrevia o El País no obituário em 1983.
O fracasso na primeira exposiçao e a chegada a Paris
A primeira exposição individual é de 1918, na Galeria Dalmau, em Barcelona, e terá sido um fracasso. Aí apresentou, por exemplo, “El nú de l’aucell i la flor”, hoje pertencente à colecção do Metropolitan Museum de Nova Iorque. Inevitavelmente, ruma a Paris.
Ali conhece Picasso e Tristan Tzara. Por algum tempo, divide-se entre a capital dos intelectuais e o Mont-Roig paterno, mas com atelier permanente em Paris, aí realizando uma primeira exposição, na Galeria La Licorne, por intermédio do amigo Dalmau, depois se tornando presença no Salon d’Automne, exposição anual de referência que então tinha lugar no Grand Palais.
Trava conhecimento com Antonin Artaud, Paul Éluard, Ezra Pound e Ernest Hemingway. Será o autor de O Velho e o Mar quem lhe comprará a prestações “La Masia”, considerada a primeira grande obra de Miró. Conhece também André Breton, pai do surrealismo, e passa a privilegiar na tela uma expressão onírica, inconsciente e automática. É dado como certo que Breton lhe compra pinturas com frequência e que o convida a juntar-se ao grupo surrealista de Paris, razão por que em 1925 participa na famosa primeira exposição surrealista, na Galeria Pierre, ao lado de Jean Arp, Max Ernst, Paul Klee, Man Ray e Picasso.
Com Max Ernst, cria figurinos para a apresentação parisiense de “Romeu e Julieta”, dos Ballets Russes de Diaghilev, em 1926. Relaciona-se com as pintoras Lola Anglada e Dora Bianca e quase dá o nó com Pilar Tey. Finalmente, em 1929, com 36 anos, casa-se em Palma de Maiorca com Pilar Juncosa, que lhe tinha sido apresentada pela mãe e pela única irmã. “A mulher mais bonita e doce do mundo, sem mácula de intelectualidade”, comentou Miró, segundo o biógrafo Josep Massot. Vão viver para Paris, terão uma única filha, Maria Dolors, nascida em 1930, que lhe deixará dois netos, Joan e Teo.
“O meu trabalho não são obras de arte, mas acontecimentos humanos”
É por esta época que se inicia a repercussão nos EUA, quando o Metropolitan Museum lhe compra duas pinturas. Nos anos 30, dirige o seu trabalho para a escultura, passa a ser representado na América por Pierre Matisse, filho do pintor Henri Matisse, e prossegue dividido entre a Catalunha e Paris, onde se refugia a maior parte do tempo devido à Guerra Civil espanhola (época em que cria a ilustração “Aidez l’Espagne” para um selo de um franco, com o objetivo de financiar a fação republicana do conflito).
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Vive num mundo próprio, dizem os biógrafos, evidenciando uma vincada personalidade misantropa. Afasta-se dos surrealistas franceses e de escolas estéticas, de todos os “ismos”, declara o “assassinato da pintura”, numa rejeição de técnicas e meios que relacionava com “valores burgueses”. “A minha obra está carregada de símbolos naturais, abertos à natureza e não ao domínio das ideias”, dirá mais tarde.
Assiste à II Guerra Mundial no norte de França, Varengeville-sur-Mer, primeiro, e em Palma de Maiorca, depois, período a que corresponde a série de guaches “Constelações”. “O meu trabalho não são obras de arte, mas acontecimentos humanos”, afirmará numa entrevista de 1974. Sobre a série “Constelações”: “É a expressão da minha intimidade”, criada sob bombardeamento alemão, quando tentava escapar de França.
A glória das grandes exposições e a oposição ao franquismo
A energia vital, porém, nunca largará o artista. Logo em 1941, aos 48 anos, conhece a primeira retrospetiva no Museum of Modern Art (MoMA) de Nova Iorque. “Alegria, claridade, salubridade, cor, humor e ritmo”, são os adjetivos com que a obra é caracterizada pelo curador James Johnson Sweeney no catálogo da mostra, contrapondo-o assim às criações sombrias de Velasquez e Goya. Torna-se ícone da arte contemporânea. Na década de 40 passa a trabalhar em cerâmica. Vive quase sem dinheiro, com a ajuda da família. Em 1956 instala-se definitivamente em Maiorca, onde ficará até ao último dia.
Nova retrospetiva em 1962, agora no Museu de Arte Moderna de Paris (atual Centro Pompidou). Recebe o Grande Prémio Internacional de Gravura da Bienal de Veneza de 1954, cria murais de cerâmica para o Museu Guggenheim de Nova Iorque, executa a escultura monumental “Deux Personnages Fantastiques” para a zona de La Défense em Paris. É a época em que uma só pintura de Miró vale milhões no mercado.
Sobretudo nas décadas de 60 e 70, empresta visibilidade pública a causas políticas. Oposicionista do franquismo, escreve ao Governo para protestar contra detenções arbitrárias de estudantes, sindicalistas e membros da oposição. Fala contra o julgamento de 15 bascos acusados de homicídio, em dezembro de 1970. A meio dessa década, inaugura a Fundação Joan Miró, em Barcelona, que hoje continua ativa na divulgação da obra.
O homem que nunca deixou de criar, e mesmo depois dos 80 anos continuava a acordar às quatro da manhã para rever o trabalho do dia anterior, regressando à cama até à sete da manhã e trabalhando até de noite, tinha aversão à cultura académica e institucional, a mesma que hoje o valoriza.
Declara ao El País, em 1978, que a opinião do público anónimo lhe interessa muito mais do que a da crítica. “As pessoas não contaminadas veem melhor a minha obra do que os intelectuais.” E nesse momento recorda um episódio que ocorrera anos antes numa exposição antológica no Grand Palais. No livro de visitas alguém tinha escrito, com indignação, “cortem-lhe as mãos”, e Miró, ao diário espanhol, diz que aquela “reação violenta” lhe tinha agradado: “Porque punha em primeiro plano aquilo que mais me importa na minha obra: a sua vitalidade.”