Nas paredes estão fotografias de edifícios construídos com milénios de distância, do Supremo Tribunal Federal, desenhado por Oscar Niemeyer em Brasília, à Acrópole de Atenas. “Tanto gostamos de uma coisa de há cinco séculos como de ontem”, diz a arquiteta Daniela Sá, de 38 anos, enquanto mostra estes e outros quadros pendurados na casa que partilha com o marido – e também arquiteto – João Carmo Simões, de 35. “É uma das coisas fascinantes na arquitetura: não tem uma prescrição temporal, como têm algumas ciências. Não vamos a um dentista de há 200 anos, mas adoramos viver numa casa dessa altura.”
A casa em questão é anterior ao grande terramoto de 1755 e era um antigo palacete numa rua de saída de Lisboa – hoje absolutamente central –, que pertencia a uma só família e foi sendo dividido por pisos. “Nós estamos num andar, que anda à volta de uma escada de pedra muito grande, o que faz com que os espaços se relacionem todos uns com os outros, sucessivamente”, explica João. “A casa é quadrada e não há corredor, que é uma invenção do século XIX”, acrescenta Daniela. “As divisões comunicam entre elas e cada compartimento não é óbvio o que seja. Há uma flexibilidade dos espaços e também vamos experimentando.” A biblioteca já foi um quarto, por exemplo, o escritório também, sendo hoje as duas divisões que ladeiam a sala – todas com um pé direito enorme, molduras de pedra nas janelas, azulejos antigos nos rodapés e chão de tábua corrida com falhas que fazem parte do charme.
Para além de serem “dois arquitetos contemporâneos num edifício do século XVIII”, João e Daniela são os fundadores da Monade, uma editora independente e internacional de “arquitetura, arte e pensamento”. Através dos projetos próprios, assinados pelo ateliê de arquitetura João Carmo Simões (fundado em 2012), e através dos livros, dedicam-se a pensar, partilhar ou construir edifícios específicos, sempre com a ideia de que “a arquitetura é das coisas mais perenes e mais complexas que existe” – logo, com maior responsabilidade. “Quando corre mal, é um monumento ao erro.”
Enquanto não chega “o momento certo para construírem algo dos dois”, vão melhorando esta casa arrendada aos poucos e enchendo-a com os objetos e as obras de arte de que gostam: um arquivador antigo que ganhou uns novos pés em mármore, semelhantes a lombadas, para aguentar o peso dos livros; uma mesa de jantar desenhada por João a partir de um grande bloco de cedro maciço (que deu também dois bancos/mesas de apoio); um candeeiro de pé do designer Arne Jacobsen; fotografias de Robert Frank, Sara de Campos e Daniela Ângelo, entre outras; serigrafias de Siza Vieira editadas pela Monade ou ainda grandes ampliações de imagens captadas por João, de edifícios como a Casa de Vidro de Lina Bo Bardi, também lançadas pela editora em edições limitadas de 50.
Depois do ateliê e da editora, o projeto mais recente do casal é a filha Maria, de seis meses – mas a bebé não é a habitante mais recente da casa. “A mais recente é uma árvore que pusemos no varandim do quarto”, brinca Daniela. “Agora, quando olhamos lá para fora, parece que há ali um jardim.”
Este é apenas um exemplo das várias melhorias que foram fazendo no apartamento sempre que resolveram “inventar um bocadinho”. Outro que salta à vista é a porta do escritório, espelhada num tom entre o amarelo e o dourado: “Era uma porta sem grande interesse, não como as originais, que são incríveis, e percebemos que precisávamos de fazer alguma coisa de agora, diferente”, explica Daniela. “Como aquele espaço tinha pouca luz, resolvemos divertir-nos.” Outra invenção é a versão “muito rápida, simples e barata de um armário” que montaram numa das paredes do quarto: duas cómodas de madeira compradas num antiquário com um varão por cima e duas cortinas de linho. Outra ainda são as portadas e molduras das portas, que resolveram pintar no mesmo azul acinzentado de Hydra, a ilha grega que visitaram depois de se casarem, em 2019, quando João tinha acabado de tirar a carta de marinheiro.
Ambos cresceram perto do mar, João em Cascais e Daniela em Aveiro – ele tirou arquitetura em Lisboa, ela no Porto, e conheceram-se numa visita de estudo na capital. Talvez por isso gostem tanto de ilhas e têm vários pedaços de pedras vulcânicas de várias que já visitaram: Sicília, Faial, Pico, Aegina, Porto Santo. “No fundo são os nossos materiais de trabalho.”
As pedras estão espalhadas pela casa mas a maior concentração está na longa estante preta da biblioteca, ao lado de alguns vinis de Miles Davis e Chet Baker, máquinas fotográficas – o outro grande interesse de João – e centenas de livros de arquitetura, arte, poesia, filosofia e estética, mais uma vez de diferentes épocas.
“É-nos sempre interessante ou útil estudar obras de arquitetos e artistas de há muito tempo”, explica Daniela. “Porque as questões são sempre as mesmas, nos tempos todos: como é que vivemos o melhor possível? Como é que somos felizes aqui? Acho que isso acontece um bocadinho no domínio da arte, ou na poesia. Estamos sempre a tentar encontrar a nossa resposta para uma pergunta que é sempre igual.”
Através da Monade já editaram livros com textos de arquitetos premiados com um Pritzker, como Álvaro Siza e Paulo Mendes da Rocha, ensaios fotográficos sobre museus portugueses como a Fundação Calouste Gulbenkian (por André Cepeda), e uma compilação – Civitas – dedicada a São Paulo, com 19 edifícios fotografados por João e vistos à lupa ao longo de 350 páginas. “Fazemos a condução do livro desde o início, desde a ideia, montar a equipa, até ao final – a escolha do tecido, do papel, o que também nos interessa do ponto de vista tectónico”, resume Daniela. “A nossa idiossincrasia é tentar fazer com que os livros transmitam a arquitetura, nos ajudem a perceber os espaços e a chegar a coisas que se calhar, numa viagem mais rápida, não veríamos”, completa João. “No fundo são um outro desenvolvimento do nosso interesse pela arquitetura para além do ateliê, e uma forma de partilha”, continua Daniela, atualmente a trabalhar num novo título, The Order of Landscape, “sobre a paisagem como construção”. “Eu sou filha única e os livros sempre me salvaram bastante. Isto é uma espécie de retribuição.”
Na “grande mesa de trabalho” do casal, onde estão “maquetes, projetos de arquitetura, livros e catálogos de papéis e tecidos”, há obras que se destacam. Como a Casa Azul, na Costa Nova, uma casa de madeira dos anos 60 elevada sobre as dunas, que foi reabilitada em co-autoria; a Villa Sombra, uma vivenda desenhada de raiz no Alentejo que tira partido das enormes pedras graníticas do terreno para apoiar “um enorme chapéu que é a cobertura e que permite abrir a casa sem a tornar quente”, ainda por construir; ou o recente apartamento Monochrome, onde a necessidade de dar um novo caráter a um espaço sem grande história e com um orçamento muito limitado levou a pintar tudo de azul, do chão às torneiras.
“A arquitetura é uma coisa muito complexa, que lida com realidades muito tangíveis – o budget de um cliente, as leis, os materiais de construção –, mas também com uma parte menos tangível da condição humana: o nosso bem-estar”, defende João. “Queiramos ou não, construir tem um lado cultural. Podemos aproveitar esse momento para tentar transmitir valores que nos interessem. E nesse sentido temos uma responsabilidade extra.”
Entre esses valores estão muitas perguntas de partida: “Como é que a família se relaciona? Como é feita a gestão? Qual é o caráter que vamos transmitir a este espaço? Ou como é que a luz entra no meu quarto? Como é que me apercebo das estações a passar? Como é que consigo relacionar-me com a natureza lá fora e perceber-me cá dentro?”, exemplificam. “Apanhamos imensos projetos que têm este problema de que a cozinha está fechada num sítio, ou o quarto principal está virado para a frente da casa para controlar toda a gente que entra e sai – uma ideia um bocadinho antiquada”, continua João. “Nós tentamos desmontar essas coisas e que a família viva toda no mesmo espaço, que o espaço permita receber pessoas e permita ter descontração e liberdade no dia-a-dia.” Foi o que aconteceu por exemplo na Costa Nova: “A Casa Azul tinha um quarto virado para a frente, tinha um corredor escuro, tinha uma cozinha muito fechada, uma casa de banho sem luz natural. E de repente nós mudámos isso tudo, sem que essas alterações se evidenciassem, como se sempre tivessem feito parte da arquitetura que lá estava. Passámos a ver o tecto inclinado que não víamos. Abrimos a sala para a varanda e para a ria. Alargámos o corredor para ter luz a passar. Integrámos a cozinha no espaço da sala, porque é uma casa de férias para receber pessoas, e demos-lhe um ar festivo, quase de bar, com a bancada em latão que também é uma referência aos barcos que há na zona”, explica o arquiteto.
Em cima da mesa da sala estão os cadernos com as fotografias e as plantas desses projetos já feitos e de outros em desenvolvimento, como o Colégio Infante D. Henrique, no Funchal, uma obra de fôlego que implica a requalificação de uma construção colonial e a criação de outros sete edifícios, “sempre em relação com o exterior, a vegetação tropical e o oceano”, avança João. “Gostamos desta mudança de escala. Tanto nos interessa desenhar um apartamento como um museu ou uma escola. É tudo complementar e tudo uma forma de contribuirmos para termos um espaço mais inclusivo para todos.”
“Também não nos desgosta ir à Madeira”, brinca Daniela, em jeito de conclusão. “Como é uma ilha, trazemos mais uma pedrinha.”
Este artigo foi originalmente publicado na revista Observador Lifestyle n.º19, lançada em março de 2023.