Sem um centavo no bolso, estava presa naquele quarto. O homem já se tentara pôr em cima de si duas vezes. Por duas vezes, empurrara-o, com toda a força que tinha. “Não ia deixar que me violasse, não ia deixar que abusasse de mim.” O ano era 2010, o mês Moira Millán diz não conseguir precisar. “Foi na primavera”, conta a ativista mapuche da Argentina ao Observador. Para sair daquele quarto, recorda, “precisava que ele mudasse de ideias”. Ele, Boaventura Sousa Santos, o homem que Moira Millán afirma que tentou abusar de si em Coimbra, terá reconsiderado. Pediu-lhe desculpa, chamou-lhe um táxi e a mulher conseguiu regressar ao seu hotel.
Esta é a versão da ativista argentina sobre o que se passou numa viagem que fez a Coimbra naquele ano. Na entrevista que deu ao Observador fez duras acusações a Boaventura Sousa Santos — que, contactado esta quinta-feira, não se mostrou disponível para prestar qualquer esclarecimento ou apresentar a sua versão do que aconteceu.
Foi graças a um convite do sociólogo português que Moira Millan chegara àquela cidade. “Conheci-o no Brasil, no Fórum Mundial Social. Chego a Lisboa e ele convida-me a ir a Coimbra, por email, para a dar uma palestra sobre conflitos na América Latina.”
A ativista andava, naquela época, de país em país a chamar a atenção para o seu povo. Hoje é uma das líderes do movimento de recuperação de terras ancestrais indígenas na Argentina. Há quatro anos, Moira Ivana Millán contou num programa de rádio argentino o episódio de assédio. Em junho de 2022, durante um encontro de mulheres indígenas no México, voltou a repeti-lo.
Na primeira troca de palavras com o investigador português, terá deixado claro que precisava que ele tratasse de tudo. “Explico-lhe que preciso que fique a seu cargo a minha viagem, alojamento, comida, etc, porque não tinha dinheiro para me mover. Então, precisava do seu cuidado nesse sentido. Chego a Coimbra, dou a palestra que tinha que dar e à noite ele convida-me para um jantar — que eu pensava que seria com a sua equipa de trabalho.” Não foi, afirma.
“Nesse jantar estávamos só eu e ele, a sós, no restaurante que foi da sua família. Era um restaurante, como uma casa, muito bonita, e só estávamos ele e eu. Ele mandou abrir o restaurante só para este jantar”, recorda a argentina numa conversa telefónica com o Observador. A situação, segundo a sua descrição, foi incómoda, desde o início.
“Durante o jantar, ele bebe muito álcool, bebe muito vinho, conversamos, e, em diferentes momentos, ele flerta comigo e isso incomoda-me, trato de ir pondo limites a essa situação. Quando terminamos, oferece-me uns livros e convida-me a ir à sua casa — que era muito perto deste restaurante — para buscar os livros. Vivia num edifício. Só aceitei ir buscar os livros porque ele prometeu chamar-me um táxi para eu seguir para o hotel.”
Quando chegam à casa, Moira Millan recorda que o ambiente continua a incomodá-la. “Quando chegamos, ele senta-se e toma um uísque. Eu sento-me em frente a ele e ele põe-se em cima de mim. Atira-se para cima de mim, manuseia-me, quer beijar-me, eu empurro-o. Levanto-me do sofá onde estava sentada e enojo-me com a atitude. E ele vem de novo, a tentar manusear-me, beijar-me, e volto a empurrá-lo, com mais força. Ele vê uma atitude determinante em mim, porque eu estava disposta a defender-me, não ia deixar que me violasse, não ia deixar que abusasse de mim, e ia usar toda a minha força.”
Toda a situação era demasiado, diz ao Observador. Moira estava num país estranho, não falava o idioma, e Boaventura Sousa Santos era uma pessoa de poder, sublinha: “Ele era um dos pensadores mais inteligentes de Portugal nesse momento. E eu era uma mapuche que andava sem um centavo, a dar conferências para explicar a situação do meu povo. Estava numa situação que me devastava, mas também estava muito convencida de que não ia deixar que me violasse.”
Na opinião de Moira, o investigador acabou por perceber que a história podia terminar mal. “Exigi que chamasse um táxi, e pedi que me deixasse ir. Foi um momento muito feio, muito terrível, senti-me completamente vulnerável e desprotegida, não conhecia nada, não tinha dinheiro para escapar, não tinha sequer como sair do edifício. Precisava que ele reconsiderasse e me permitisse ir. Se ele decidisse não me deixar ir, eu não podia escapar daquele lugar. Era uma situação horrível, muito horrível. Finalmente, ele pede desculpas e deixa-me ir.”
No dia seguinte, Moira ainda dependia do investigador. Precisava da sua passagem de volta para Lisboa. “Passei mal a noite, a chorar. Não podia acreditar no que aquele tipo me estava a fazer, foi humilhante, apanhou-me de surpresa, nunca me tinha acontecido nada assim, tanta falta de respeito. Recordo-me de lhe perguntar se ele se comportava dessa maneira com as académicas brancas, se fazia comigo porque era mapuche, indígena, racializada, Ele desculpou-se, com desculpas absurdas: estava bêbedo.”
A noite foi terrível, conta, porque não conseguia aguentar a raiva, a impotência. Piorou quando foi buscar a sua passagem e percebeu que Boaventura Sousa Santos a tinha com ele. Segundo a sua versão, o sociólogo tinha dado ordem para que fosse buscá-la a um restaurante onde a esperava para almoçar. “Esperava-me para almoçar? Como se nada tivesse acontecido. Cheguei furiosa ao restaurante, pedi-lhe a minha passagem e ele estava com um ramo de flores para pedir-me desculpa. Isso foi como reafirmar que essa prática para ele era comum, se podia almoçar, se podia violar e fazer como se nada tivesse acontecido… isso é de uma indolência, uma falta de consciência do que provoca na vítima. O poder da cegueira.”
Com a passagem na mão, Moira volta a Lisboa onde conta o que lhe aconteceu. Mas entre os académicos com quem falou, argentinos e portugueses, diz não ter encontrado base de apoio. “Dizem-me que não é conveniente que o denuncie porque ele, naquele momento, encarnava a voz da esquerda em Portugal. E que a direita se iria montar sobre isso para deslegitimar e ir contra a esquerda. E eu fiquei ali, numa situação de disputa, um argumento estúpido, machista e estéril, como se a minha dignidade, como se a minha integridade fosse propriedade da esquerda ou da direita.”
Das conversas que teve na altura, Moira diz recordar uma muito específica e de que não tem provas: “Havia uma académica, em particular, que me disse que este homem tinha essa prática em África. Disse-me que ele havia abusado de mulheres africanas, as que estudava. E ela contava-me aquilo com tanta naturalidade e com tanta indiferença. Esta pessoa sabia que eu ia estar com ele e em nenhum momento me disse ‘tem cuidado, este homem é um abusador’. Como um abusador pode estar a trabalhar numa universidade onde tem a responsabilidade de relacionar-se com um monte de mulheres?”
Na altura, Moira Millán não terá conseguido apoio para denunciar o investigador, nem forças para batalhar por isso. Sentia-se sozinha, lamenta. “A minha pequena forma de fazer justiça era não prestar-me a validá-lo. Nunca mais me mostrei com ele em nada, nunca mais aceitei partilhar uma mesa de conferência com ele. Foi a minha única forma de encontrar justiça. Porque a justiça é racista, e patriarcal, então não tenho nenhuma expectativa no aparato policial.”
Sabendo agora das mais recentes denúncias contra Boaventura Sousa Santos, a ativista diz que lhe dói que não se acredite nas investigadoras, quando também ela, garante, passou por isso. “O sr. Boaventura Sousa sabe bem o que me fez. Ele sabe bem. Que tente denunciar-me a mim. Ele que me olhe na cara, nos olhos, e negue o que me fez, que diga que o que estou a relatar não aconteceu. Não sei quantas vítimas haverá. E tenho muita solidariedade com estas jovens e com todas as vítimas que possam existir.”
Num livro coletivo publicado pela Routledge intitulado “Sexual Misconduct in Academia” (Má Conduta Sexual na Academia), três investigadoras contam as experiências de abusos sexuais. O capítulo “The walls spoke when no one else would. Autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde academia” é assinado por Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom. Embora não refiram nomes, nem sequer o da instituição em causa, é fácil juntar as peças e perceber que se referem ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. A própria instituição já reagiu, através de comunicado, e promete abrir uma investigação ao sucedido. Boaventura Sousa Santos disse ao DN reconhecer-se na personagem do Professor Estrela, o alegado assediador. Negou, porém, as acusações de assédio de que é alvo no artigo, deixando mesmo a garantia de que avançará com um processo contra as autoras.
Moira Millán afirma não conhecer nenhuma outra pessoa que alegue ter sido vítima de Boaventura Sousa Santos, mas acredita que o silêncio será quebrado. “Pode usar muitos subterfúgios e argumentos cobardes para justificar a sua conduta, mas isso não o justifica. Não me importa se a sociedade civil o justifica. O que me importa é a verdade. Pode estigmatizar as vítimas, dizer que são loucas. Mas a verdade é categórica. Como pode ser que na Patagónia, uma mapuche o denuncie e em Portugal três jovens o denunciem? Esta semana mais vozes se ouvirão.”
As que não se ouviram, silêncio que custa a Moira Millán, foi a de algumas académicas. “A mim custa-me o silêncio das académicas, das feministas famosas, todas têm de pronunciar-se. Não podem ser hipócritas. Se queremos depurar o patriarcado agressivo e violento como é que não o fazemos na academia? Se este é o centro do saber e do conhecimento estamos perdidas. As feministas têm de pronunciar-se e ele tem de pagar como qualquer outro sujeito que comete delitos”, defende, concluindo que quem cala é cúmplice por inação e por convicção. “Gostava de voltar a Portugal e sentir que houve justiça.”