O clima de guerrilha interna que se vai vivendo na bancada social-democrata não comove a direção do PSD. O quartel-general diz saber bem quem são aqueles que são vistos como agitadores internos, está ciente de que os ataques dirigidos ao líder parlamentar, Joaquim Miranda Sarmento, são apenas um meio para atingir um fim maior — desestabilizar Luís Montenegro — e, por isso mesmo, não pretende mexer um músculo para acomodar os espíritos mais irrequietos. Segundo os planos da direção, Montenegro não cede, Miranda Sarmento fica e os agitadores ficarão a falar sozinhos.
Os episódios de tensão entre líder e grupo parlamentar vão-se sucedendo. O mais recente aconteceu a 21 de junho à boleia de um caso insólito. Rui Cristina, deputado eleito por Faro, assinou e apresentou um requerimento para ouvir com caráter de urgência o agora ex-diretor de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina de Reprodução do Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN), Diogo Ayres de Campos, e o Conselho de Administração do mesmo centro, que o exonerou.
Ora, poucas horas depois, Miranda Sarmento anunciou a retirada desta iniciativa, dizendo à Agência Lusa que tal pedido era “extemporâneo”. Este recuo inaudito teve, na verdade, uma razão de ser: apesar de existir de facto a vontade de ouvir Diogo Ayres de Campos, faltavam acertar detalhes e o requerimento carecia de luz verde do líder parlamentar; Rui Cristina enviou o documento para o gabinete de comunicação do partido na Assembleia da República e este seguiu assim mesmo para os jornais; Miranda Sarmento sentiu-se ultrapassado e decidiu mandar tudo para trás.
“Tinha de mostrar quem mandava. E fez bem”, resume ao Observador um social-democrata que acompanhou de perto o processo. Curiosamente ou não, nesse 21 de junho, quarta-feira, durante o debate de interpelação ao Governo sobre o Serviço Nacional de Saúde, em que Rui Cristina interveio, a primeira fila da bancada do PSD não tinha nem Joaquim Miranda Sarmento nem qualquer outro vice-presidente do grupo parlamentar.
De resto, existe a profunda convicção de que os agitadores, ao pretenderem fragilizar o líder em funções, acabam sempre por ser penalizados pelo partido, pouco adepto de golpes palacianos. Que o digam os rioístas: depois de ter herdado uma bancada parlamentar que lhe era hostil, Rui Rio fez sistematicamente campanha contra os críticos internos e conseguiu ser reeleito por duas vezes contra todas as expectativas que existiam — e muitos do que agora estão do lado da direção de Montenegro eram os que conspiravam contra Rio.
Seja como for, este foi apenas o último irritante entre líder — a quem os críticos internos acusam de estar excessivamente dependente da direção do partido — e grupo parlamentar, maioritariamente escolhido por Rui Rio, em 2022. Ainda no início de junho, o Observador escrevia que os adversários da atual liderança estavam a exigir novas eleições para definir a nova direção da bancada e sugeriam mesmo a saída do próprio Miranda Sarmento.
“Isto já não é uma direção de grupo parlamentar. Isto é uma direção para lamentar”, dizia um deputado social-democrata desalinhado. “Já caíram mais ‘vices’ da bancada do PSD do que ministros do Governo socialista”, acrescentava outro, referindo-se à suspensão de mandato de Ricardo Baptista Leite. “Está desmotivado e cansado. Impuseram-lhe uma equipa com a qual não se identifica. Não tem espírito de liderança. Com o fim desta sessão legislativa, deveria ser repensada uma alteração”, sintetizava outro.
Nos corredores do PSD, já nessa altura se suspirava por figuras como João Moura ou Paulo Rios de Oliveira, ambos ‘vices’ da bancada parlamentar, para assumirem a liderança do grupo de deputados. Dias depois, o semanário “Sol” dava corpo a esses mesmos rumores e titulava: “Montenegro prepara mudanças na bancada. Rios de Oliveira e João Moura são os mais falados para render Joaquim Miranda Sarmento”. Nesta altura, sabe o Observador, não é essa a vontade de Luís Montenegro: o líder parlamentar está para ficar e pode perfeitamente ficar até ao fim da legislatura.
Aliás, estas duas figuras — Moura e Rios de Oliveira — surgiram associados a dois episódios que causaram alguma irritação na bancada social-democrata. Assim que que Ricardo Baptista Leite suspendeu o mandato de deputado, João Moura foi promovido a vice-presidente do grupo parlamentar, Miranda Sarmento comunicou formalmente aos deputados as alterações na equipa a transferência dos pelouros (financeiro e pessoal) de Moura para a deputada Clara Marques Mendes. O deputado de Santarém, no entanto, terá decidido enviar um email aos demais deputados, já depois da comunicação de Miranda Sarmento, sublinhando que tal transferência de pelouros só acontecia porque agora passaria a ser o primeiro vice da bancada.
Com Paulo Rios de Oliveira o caso foi diferente. O deputado social-democrata, que é igualmente vice da bancada, fez parte do grupo que se insurgiu contra Joaquim Miranda Sarmento em plena reunião de deputados pela forma como a direção da bancada e a direção nacional estavam a gerir o caso Tutti-Frutti (ver abaixo) — Rios de Oliveira referiu-se mesmo à investigação, cujos indícios foram sendo revelados ciclicamente desde 2017, como um “nojo”, defendendo o seu colega de bancada Carlos Eduardo Reis. Segundo apurou o Observador, Luís Montenegro não terá gostado nada das posições assumidas por Rios de Oliveira naquela reunião e como desautorizou Miranda Sarmento.
A 2 de junho, no programa “São Bento à Sexta”, da Rádio Renascença, o próprio líder parlamentar falou abertamente sobre o seu futuro, deixando um recado à navegação: “Não há lugar que tenha maior desapego por este lugar do que eu. Mas enquanto sentir que a esmagadora maioria dos meus colegas confia em mim, e sinto isso, serei líder parlamentar. No dia em que a maioria dos meus colegas não confiar em mim, então aí não tenho condições”.
União no Tutti-Frutti foi aviso sério
Seja como for, se os críticos internos não ficaram convencidos até agora com os méritos da liderança de Miranda Sarmento, não há qualquer sinal de que venham a ficar no futuro. Entre os opositores, há quem lhe aponte uma excessiva dependência face à direção nacional, o que se materializa numa “direção manietada” e que tem “sempre que aguardar por validação” da São Caetano à Lapa. “Miranda Sarmento não decide nada sem perguntar. Tem autonomia zero”, lamenta-se.
A liderança de Joaquim Miranda Sarmento tem sido, aliás, marcada por episódios em que o presidente do grupo parlamentar se “atravessou” por tomadas de posição de Luís Montenegro ainda que isso tenha dificultado a gestão interna da bancada. Logo dois meses depois de assumir a presidência do grupo parlamentar, a indicação de voto no candidato indicado pelo Chega para vice-presidente da Assembleia da República motivou críticas a Miranda Sarmento, que foi obrigado a reconhecer que era aquela a vontade do presidente do partido e, como tal, deveria ser respeitada.
Mais tarde, foi a apresentação do projeto de revisão constitucional do PSD a criar mal-estar entre os deputados. António Leitão Amaro, vice-presidente do partido, foi à reunião da bancada apresentar o projeto apenas um dia antes de o dar a conhecer no Conselho Nacional do PSD, o que levou alguns parlamentares a queixarem-se de terem ficado “às escuras” neste processo de revisão.
As prestações nos debates parlamentares com o primeiro-ministro e a falta de voz de comando na Assembleia da República têm igualmente exasperado os críticos internos. Mas, ainda assim, o momento mais delicado aconteceu a propósito da reação do partido à Operação Tutti-Frutti. Nessa altura, durante reunião da bancada parlamentar do PSD, que decorreu, como habitualmente, à porta fechada, Carlos Eduardo Reis, um dos sociais-democratas envolvidos no processo, apontou diretamente o dedo a Joaquim Miranda Sarmento, acusando-o de ter usado o caso para atacar o Governo em pleno debate com o primeiro-ministro sem sequer ter falado com o próprio deputado.
À frente dos deputados, Carlos Eduardo Reis criticou duramente o seu líder parlamentar. “Não estarei disponível para ser o idiota útil e muito menos sangrado na comunicação social porque dá jeito tirar dois ministros do Governo para haver eleições antecipadas”, avisou. Na resposta, Miranda Sarmento explicou que, havendo um caso desta dimensão e a envolver os dois partidos, o tema não poderia ficar de fora do debate com o primeiro-ministro.
O caso não ficaria por aqui. Tal como então escreveu o Observador foram muitos os deputados do PSD a apoiar Carlos Eduardo Reis e a sugerir que a direção do partido deveria ter cuidado com os telhados de vidro que tinha. Uma das intervenções mais relevantes foi a de Nuno Carvalho, deputado eleito por Setúbal, que recordou que os casos em que o próprio Luís Montenegro se tinha visto envolvido, a solidariedade que mereceu por parte do partido e a exigir o mesmo tratamento a Carlos Eduardo Reis. Pormenor: todos os deputados que enfrentaram Miranda Sarmento são rioístas e/ou aliados de longa data de Carlos Eduardo Reis, ele próprio um dos antigos generais de Rui Rio.
Estes episódios foram contribuindo ao longo dos meses para aumentar as queixas de ingerência da direção nacional no grupo parlamentar. A falta de autonomia dos deputados é apontada por estes críticos internos como fazendo parte do estilo de liderança de Luís Montenegro e de Hugo Soares, agora secretário-geral do PSD e ele mesmo antigo presidente do grupo parlamentar do partido no arranque da era Rui Rio — por vontade do então presidente do partido, Hugo Soares duraria muito pouco no cargo.
Em 2018, quando assumiu a presidência do partido Rui Rio herdou uma bancada escolhida por Pedro Passos Coelho e um líder parlamentar que lhe era frontalmente crítico. O então líder social-democrata foi rápido a manifestar “o desejo de trabalhar com outra direção parlamentar” e levou Fernando Negrão a liderar uma bancada totalmente dividida, tendo sido eleito com apenas 39% dos votos.
Rui Rio só teve uma bancada em quem confiava depois das legislativas de 2019 e, mesmo assim, assumiu a liderança parlamentar em simultâneo com a liderança partidária, antes de ceder o lugar a Adão Silva, que, por sua vez, o cederia a Paulo Mota Pinto. A história repetir-se-ia: depois da eleição de Montenegro, o novo líder social-democrata despachou Mota Pinto para dar lugar a Joaquim Miranda Sarmento, que acabou eleito com com 59%, um resultado igualmente tímido. Daí para cá, não se pode dizer que as coisas tenham mudado de figura. Antes pelo contrário.