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“Começa a haver uma sensação de inevitabilidade.” É isso que Scott Boston, analista militar do think-tank norte-americano RAND, que tem acompanhado as movimentações das tropas russas ao longo da fronteira com a Ucrânia, diz ao Observador que sente sobre a possibilidade de uma invasão russa a território ucraniano nos próximos dias. Certezas? Nenhuma, neste momento. Nem sobre a real possibilidade de um conflito armado nem sobre o tipo de operação que Moscovo pode desencadear, se Vladimir Putin avançar. Se isso acontecer, que guerra teremos na Europa?
Os Estados Unidos da América têm alertado que há uma forte possibilidade de haver uma incursão militar esta quarta-feira, dia 16. Fontes da Casa Branca têm dito aos jornais que há a possibilidade de um ataque militar em direção à capital Kiev, com responsáveis norte-americanos a darem mesmo uma estimativa de 50 mil vítimas civis, entre mortos e feridos.
Os analistas militares destacam que, nos últimos dias, a escalada militar russa se tem acentuado. Neste momento, quase 100 dos 168 batalhões táticos — forças compostas por 800 a 900 militares que funcionam de forma mais flexível e com capacidade de atuação mais rápida — estarão na zona da fronteira, espalhados entre a Bielorrússia (a norte da Ucrânia), a zona de Rostov-on-Don (a leste) e a Crimeia (a sul).
“Nos últimos dias, temos visto o tipo de coisas que se espera quando está a ser preparada uma intervenção militar”, explica Boston. “Há unidades das forças russas a sair de quartéis para locais mais perto da fronteira. Algum do armamento mais de topo, como mísseis terra-ar, estão a ser deslocados. E até forças de combate aéreo estão a mover-se para zonas que são as esperadas para se colocarem como apoio às forças terrestres que já estão no terreno.” Um movimento maciço — com Boston a destacar que até forças que estavam próximas do Pacífico foram transferidas para Ocidente. “Já vimos isto antes, mas nunca com unidades de prontidão já colocadas em posição como estão agora”, alerta.
Estamos perante uma invasão militar inevitável? Ou ainda há espaço para a diplomacia encontrar uma solução? E, caso essa solução não surja: como poderá a Rússia atacar militarmente a Ucrânia? E o que esperar para depois? Foram estas algumas das perguntas que o Observador fez a dois analistas militares para tentar perceber, no meio de toda a informação por vezes contraditória que circula, o que podemos esperar caso a guerra volte, novamente, a eclodir na Europa.
Impedir a adesão da Ucrânia à NATO, o acordo de bastidores que pode estar a ser discutido?
Esta segunda-feira, o governo russo disse que ainda existe uma “oportunidade” para resolver o atual momento de tensão. “Há a possibilidade de chegar a um acordo com os nossos parceiros sobre questões fundamentais ou é uma tentativa de nos arrastar para negociações intermináveis?”, questionou o Presidente russo, Vladimir Putin, numa pergunta dirigida ao seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov. A Rússia diz que ainda acredita, mas quer garantias de que a Ucrânia não se juntará à NATO no futuro.
Na sequência de declarações iniciais que pareciam abrir a porta a essa situação, o embaixador da Ucrânia no Reino Unido, Vadym Prystaiko, veio esclarecer que essa não é uma possibilidade em cima da mesa: “Estamos prontos a fazer muitas concessões e é isso que estamos a fazer em conversações com os russos. Não tem nada que ver com a NATO, que está consagrada na nossa Constituição”, disse, citando a emenda aprovada em 2019 que inscreveu no texto fundamental do país a vontade de aderir à aliança militar, bem como à União Europeia (UE).
O presidente do Centro Português de Geopolítica, o coronel Carlos Mendes Dias, acredita que, independentemente do que Kiev diga em público, essa pode ser a solução diplomática que se está a desenhar nos corredores e que pode impedir o conflito de rebentar. “Creio que, para mal dos nossos pecados, a decisão já está tomada, não há outra forma”, afirma ao Observador, explicando que pode estar em curso um acordo tácito para não permitir a adesão da Ucrânia à NATO e, em troca, a Rússia retirar as suas tropas da região. Só que, explica, tal entendimento não deverá ser anunciado em público: “Nesta altura, estica-se a corda, mas ninguém quer que ela rebente. E, à luz da opinião pública, todos terão que salvar a face.”
Uma ideia também explorada pelo analista especializado na Rússia, Mark Galeotti, que explica como pode tal ideia estar a ser trabalhada nos bastidores: “Não podemos dizer que a Ucrânia nunca poderá juntar-se à NATO”, disse, em entrevista ao Vox. “Mas talvez possamos dizer ‘Olhem, isto de qualquer forma vai demorar e podemos garantir que não vamos colocar tropas da NATO ou qualquer arquitetura de segurança em terreno ucraniano. A Ucrânia pode vir a ficar debaixo do guarda-chuva de defesa da NATO, mas, pelo menos em tempo de paz, [Putin] não vai ter de se preocupar com isso.”
Para o analista, a diplomacia estará agora a trabalhar na forma de “embrulhar” uma ideia destas: “Vamos ter de fazer um embrulho bonito, com um papel florido e um grande laço prateado, porque Putin precisa de sentir que conseguiu algo e que pode dizer em casa que venceu.”
Caso estas negociações de última hora falhem, pode mesmo cumprir-se o ataque militar russo a solo ucraniano. E, aí, o cenário é extremamente preocupante para Kiev.
Invasão para controlar todo o país é improvável — mas ataque “em pinça” é possível
Os analistas militares ouvidos pelo Observador, descartam, contudo, que a Rússia arrisque avançar para uma invasão militar total que almeje controlar todo o país. “O mais plausível é que seja uma invasão, mas não em larga escala”, aponta Scott Boston. “Eles podem ter colocado todas estas unidades na fronteira para ameaçar, mas não tencionam usá-las todas.”
Os Estados Unidos estimam que, para conseguir controlar toda a Ucrânia, a Rússia necessitaria de usar pelo menos 100 batalhões. Algo que, de acordo com especialistas como Konrad Muzyka, analista da Rocham Consulting que tem observado imagens de satélite para monitorizar as tropas russas, é improvável neste momento: “As imagens mostram-nos que não há tendas suficientes”.
A Ucrânia também tem sublinhado essa ideia em público. “Este número é insuficiente para uma ofensiva em larga escala ao longo de toda a fronteira”, afirmou o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano Dmytro Kuleba na semana passada. “Podemos dizer 100 vezes por dia que uma invasão está iminente, mas isso não muda a situação no terreno”.
Os especialistas, porém, consideram que tal não é relevante, já que a estratégia russa pode não ser essa — e nem por isso ser menos disruptiva. “Não acho que a Rússia queira uma guerra prolongada ou uma ocupação durante décadas. Acho mais provável algo semelhante ao que aconteceu no leste da Ucrânia em 2014”, aponta Boston. “O mais certo seria eles tentarem criar um novo regime com um rosto ‘ucraniano’, um governo local por procuração.”
Neste momento, diz o analista do RAND, a Rússia tem “muitas opções” em termos militares em cima da mesa. Isto porque a Ucrânia está rodeada a norte, leste e sul, o que dá às forças russas diversas opções numa eventual tentativa de invadir o país.
A norte, na Bielorrússia, os russos estão a realizar uma série de exercícios militares que fazem com que estejam milhares das suas tropas naquela região, com particular concentração em zonas como Rechitsa e Gomel, a escassos quilómetros de Kiev. A NATO diz que no país estão neste momento 30 mil tropas russas, bem como membros das forças especiais (Spetsnaz), aviões de combate e sistemas Iskander, com capacidade de lançar mísseis balísticos de curto alcance.
A leste, não só há as forças separatistas em Donbass (cujo envolvimento com as forças russas não é claro), como em Rostov-on-Don há milhares de outras forças russas. Na Crimeia, a sul, há toda a força naval, além dos militares em terra.
Isto abre caminho para aquilo a que os militares chamam uma possível invasão “em pinça”: ou seja, com um ataque a partir de dois ou mais lados. Razão pela qual o coronel Mendes Dias alerta que, “se a dimensão militar russa entrar em campo”, a Ucrânia corre o risco de ser “absorvida”. “E duvido que seja num movimento único”, avisa.
Norte, leste e sul: as três frentes de ataque e as possíveis manobras de diversão
Se o ataque vier de norte, a partir da Bielorrússia e da zona de Yelnya e Klintsky (na Rússia), Kiev fica sob risco. Primeiro, os soldados terão de atravessar uma zona pantanosa, conhecida como os Pântanos Pinsk, que dividem a zona de fronteira entre a Bielorrússia e a Ucrânia. A CNN relembra que foi esta mesma região que dificultou a invasão da Alemanha Nazi à União Soviética durante a Operação Barbarossa. Contudo, não é impossível e o objetivo de chegar a Kiev é uma motivação extra.
“Não creio que seja necessariamente para a invadir, é uma cidade grande e tem um rio [Dniepre] a dividi-la”, destaca Boston. “Mas é possível rodear a cidade e tentar empurrar o governo ucraniano a render-se. É claro que podem tentar invadi-la, mas isso seria difícil e caro. Também depende tudo da capacidade ucraniana para defender a cidade.”
O risco, porém, seria elevado. Como destacou o antigo vice-secretário do Conselho de Segurança e Defesa ucraniano, o general Sergey Krivonos, “chegar a Kiev não é o difícil, difícil é manter o território”. Independentemente disso, com sistemas de defesa anti-aérea colocados na zona da Bielorrússia, as forças russas conseguem atacar através da sua força aérea e com recurso a mísseis, conseguindo impedir os ucranianos de retaliarem com a mesma força.
Já a leste, com recurso às forças que estão em zonas como Rostov-on-Don e ao apoio que têm em Donbass, esse será provavelmente um dos focos onde a ofensiva poderia começar. Mendes Dias considera mesmo que esse pode ser o primeiro local: “O objetivo seria o de garantir que Donbass fica de vez do lado russo”, vaticina. Scott Boston concorda e explica como uma ofensiva dessas pode combinar-se com outra a Kiev: “Uma grande percentagem do exército ucraniano está em Donbass. Se as forças russas conseguirem contorná-lo e isolar essas forças, não só podem fazer vários prisioneiros, como impedem que eles possam ser destacados para defender zonas como o rio Dniepre e a cidade de Kiev.”
Além disto, não pode ser excluída a possibilidade de a Rússia usar a sua presença na Crimeia, a sul, que é acompanhada não só de forças terrestres e aéreas, mas também navais. Por um lado, podem tentar criar um corredor que ligue esta zona a Donbass, através da cidade costeira de Mariupol, o que daria à Rússia um acesso terrestre à Crimeia por território ucraniano. Por outro, pode tentar um assalto anfíbio na costa do Mar Negro, combinando com forças terrestres e marítimas, para tentar chegar a Odessa e criar um corredor até à Moldávia.
Scott Boston, porém, alerta que a tentativa de chegar a Odessa é das mais complicadas para os russos: “Em 2014, tentaram coisas semelhantes e não conseguiram, porque não havia sentimento pró-russo suficiente em Odessa, como havia no leste da Ucrânia. Parece-me difícil, tendo em conta a quantidade de terreno que teriam de conquistar. Mas, claro, também podem tentar fazer algo ali para atrair as forças ucranianas e deixar Kiev a descoberto”, considera. Uma espécie de manobra de diversão para desorientar as forças ucranianas está, por isso, em cima da mesa.
Um confronto de “David contra Golias”
Certo é que, independentemente da estratégia que as forças russas possam adotar, a Ucrânia não tem grande capacidade para aguentar sozinha uma invasão, seja ela de que tipo for. Atualmente, o exército ucraniano conta com cerca de 145 mil tropas, estando 50% delas colocadas na zona do rio Dniepre e bastantes também colocadas em Donbass. Há ainda algumas centenas de milhares de reservistas e vários civis que têm treinado em milícias para lutar contra uma possível invasão. Mas tal, contudo, é pouco perante o poderio militar da Rússia.
“A força aérea russa é muito maior e mais moderna do que a ucraniana. Tem pilotos mais experientes e munições e sensores mais modernos”, descreve Scott Boston. “A Ucrânia tem algumas defesas aéreas, mas são antigas, ainda ligadas ao sistema soviético e a Rússia tem grande familiaridade com esses sistemas.” Além da combinação da força aérea com as tropas de artilharia, a Rússia pode ainda usar táticas como ataques cibernéticos para perturbar as comunicações entre militares ucranianos e criar uma sensação de instabilidade entre a população. “Se não se chegar a um compromisso e a corda rebentar, há de ser um confronto de David contra Golias”, prevê o coronel Mendes Dias. “Com a diferença de que David desta vez não vai ganhar.”
James Heappey, secretário de Estado britânico das Forças Armadas, disse esta segunda-feira que, “minutos depois de Putin dar a ordem, podem aterrar mísseis e bombas nas cidades ucranianas”. Será verdade? Estamos perante uma possível guerra que pode afetar civis? Scott Boston tenta explicar: por um lado, diz, é certo que a Rússia tem uma capacidade de lançamento de mísseis, através do seu sistema Iskander, que pode ter um alcance de 500 quilómetros. “Contudo, eles não têm assim tantos que possam disparar para todos os alvos, por isso creio que iriam focar-se em alvos militares como quartéis-generais, defesas aéreas ucranianas, etc.”
O especialista acrescenta que, para além destes mísseis de grande precisão, a Rússia pode recorrer a mísseis de menor alcance, como mísseis de cruzeiro ou os Smerch — e estes, sim, representam maiores riscos para os civis. “São mísseis de curto alcance que podem ser muito destrutivos. Usaram-nos em Donbass num ataque que matou 17 pessoas”, ilustra. “Os sistemas de artilharia russa ainda são algo indiscriminados e exigem muitas munições. Portanto, quando tentam usar estes sistemas para atacar um alvo específico, gastam muitas munições e sabe-se lá quem podem atingir”. O investigador do RAND é taxativo ao dizer que estamos perante uma situação “muito perigosa”.
NATO poderá envolver-se no terreno? Sinais não apontam nesse sentido
No meio da especulação, ao olhar para a quantidade de cenários militares possíveis, é impossível não nos questionarmos sobre se um conflito deste tipo se poderia alastrar à NATO e, por conseguinte, a Portugal. A Aliança Atlântica tem reforçado a sua presença nos países do leste da Europa, como Polónia e Roménia, na sequência da escalada de tensão na Ucrânia — incluindo o envio de três mil tropas norte-americanas para a região.
O coronel Mendes Dias não tem dúvidas de que, perante a situação atual, o mais certo é já ter sido pedido a todos os países da NATO que revelem “a sua disponibilidade de forças”. “Não sou bruxo, mas manda a lógica [considerar] que os ministros da Defesa da NATO com certeza já enviaram dados sobre os seus contingentes”, diz o presidente do Centro Português de Geopolítica.
A cooperação nesta região da Europa entre os aliados da NATO tem estado continuamente a crescer desde a invasão da Crimeia, recorda. Portugal tem participado “no âmbito do policiamento aéreo” e “ainda no passado estiveram 50 fuzileiros portugueses na Lituânia”, aponta o coronel. “Portanto, quer em quadros anteriores, resultando da sequela da Crimeia, quer nesta circunstância, obviamente que Portugal esteve e estará envolvido de uma forma ou de outra se a NATO atuar.”
Isso não significa, porém, que seja provável que a NATO atue. O coronel Mendes Dias considera “difícil” que os membros da Aliança atuem militarmente na Ucrânia em caso de invasão russa. E aponta três fatores para isso: o precedente da Crimeia, em 2014, quando a NATO não atuou e demonstrou que “a Rússia não podia ficar sem a Crimeia, mas o Ocidente podia”; o facto de a decisão ter de ser tomada por unanimidade por todos os países da Aliança, algo “muito difícil de atingir”; e, olhando “de forma fria”, o facto de que a Ucrânia tem servido de “zona-tampão” para a NATO em relação à Rússia.
“O invocar do Artigo 5.º só ganha maior credibilidade se, de facto, houvesse uma ameaça à Polónia”, aponta Mendes Dias, que sublinha a ideia de que “a fatalidade posicional da Polónia” é historicamente o verdadeiro problema para a Europa. Ou seja: a Ucrânia não é geoestrategicamente relevante o suficiente para que a Aliança decida intervir.
Posição que Mendes Dias crê estar a ser deixada clara pela atuação dos Estados Unidos. “Têm colocado tropas perto, mandaram retirar pessoal das embaixadas, mas tudo isso são elementos pouco dissuasores”, diz. “Os EUA não se vão envolver. Vão envolver-se nas palavras, mas, de forma decisiva, não acredito nisso.” Apesar da retórica, Biden tem dito que não enviará tropas para a Ucrânia e que a resposta a uma invasão russa seria um conjunto de sanções económicas “sem precedentes”.
Um ataque militar, porém, poderia ter uma consequência clara para a Europa e os membros da NATO: uma crise de refugiados, como aconteceu com a Crimeia, onde mais de um milhão de pessoas fugiu em 2014. A possibilidade de a Aliança do Tratado do Atlântico Norte reagir com a criação de tendas e outras estruturas rápidas para acolher pessoas em países como a Polónia é real, mas não deverá chegar para motivar a NATO a ir para além desse tipo de apoio, crê o coronel Mendes Dias. “A diferença é que, para a Rússia, a Ucrânia é um território vital, e para o Ocidente não. E, quando um território é vital para um governo, há pessoas que morrem por isso.”