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Mulher de um mercador, amante de um homem poderoso ou uma invenção de Leonardo da Vinci. Quem foi "Mona Lisa"?

Em 1503, um mercador encomendou um retrato da sua mulher. Nunca chegou a recebê-lo. O pintor levou-o para França, onde um roubo o tornou conhecido. Esta é a história do quadro mais famoso da História.

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Na década de 1510, motivado pela instabilidade política que se fazia sentir na península itálica, que dificultava a procura de trabalho, Leonardo da Vinci aceitou o convite do jovem rei Francisco I para se juntar à sua corte. Com 65 anos, uma idade já avançada, Leonardo abandonou a cidade de Roma, onde se encontrava a estudar problemas geométricos, e, acompanhado pelo seu aluno mais dedicado, Francesco de Melzi, estabeleceu-se junto às margens do rio Loire, em Cloux (hoje Clos-Lucé). Além do material de trabalho, levou consigo uma pintura em que estava a trabalhar desde a primavera de 1503, há mais de dez anos — o retrato da mulher de um rico comerciante florentino, Lisa Gherardini. A Mona Lisa.

Leonardo chegou a França em 1516, tornando-se no “primeiro pintor, arquiteto e engenheiro” do monarca francês. Nunca mais regressou a Itália (país que só viria a existir sob esta dominação a partir do século XIX). Foi instalado numa pequena casa (atualmente conhecida por Château du Clos Lucé), perto do palácio de verão de Francisco I, em Amboise, e foi-lhe atribuída uma pensão. Durante o tempo que viveu em França, Leonardo pintou pouco, dedicando-se sobretudo aos seus estudos científicos, ao seu tratado sobre pintura e às poucas páginas do tratado sobre anatomia. Morreu três anos depois de ter chegado à corte de Francisco, a 2 de maio de 1519, há 500 anos (uma data que será assinalada este ano um pouco por todo o mundo). O seu corpo foi sepultado na igreja de Saint-Florentin, que já não existe. O monumento foi destruído durante a Revolução Francesa.

A Mona Lisa sobreviveu ao seu autor. Foi adquirida por Francisco I e passou a integrar a coleção de arte da coroa francesa, decorando durante dois séculos as paredes da casa da família real. Com a queda da monarquia, no século XVIII, foi levada pelos revolucionários. Acabou nas mãos de Napoleão Bonaparte que, como muitos homens antes e depois dele, se deixou enfeitiçar pelo enigmático sorriso da jovem mulher. Em 1815, seis anos antes da morte da Napoleão, a Mona Lisa foi levada para o Louvre, em Paris. Com o passar dos séculos, o pequeno retrato (mede apenas 77 centímetros de altura por 53 centímetros de largura) tornou-se na principal atração do museu — estima-se que, pelo menos, 7,14 milhões de pessoas visitem todos os anos o quadro, segundo dados fornecidos pela instituição parisiense ao Observador.

Nem sempre foi assim. Houve um tempo em que o retrato, pouco conhecido, partilhava uma sala com muitas outras pinturas renascentistas. Foi o seu roubo espetacular, no início do século XX, que o atirou para as luzes da ribalta. Desde então, muito se tem dito e escrito sobre o quadro e a mulher nele retratado. As teorias são muitas, mas na opinião dos principais especialistas na obra de Leonardo da Vinci não restam dúvidas acerca do seu verdadeiro nome — Lisa Gherardini del Giocondo é a Mona Lisa. E esta é a sua história.

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O Louvre estima que pelo menos 70 ou 75% dos visitantes se desloquem até à Salle dês États para ver a "Mona Lisa". No ano passado, o museu parisiense recebeu 7,14 milhões de pessoas

Getty Images

Um retrato de uma nobre mulher de Florença

Mais de 500 anos depois, a identidade da mulher retratada na pintura conhecida por Mona Lisa (italiano para “Minha Senhora Lisa”) continua a ser alvo de uma acesa discussão. Para isso contribuiu o seu sorriso enigmático, os olhos vivos que parecem seguir quem se aproxima dela mas também a escassez de fontes que confirmem o nome da mulher que lhe serviu de modelo. As teorias são várias — e até disparatadas —, e vão desde a mãe do artista ao próprio Leonardo com uma peruca. É contudo unânime entre os principais especialistas na obra de Leonardo da Vinci de que se trata de um retrato de Lisa Gherardini, a terceira (ou talvez segunda) mulher de um rico comerciante florentino, Francesco del Giocondo, que teria ligações à família do artista. É o seu nome — revelado pela primeira vez em meados do século XVI pelo pintor e historiador Giorgio Vasari e confirmado mais recentemente por um investigador alemão — que se encontra escrito junto à pintura no Museu do Louvre.

Mas quem eram os Giocondo?

Francesco di Bartolomeo di Zanobi del Giocondo, nascido em 1460, era um abastado mercador de seda, um importante homem de negócios e um político, tendo desempenhado vários cargos de prestígio na cidade de Florença. Depois de ter perdido duas mulheres, possivelmente durante o parto, casou a 5 de março de 1495 com Lisa Gherardini, então com 16 anos. Camila di Mariotto Rucellai, com quem tinha sido casado anteriormente, tinha morrido em 1494.

Nascida a 15 de junho de 1479, numa casa no cruzamento da Via Squazza com a Via Maggio, em Florença, Lisa — que tinha recebido o nome em honra da avó paterna — era 14 anos mais nova do que Francesco e oriunda de uma antiga família nobre de proprietários rurais (cuja origem remonta ao século X) que tinha perdido influência. Passados oito anos do casamento, Francesco del Gioconco encomendou, na primavera de 1503, um retrato de Lisa a Leonardo da Vinci. A pintura não se trataria apenas de um capricho. O casal parece ter tido uma boa relação — no seu testamento, Giocondo descreveu a mulher, por quem tinha “amor e afeição”, como “fiel” e de “espírito nobre” — e a obra de arte serviria para celebrar dois acontecimentos marcantes — a compra de uma casa e o nascimento do terceiro filho do casal, Andrea (nascido em dezembro de 1502).

Na opinião de Frank Zöllner, autor de um livro sobre as obras completas de Leonardo da Vinci, estas eram boas razões para encomendar um quadro na Florença dos séculos XV e XVI. Regra geral, “os patronos burgueses das cidades” só encomendavam pinturas por “motivos importantes” e, “no quadro particular” dos Giocondo, “o nascimento de Andrea revestia-se de um significado particular”, explicou o investigador alemão, um dos maiores especialistas na obra de Leonardo, no volume publicado pela Taschen. Francesco del Giocondo teria perdido as duas primeiras mulheres durante o parto ou poucas semanas depois. “Na família, o nascimento de uma criança era portanto um acontecimento agravado por antecedentes trágicos”, concluiu o investigador alemão. O casal teve ainda mais dois filhos: Giocondo e Marietta. Os mais velhos chamavam-se Piero e Camilla.

Maddalena Doni, um dos retratos de Rafael que se acredita ter sido inspirado pela Mona Lisa. A retratada, Maddalena Strozzi, era mulher do mercador Agnolo Doni, também pintado pelo artista renascentista

Apesar das muitas incertezas que pontuam a vida e obra do pintor nascido em Vinci (Florença), não existem grandes dúvidas em relação à data da encomenda de Francesco del Giocondo. Em primeiro lugar porque terá sido na Mona Lisa que o jovem Rafael se terá inspirado para pintar os seus primeiros retratos femininos, como Senhora com Unicórnio (1505-6), que pertence à Galleria Borghese, em Roma, e Maddalena Doni (1506), que está no Palazzo Pitti, em Florença. O esboço Retrato de uma Senhora (1504), que faz parte da coleção do Louvre, também apresenta semelhanças com o retrato de Lisa Gherardini. Andrea Solario também terá sido influenciado pela obra do mestre florentino na produção de uma pintura de um dos patronos de Leonardo, Charles d’Amboise, em 1507.

A datação foi confirmada em 2005 com a descoberta de uma nota numa edição de 1477 das Epistolae ad familiares (uma coleção de cartas de Cícero) por Armin Schlechter, um investigador da Universidade de Heidelberg, na Alemanha. No apontamento, escrito à margem do texto, Agostino Vespucci, secretário do chanceler da cidade de Florença, comparou o trabalho de Leonardo da Vinci, que conhecia pessoalmente, com o do grego Apelles, referindo que o pintor florentino estava a trabalhar no retrato (ou melhor, na “cabeça”) de Lisa Gherardini del Giocondo: “O pintor Apelles. Assim faz Leonardo da Vinci em todos os seus quadros como, por exemplo, na cabeça de Lisa del Giocondo e na de Ana, mãe da Virgem Maria”. A nota está datada — outubro de 1503. Trata-se da mais antiga referência à pintura de Leonardo e ao seu modelo.

Leonardo terá aceitado a encomenda por causa de contactos pessoais. A família Giocondo pertencia à mesma camada social que o artista e Ser Piero da Vinci, pai de Leonardo, estava em contacto com pessoas que eram próximas do marido de Lisa Gherardini. Esta hipótese, referida por Zöllner no seu livro, foi também defendida por Giuseppe Pallanti, autor de Mona Lisa Revealed: The True Identity of Leonardo’s Model, que diz ter encontrado nos arquivos florentinos provas de que as duas famílias se conheciam.

De acordo com Pallanti, Ser Piero, que era notário, terá feito várias escrituras para Giocondo e para o seu irmão. Uma delas, referente a uma disputa por causa de um empréstimo com uns frades, é de 1497 (seis anos antes de Leonardo ter aceitado pintar o retrato de Lisa). “Tudo indica que o pai de Leonardo e o marido da Mona Lisa se conheciam muito antes de ela ter sido pintada e que socializavam”, afirmou o professor italiano ao The Telegraph por altura da publicação, em 2004, de um pequeno livro sobre as suas descobertas. “Os dois viviam ao lado um do outro.” O pai de Leonardo terá inclusivamente servido de intermediário, encomendado a pintura ao filho em nome de Francesco del Giocondo.

O chamado Cícero de Heidelberg, o documento com a nota de Agostino Vespucci, secretário  do chanceler de Florença e contemporâneo de Leonardo da Vinci, que provou definitivamente a identidade da Mona Lisa. O livro pertence à Biblioteca da Universidade de Heidelberg, na Alemanha

O próprio Leonardo da Vinci poderia já ter tido contacto com Giocondo. A capela familiar da família em Florença situava-se na Basilica della Santissima Annunziata, onde Leonardo tinha começado um cartão de Santa Ana no início da sua segunda estadia na cidade (1500-8). Giorgio Vasari, autor da primeira biografia do artista, publicada 31 anos depois da sua morte, também teria ligações aos Giocondo, explicando-se assim o porquê de o autor de As Vidas dos mais Excelentes Pintores, Escultores e Arquitetos (1550) ter sido o primeiro autor a desvendar a identidade da figura feminina pintada por Leonardo. No seu livro, Frank Zollnër colocou até a hipótese de o historiador de arte ter chegado a conhecer o mercador florentino e a sua mulher.

A mulher florentina que se tornou francesa (ou como a encomenda nunca chegou ao destino)

Leonardo da Vinci terá trabalhado ininterruptamente no retrato de Lisa Gherardini durante quatro anos, provavelmente desde março de 1503, após o seu regresso a Florença depois de uma estadia na região de Bolonha, até maio de 1506, quando partiu para Milão. Durante esse período, de modo a manter a boa disposição da modelo e para “afastar a melancolia que os pintores muitas vezes dão aos retratos que pintam”, terá mantido um grupo de cantores e músicos no estúdio, que tocavam enquanto trabalhava. É por essa razão que, segundo Vasari, a Mona Lisa tem “um sorriso tão agradável”, “mais divino do que humano”.

Francesco del Giocondo nunca chegou a receber o retrato da mulher. Quando saiu de Florença, em maio de 1506, rumo a Milão, Leonardo da Vinci levou consigo a Mona Lisa. Ainda terá voltado a trabalhar no quadro (estima-se que por volta de 1510), mas sem o deixar terminado, de acordo com Vasari. Anne Sefrioui, autora de O Guia do Louvre, considerou que talvez tenha sido “essa a razão pela qual o pintor o tenha levado para França”, após ter sido nomeado “primeiro pintor, arquiteto e engenheiro” de Francisco I. Frank Zöllner explicou ao Observador que é de facto muito provável que Leonardo tenha continuado a pintar a Mona Lisa depois de 1506. “Mas não sabemos nada sobre isso”, admitiu o investigador.

"É muito provável que Leonardo tenha trabalhado no retrato [da 'Mona Lisa'] depois de 1506, depois de ter saído de Florença. Mas não sabemos nada sobre isso."
Frank Zöllner, especialista na obra de Leonardo da Vinci

O rico mercador de seda morreu em 1538 (algumas fontes referem que a causa da morte terá sido a Peste, que tinha devastado Milão em 1485 e Florença alguns anos antes). Foi sepultado na Basilica della Santissima Annunziata. Depois da sua morte, Lisa entrou para o convento de Sant’ Orsola, na mesma cidade, onde estava a filha mais nova, Marietta, desde 1521 (a filha mais velha, Camilla, também se tornou freira). Morreu quatro anos depois, em julho de 1542, não chegando a ver o retrato que a tornaria famosa vários séculos depois.

Depois da morte de Leonardo da Vinci (alegadamente devido a um ataque cardíaco, uma hipótese confirmada em 2017 pelos cientistas Philippe Charlier e Saudamini Deo, que estudaram os alegados restos mortais do pintor, descobertos em 1863 no local da antiga igreja de de Saint-Florentin, em Amboise), a posse do quadro passou para Francisco I. A Mona Lisa permaneceu na coleção da casa real francesa durante dois séculos. Depois da Revolução Francesa (1789), o quadro esteve pendurado no quarto de Napoleão Bonaparte (que lhe chamava “Madame Lisa” e que esteve apaixonado por uma descente, Teresa Guadagni, “la belle italienne“) no Palácio das Tulherias, junto ao Sena (que hoje já não existe). No século XIX, quando foi enviado para o Louvre, criado em 1793, passou a estar acessível ao público, causando grande impacto na mente dos românticos.

“Lisa tornou-se na cara que causava centenas de fantasias, escreveu Dianne Sales no livro Mona Lisa. A Life Discovered. São vários os casos de jovens  que se deixaram apaixonar pela pintura, que recebia regularmente flores, poemas e cartas. A enigmática Mona Lisa foi inclusivamente, durante a segunda metade do século XIX, a causa de vários suicídios. Em 1852, um artista chamado Luz Maspero atirou-se do quarto andar de um hotel em Paris porque “durante anos” tinha tentado “apanhar” o seu sorriso”. “Prefiro morrer”, declarou na nota que deixou. Em 1910, um ano antes do seu famoso roubo, um homem matou-se com um tiro de revólver enquanto olhava para ela no Louvre.

As outras Giocondas (e as dúvidas que o Louvre diz que não tem)

Apesar de o nome da modelo de Leonardo da Vinci ter sido revelado em 1550 por Giorgio Vasari e de o chamado Cícero de Heidelberg o ter confirmado, a discussão em torno da sua identidade continua. Frank Zöllner não compreende porquê, uma vez que o apontamento de Agostino Vespucci, secretário do chanceler de Florença, provou, de uma vez por todas, que a mulher retratada por Leonardo é Lisa Gherardini e que o artista estava a trabalhar no quadro em outubro de 1903, alguns meses depois de ter sido encomendado. “Não pode continuar a haver dúvidas de que a pintura guardada em Paris mostra Lisa del Giocondo”, declarou o especialista no prefácio de 2017 das edições da Taschen.

Para o Louvre, há muito que a questão deixou de ser controversa. Na Salle des États, onde a Gioconda está exposta, o quadro é descrito como “Retrato de Lisa Gherardini, chamada Mona Lisa ou A Gioconda”, sem referência a outras teorias. “Desde o século XVI que a identificação do modelo é tradicionalmente Lisa Gherardini, mulher de Francesco del Giocondo. Isto foi reconfortado pela descoberta em 2005 de uma nota manuscrita de Agostino Vespucci, um homem que conhecia Leonardo. Hoje, esta identificação é apoiada pela maioria dos especialistas”, começou por explicar ao Observador Vicente Delieuvin, curador do departamento de pintura do Louvre e responsável pelas pinturas italianas do século XVI. “Obviamente que haverá sempre alguém que diga o contrário, mas quem o faz fala contra as fontes e ignora os arquivos”, frisou. “Para o Louvre, não há questão, não dúvida, não há mistério em relação à identidade do modelo: a Mona Lisa é o retrato de Lisa Gherardini del Giocondo.”

"Obviamente que haverá sempre alguém que diga o contrário. Para o Louvre, não há questão, não dúvida, não há mistério em relação à identidade do modelo: a 'Mona Lisa' é o retrato de Lisa Gherardini del Giocondo.”
Vincent Delieuvin, curador do Museu do Louvre

De facto, ao longo dos tempos (e inclusivamente depois da descoberta do Cícero de Heidelberg) muitas mulheres têm sido apontadas como sendo a verdadeira Gioconda. Entre estas contam-se algumas das amantes de Giuliano de Medici, cardeal e governador de Florença, que tinha mais meios e maior prestígio do que o mercador de seda de Florença. Esta hipótese tem por base o diário de viagem de Antonio de Beatis, secretário do cardeal Luís de Aragão, que, entre março de 1517 e março de 1518, realizou uma grande viagem pela Europa na companhia do clérigo. Esta incluiu uma visita ao Château du Clos Lucé, onde Beatis diz ter visto um retrato de “uma certa dama florentina, pintado à vista, a pedido de Giuliano de Medici, o Magnífico”.

As mulheres geralmente apontadas como tendo servido de modelo da Gioconda (algumas delas sem grande fundamento) são:

  • Constanza d’Avalos de Balzo, duquesa de Francavilla. Foi apontada pela primeira vez como modelo em 1929, por Aldolfo Venturi, que considerou como prova o facto de Constanza estar viúva na altura da realização do quatro. A Mona Lisa parece ter um véu igual ao que era usado pelas mulheres que tinham perdido os maridos;
  • Isabella Gualanda, filha de Ranieri Gualandi. Isabella pertencia à corte de Afonso de Aragão, duque de Calabria, e foi apontada como a modelo de um dos quadros que estavam em Clos Lucé por Antonio de Betis, secretário do cardeal Luís de Aragão;
  • Isabel de Aragão, duquesa de Milão. O seu nome foi sugerido por Robert Payne, em 1979, e por Maike Vogt-Luerssen, em 2003. Ambos defenderam que a mulher do duque de Milão, o seu primo direito Gian Galeazzo II Maria Sforza, teria sido pintada por Leonardo na década de 1490, durante a sua estadia na região milanesa, numa data muito anterior à que tem sido geralmente apontada. Esta hipótese foi defendida muito recentemente (2018) por Luca Tomio: “Mãe do Duchetto [Francesco Maria Sforza, ‘o pequeno príncipe’], deixada sem o título de duquesa pela política sem escrúpulos de Ludovico il Moro, Isabel estava a usar o véu de viúva pela morte do duque e consorte Gian Galeazzo Maria, que tinha morrido em 1494″, explicou o historiador de arte italiano em entrevista ao Corriere della Sera. Terá sido por isso que, quando o pintor Paolo Lomazzo viu a Mona Lisa no palácio de Fontainebleau, em meados do século XVI, lhe chamou “a Mona Lisa napolitana”. Isabel de Aragão era filha do rei de Nápoles, Afonso II.
  • Felisberta de Saboia, duquesa de Nemours. Irmã mais nova da mãe de Francisco I de França, Felisberta casou com Giuliano de Medici para ajudar o irmão, o Papa Leão X, a cimentar uma aliança com os franceses. Foi descrita como uma “mulher magra com uma cara pálida” e quase corcunda, mas a sua ligação aos Medici parece ter sido suficiente para o seu nome ser ponderado.
  • Isabella d’Este, marquesa de Mantua. Figura importante do Renascimento italiano que gostava de encomendar retratos a grandes artistas que raramente os pagava, Isabella é há muito uma das candidatas mais populares. Leonardo da Vinci terá feito dois retratos seus a carvão, mas nunca nenhuma pintura a óleo, apesar das suas insistências. Um desses esboços encontra-se no Louvre. Não se conhece qualquer ligação de Isabella d’Este a Giuliano de Medici;
  • Pacifica Bandano. Uma mulher de Urbino (cidade natal do pintor Rafael) sobre a qual pouco se sabe além de ter tido algum tipo de relacionamento com Giuliano de Medici, que remontará a 1510;
  • Caterina Sforza, condessa de Forli. Filha ilegítima de Galeazzo Maria Sforza, duque de Milão, e da sua amante, Lucrezia Landriani, que era casada com um dos seus amigos. O terceiro marido de Caterina (conhecida pelas suas inúmeros aventuras amorosas e pelo mau feitio que lhe valeu a alcunha de “Tigre de Forli”) era um primo distante de Giuliano de Medici, Giovanni de Medici il Poplano, mas não existem evidências de que os dois tenham sido amantes.

Apesar de o diário de Betis conter várias informações erradas (como a idade de Leonardo da Vinci), as suas afirmações relativamente ao que viu em Clos Lucé devem, na opinião de Frank Zöllner, ser tomadas a sério: “Foi provavelmente a Mona Lisa que ele viu, mas deveria realmente ser muito embaraçoso admitir que o agora famoso Leonardo da Vinci, pintor do rei de França e que anteriormente trabalhara na corte papal em Roma, ainda conservava na sua oficina uma pintura que começara na sua oficina uma pintura que começara 14 anos antes para um desconhecido comerciante florentino. Talvez por essa razão, o retrato é descrito como uma encomenda para o falecido Giuliano de Medici, que tinha morrido um ano antes”, afirmou o especialista no volume da Taschen.

Há quem acredite que a Mona Lisa de Isleworth é o verdadeiro retrato de Lisa Gherardini. A pintura terá sido levada de Itália no século XVIII por um nobre inglês, James Marwood. Hoje pertence a um consórcio internacional, com sede na Suíça

Mas nem todos estão convencidos de que a modelo da Mona Lisa existiu. Alguns investigadores acreditam que o quadro é uma obra de ficção, uma representação da mulher ideal aos olhos do artista e inventor florentino. Outros, como os membros da The Mona Lisa Foundation, defendem que o retrato do Louvre é uma versão tardia de uma primeira pintura, conhecida como a Mona Lisa de Isleworth. De acordo com a teoria defendida pela fundação sediada em Zurique, na Suíça, Leonardo teria começado a pintar a Mona Lisa do Louvre em 1513, em Roma, financiado por Giuliano de Medici e usando como modelo o retrato original de Lisa Gherardini. Este — a Mona Lisa de Isleworth — teria sido executado durante o primeiro período de trabalho geralmente apontado para a Gioconda, entre 1510 e 1513.

Isto explicaria a descrição feita por Antonio de Beatis, a ligação estabelecida com Giuliano e a frase de Gian Paolo Lomazzo, que se referiu, no seu tratado de pintura e arquitetura de 1584, à “Gioconda” e à “Mona Lisa”, dois quadros distintos da autoria de Leonardo da Vinci. A Mona Lisa que o secretário de Luís de Aragão teria visto seria a que está hoje em exibição em Paris. Esta teoria nunca conseguiu, contudo, reunir o consenso dos principais especialistas na obra de Leonardo da Vinci. “Como é que alguém pode acredita que é uma pintura de Leonardo?”, interrogou Frank Zöllner. “Nem pensar, que quadro horrível!”

O historiador de arte Silvano Vincenti — cujas controversas teorias sobre a obra incluem a alegada existência das letras “L” e “V”, as iniciais do artista, na pupila direita da figura — acredita que a Gioconda é um figura andrógina, criada a partir de um modelo feminino (a mulher de Francesco del Gioconco) e de um masculino (não identificado). Outra teoria muito popular defende que a Mona Lisa é o próprio Leonardo vestido de mulher. Lillian Schwartz, artista norte-americana pioneira no uso do computador na arte e autora de Leonardo’s Hidden Face, tentou prová-lo recorrendo ao esboço Cabeça de um homem com Barba, presumivelmente um autorretrato de Leonardo (ainda que não exista nada que o prove). Na opinião de Schwartz, basta colocar a Cabeça de um homem ao lado de a Mona Lisa para perceber que se trata da mesma pessoa.

“Como é que alguém pode acredita que [a 'Mona Lisa de Isleworth'] é uma pintura de Leonardo? Nem pensar, que quadro horrível!”
Frank Zöllner, especialista na obra de Leonardo da Vinci

Além da Mona Lisa do Louvre e da de Isleworth existe ainda uma terceira: a do Prado. Em 2011, um trabalho de conservação e restauro permitiu revelar uma paisagem rochosa semelhante à da Gioconda de Paris. Esta tinha permanecido tapada durante três séculos por uma camada de tinta preta, acrescentada posteriormente. O restauro permitiu também desvendar a estreita relação com o retrato original de Lisa — as dimensões e contorno da figura feminina do Prado são exatamente iguais às do Louvre, o que significa que o pintor da versão madrilena usou, muito provavelmente, um desenho feito por Leonardo da Vinci como ponto de partida para o seu próprio trabalho.

Um estudo técnico demonstrou ainda que a obra madrilena foi feita paralela e simultaneamente à parisiense, pois reflete as alterações e retificações feitas pelo seu autor. O autor da Mona Lisa de Madrid seria, assim, um pupilo de Leonardo, que teria trabalhado em estreia cooperação com o seu mestre, o que não era invulgar. Os investigadores acreditam que é provável que o artista florentino tenha visto nesta encomenda uma oportunidade de ensinar algumas técnicas aos seus alunos. Contudo, segundo o Guia do Prado, “o estilo desenhado da obra madrilena tem menos do célebre sfumato de da Vinci e mais do de Francesco Melzi (c. 1493-1572/73) ou Andrea Salai (1480-1540), dois dos seus discípulos”.

A chamada "Mona Lisa" do Prado terá sido executada por um dos discípulos de Leonardo da Vinci, Francesco Melzi ou Andrea Salai, a partir de um desenho do mestre

AFP/Getty Images

Já o lado esquerdo da pintura reproduz mais fielmente o quadro do Louvre do que o lado direito, numa combinação de “imitação precisa e desvio surpreendente dor original que sugere uma experiência na perspetiva”, escreveu Frank Zöllner. “Trata-se, portanto, de uma obra cuidada, feita com materiais nobres — entre outros, nogueira, lápis-lazúli e laca vermelha —; de tal modo que não se pode considerar uma simples cópia”, concluiu o guia do museu de Madrid.

Leonardo abriu um novo capítulo do Renascimento. A Mona Lisa encarna isso

Mas o que é que a Mona Lisa tem que as outras pinturas do mesmo período não têm?

“Vasari, o primeiro historiador de arte, escreveu em As Vidas que Leonardo foi o primeiro pintor daquilo a que ele chamava a ‘maneira moderna’. Foi ele que abriu um novo capítulo do Renascimento e, para Vasari, a pintura que encarna isso é a Mona Lisa”, começou por dizer  ao Observador Vincent Delieuvin, que está a preparar uma grande exposição sobre Leonardo da Vinci juntamente com Louis Frank, do departamento de gravuras e desenhos do Louvre. “Leonardo queria que os seus quadros fossem mais do que um espelho das formas externas da natureza: ele estava à procura da vida dentro dela para que a pudesse pintar. O sfumato dá aos seus quadros esta vibração da vida, que é tão especial e que tanto nos fascina. A técnica pictórica do mestre está nesta pintura [na Mona Lisa], tal como está no São João Baptista e na Santa Ana, que são verdadeiramente magníficos. Ninguém pintou assim, antes ou depois dele.”

Frank Zöllner, em conversa com o Observador, considerou que “o quadro é muito especial” mas que, tal como apontou nos seus livros, em termos formais, não é muito diferente dos retratos pintados no final do século XV em Florença. Nestes, as modelos surgiam quase sempre com o busto voltado cerca de dois terços para o espectador e entre duas colunas, que faziam a transição para a paisagem de fundo. Esta “fórmula de retrato tem origem nos protótipos holandeses” e conhecem-se vários exemplos, como as pinturas executadas pelo florentino Lorenzo di Credi. A obra de Leonardo é, contudo, “muito maior do que estes protótipos”, apontou Zöllner. Além disso, a figura feminina encontra-se muito mais próxima do bordo anterior do quadro e muito mais perto do observador, criando uma intensidade e efeito pictórico maiores.

“O mistério surge com o tempo, aparece quando as pessoas adoram uma pintura e escrevem sobre ela. E o mistério também tem a ver com a técnica de 'sfumato' de Leonardo. As suas imagens desfocadas instigam a nossa imaginação. Produzem uma aura.”
Frank Zöllner, especialista na obra de Leonardo da Vinci

“Ele também remete para as imagens domésticas da Madonna” afirmou também o investigador alemão, explicando que o “significado deste paralelismo [formal] é o de que uma jovem mulher devia ser virtuosa como a Madonna”. Isto é evidente na posição das mãos (colocadas uma sobre a outra), um sinal de virtude e de boas maneiras, e no seu sorriso, que “correspondia a um lugar comum da graça feminina, numa época em que a serenidade de traços e a decência do sorriso eram consideradas um reflexo da beleza e portanto da virtude feminina”, apontou o mesmo especialista no volume de pintura da Taschen.

Naquela tempo, o sorriso de Mona Lisa não era muito diferente do das madonas da pintura renascentista, incluindo as de Leonardo. O mistério só apareceu depois. “O mistério surge com o tempo, aparece quando as pessoas adoram uma pintura e escrevem sobre ela. E o mistério também tem a ver com a técnica de sfumato de Leonardo”, explicou Frank Zöllner ao Observador. “As suas imagens desfocadas instigam a nossa imaginação. Produzem uma aura e, consequentemente, um mistério. Mas muito disso está nos olhos do espectador.”

Também Vincent Delieuvin apontou que a ideia de que a figura feminina esconde algum segredo é “puramente literária”. “Até ao século XIX, os connoisseurs eram fascinados pela técnica pictórica de Leonardo. Durante esse século, escritores como Théophile Gautier ou Walter Pater viram mais qualquer coisa na Mona Lisa: um mistério, um segredo escondido. Essa é uma abordagem puramente literária, mas ainda influencia a forma como o público olha para a pintura nos dias de hoje.” No entanto, é difícil ignorar que Leonardo da Vinci escolheu para a Gioconda “esta expressão tão subtil, tão ambígua, tão humana: o sorriso”.

No que diz respeito ao fundo, pouco usual para a altura, este pode ser encontrada noutras pinturas de Leonardo, como a Madona do Fuso e a Virgem dos Rochedos. Alguns investigadores consideram que este tipo de paisagem rochosa reflete os estudos geológicos do artista florentino. “Leonardo estudou a natureza, mas não apenas a natureza mas também como a natureza trabalha. Por exemplo, como as montanhas se tornaram montanhas ou como se desgastaram ao longo de milhões de anos. Esta pode ser a ideia atrás desta paisagem sugestiva”, avançou Frank Zöllner, explicando que, no caso da Virgem dos Rochedos, o fundo está relacionado com a iconografia franciscana presente no quadro. “Os patronos eram franciscanos. São Francisco recebeu a sua stigmata numa paisagem de rochas que foram divididas por uma erosão ou por um tremor de terra. Nesse preciso instante, ele recebeu as feridas na pele como as rochas.”

“Leonardo começou a pintura com a ambição de fazer um retrato de uma senhora florentina. Mas, à medida que foi despendendo 15 anos da sua vida com esta pintura, esta tornou-se numa outra coisa, numa outra coisa além de um simples retrato de uma mulher. Adquiriu um sentido mais simbólico.” 
Vincent Delieuvin, curador do Museu do Louvre

Entre as várias interpretações da obra, a mais popular foi avançada por Donald Strong no início dos anos 80. Strong acreditava que a Mona Lisa era uma representação do triunfo simbólico da Virtude sobre o Tempo. “É uma boa teoria”, admitiu Zöllner, que acredita que a “Mona Lisa começou como um retrato ‘normal’ que mais tarde se transformou em qualquer coisa semelhante a um campo exclusivo ou de experimentação para Leonardo enquanto pintor. Mas não temos certezas. Apenas sabemos que a Mona Lisa começou como um retrato da virtuosa jovem mulher de um mercador rico”.

Questionado pelo Observador sobre a interpretação mais plausível do quadro, Vincent Delieuvin começou também por referir que “Leonardo começou a pintura com a ambição de fazer um retrato de uma senhora florentina. Mas, à medida que foi despendendo 15 anos da sua vida com esta pintura, esta tornou-se numa outra coisa, numa outra coisa além de um simples retrato de uma mulher. Adquiriu um sentido mais simbólico”. Apesar disso, Delieuvin acredita que Leonardo deixou a “interpretação da pintura em aberto” e “essa é uma das razões pelas quais é tão fascinante”. “A interpretação muitas vezes diz mais sobre a pessoa que a fez do que sobre a pintura em si ou sobre o que o pintor realmente quis expressar”, acrescentou.

A Madona do Fuso, aqui na versão norte-americana pertencente a um colecionador privado, é uma das pinturas de Leonardo da Vinci onde é possível encontrar uma paisagem rochosa. A ponte de pedra (à esquerda) é também semelhante à da Mona Lisa

O roubo que tornou Lisa Gherardini famosa

O que é certo é que as qualidades formais ou a beleza da obra de Leonardo da Vinci não chegam para explicar a sua popularidade, que se deve, em grande medida, ao seu súbito desaparecimento no verão de 1911. Em agosto desse ano, o roubo da Mona Lisa atraiu grande atenção mediática, fazendo manchetes nos jornais de Paris e transformando a obra de arte na mais famosa do mundo. Pela primeira vez, o Museu do Louvre teve filas à porta — os parisienses queriam ver a parede onde o retrato de Lisa Gherardini tinha estado pendurado. A cara da jovem mulher florentina começou a ser reproduzida em postais e a ser usada em anúncios, para vender cigarros ou corpetes. Nunca ninguém tinha visto nada assim.

A história do roubo da Mona Lisa começa na manhã de 22 de agosto, uma terça-feira. Nesse dia, o pintor Louis Béroud deslocou-se até à Rue de Rivoli, onde fica o Louvre, para continuar o seu esboço da pintura de Leonardo. Contudo, ao entrar no Salon Carré, apercebeu-se de que o quadro não estava pendurado no sítio do costume. Questionou os funcionários sobre o seu paradeiro, mas ninguém parecia saber ao certo o que lhe tinha acontecido. Por volta das 11 da manhã, o alerta foi dado: o retrato de Lisa Gherardini tinha desaparecido. Numa escada de serviço, foi encontrado o vidro e a moldura que, dois anos antes, tinha sido oferecida pela Condessa de Béarn — parecia quase certo que a Gioconda tinha sido roubada. O diário parisiense Petit Parisien noticiou, em tom de gozo: “Ainda temos a moldura”.

A única pista para o que tinha acontecido foi dada por um canalizador, Sauvet. Na manhã anterior, ao entrar no museu, Sauvet tinha encontrado um homem que estava a ter dificuldades em abrir uma porta porque a maçaneta tinha desaparecido. O canalizador não o conhecia, mas calculou que fosse um dos empregados de manutenção porque estava vestido com o mesmo uniforme — uma bata branca. Ajudou-o a abrir a porta e continuou com o seu trabalho. Mal sabia que tinha acabado de abrir a porta ou ladrão da Mona Lisa.

O Salon Carré depois do roubo da "Mona Lisa" a 21 de agosto 1911. Centenas de pessoas dirigiam-se ao museu para ver o espaço vazio deixado pelo quadro (à direita, em baixo)

A polícia fez o canalizador olhar para dezenas de fotografias de trabalhadores e ex-trabalhadores do Louvre, mas este não conseguiu identificar o homem que tinha visto na segunda-feira, o dia em que o museu fechava. As autoridades encontraram uma impressão digital na parede do Salon Carré onde o quadro tinha estado pendurado, mas não foi possível identificar a quem pertencia. A investigação chegou inevitavelmente a um beco sem saída.

As medidas de segurança do Louvre na década de 1910 eram completamente diferentes de hoje. Durante a noite, havia apenas um ex-militar que fazia a ronda e, naquela segunda-feira de agosto, estavam apenas alguns empregados, entretidos com as limpezas, no interior do museu. A Mona Lisa nem sequer estava presa à parede — nenhum dos quadros do Louvre estava. Nunca ninguém acreditou que alguém a tentasse roubar, e essa foi exatamente por isso que ela desapareceu. Por altura do incidente, um curador admitiu ao The New York Times que não conseguia compreender porque é que alguém haveria de querer levar a pintura. “Considero que o quadro não tem qualquer valor na mão de um privado”, admitiu o Monsieur Bénedite ao jornal norte-americano, uma das muitas publicações internacionais que noticiou o roubo.

O Louvre fechou portas durante uma semana. Quando reabriu, a 29 de agosto de 1911, formaram-se filas à entrada. Foi a primeira vez que isso aconteceu. Entre as várias centenas de pessoas que se deslocaram até ao museu para olhar para a parede vazia do Salon Carré, encontravam-se os escritores checos Max Brod e Franz Kafka. A Mona Lisa era mais popular do que nunca. Até se fizeram canções sobre ela. Uma destas músicas dizia, segundo um artigo do Finantial Times: “Não podia ser roubada, estavam sempre a guardá-la, exceto às segundas-feiras”.

Enquanto a sala do museu se enchia, a polícia francesa investigava. As suspeitas acabaram por recair sobre um belga que, pouco tempo antes, tinha aparecido na redação do Le Journal para anunciar que tinha roubado várias estátuas do Louvre. Chamava-se Honoré Joseph Géry e era amigo do poeta modernista Guillaume Apollinaire, a quem tinha oferecido dois dos objetos furtados. Este tinha-os levado para o seu apartamento em Montmartre, que dividia com o pintor Pablo Picasso, que usou as estátuas roubadas como modelo para Les Demoiselles d’Avignon. Quando souberam que Géry estava na mira das autoridades, os dois artistas entraram em pânico. Fizeram planos de deitar as obras ao rio Sena, mas perderam a coragem.

Vicenzo Peruggia foi detido em novembro de 1913, enquanto passeava pelas ruas de Florença. A Mona Lisa passou dois anos em cima da sua mesa da cozinha, em Paris, até que decidiu restituí-la ao seu país de origem, Itália

Foi uma questão de tempo até a polícia chegar até eles. A 7 de setembro, pouco mais de um mês depois de a Mona Lisa ter desaparecido, Apollinaire foi detido e Picasso chamado a depor. Ambos choraram no interrogatório. Em tribunal, negaram qualquer envolvimento e acabaram por ser ilibados. Guillaume Apollinaire foi o único suspeito a ser detido durante as investigações que, à medida que o tempo ia passando, pareciam cada vez mais condenadas ao fracasso. Em dezembro de 1912, ainda sem qualquer resultado, o Louvre decidiu preencher o espaço vazio com um retrato de Rafael.

A localização da Mona Lisa só foi descoberta um ano depois, quando um homem a tentou vender em Florença. Vicenzo Peruggia, um pintor e vidraceiro de 32 anos, foi detido em novembro de 1913, quando passeava pela ruas da cidade depois de ter feito negócio com um antiquário florentino. Com o quadro finalmente a salvo, foi finalmente possível reconstituir a história do seu roubo: na noite de 20 para 21 de agosto, Peruggia, que tinha trabalhado no museu e feito o vidro para o retrato de Lisa Gherardini, entrou no Louvre e passou a noite escondido num armário. Quando o segurança que guardava as salas saiu, pegou na Mona Lisa, retirou a moldura, escondeu-a dentro da sua bata de funcionário e apressou-se a sair das instalações. Pelo caminho, esbarrou com uma porta trancada, que lhe foi aberta pelo canalizador Sauvet. Sem ter encontrado outras dificuldades, chegou à rua pelas 8h30.

A Mona Lisa passou dois anos em cima da cozinha de Peruggia (que vivia num apartamento com apenas uma divisão no número 5 da Rue de l’Hôpital Saint-Louis, num bairro que é ainda hoje habitado sobretudo por imigrantes), até que este se decidiu levá-la para Florença. O curioso é que o italiano chegou a ser interrogado em Paris pela polícia, que tinha as suas impressões digitais porque Peruggia tinha cadastro (tinha cometido alguns pequenos crimes, onde se incluía um arrufo com uma prostituta). Só que o detetive responsável pelo caso, Alphonse Bertillon, catalogou apenas os dedos da mão direita dos suspeitos. A impressão deixada no Louvre pelo vidraceiro era da mão esquerda.

O homem que roubou a Mona Lisa começou a ser julgado a 4 de junho de 1914. Em tribunal, chegou-se à conclusão que teria sido o orgulho ferido do imigrante italiano que teria motivado o crime. Peruggia queria devolver Lisa Gherardini ao seu país, Itália. A ideia ter-lhe-ia surgido depois de ver uma imagem das tropas de Napoleão a transportarem peças de arte de Itália para França. A Mona Lisa (que curiosamente foi levada para o território francês pelo mão do seu pintor) teria sido escolhida simplesmente pelo seu tamanho (77 cm de altura por 53 cm de largura), mas Peruggia teria acabado por se apaixonar por ela. Um psicólogo apontado pelo tribunal considerou-o “deficiente mental”.

O vidraceiro foi condenado a um ano e 15 dias de prisão. Se tivesse sido julgado em França, provavelmente a pena teria sido maior. Algumas semanas depois, a 29 de junho, acabou por ser reduzida para sete meses e nove dias e Peruggia foi libertado pelo tempo cumprido. Tudo isto passou, no entanto, despercebido. Por altura do julgamento do roubo mais fantástico da História, era outra a história que enchia os jornais — a do assassinato do arquiduque Franz Ferdinand, em Sarajevo, e do início da Primeira Guerra Mundial. “O roubo e o regresso da Mona Lisa foi uma das últimas histórias felizes da Europa”, apontou Simon Kuper, num artigo publicado no Financial Times em 2011.

Vicenzo Peruggia serviu no exército italiano durante a guerra, regressando depois a França, onde abriu uma loja de pintura numa vila na zona de Haute-Savoie, nos Alpes. Morreu em 1925, aos 44 anos. Ninguém noticiou a sua morte. O seu obituário só apareceu, por engano, 20 anos depois, quando, em 1947, morreu um homem com o mesmo nome.

O regresso glorioso da "Mona Lisa" ao Museu do Louvre, depois de ter feito uma digressão por Itália. O quadro mais famoso do mundo só saiu de Paris em outras duas ocasiões

Getty Images

Antes de regressar a Paris, a Mona Lisa fez uma digressão por Itália. Depois de 1914, só voltou a sair de França em duas ocasiões — quando viajou até aos Estados Unidos da América, em 1963, e à Rússia e ao Japão, em 1974. Atualmente, ocupa sozinha uma parede da Salle des États, protegida por um vidro à prova de bala e iluminada por uma luz especial. É o quadro mais visitado do museu. Apesar de não existirem números concretos, o Louvre estima que 70% ou 75% dos visitantes vejam o retrato de Lisa Gherardini del Giocondo. Isto corresponde a cerca de 7,14 milhões de pessoas por ano, segundo números disponibilizados ao Observador pelo museu parisiense. Em 2018, o Louvre recebeu 10,2 milhões de visitas.

Donald Sassoon, autor de Becoming Mona Lisa, acredita que não existem razões para isso. O efeito provocado pelos seus olhos, que parecem perseguir quem olha para ela, “pode ser obtido com qualquer quadro”, escreveu Sassoon, salientando que o retrato se transformou “antropomorficamente” numa “pessoa, numa celebridade”. Esse foi, como apontou Simon Kuper no Financial Times, o grande feito de Vizenzo Peruggia. Tivesse o vidraceiro escolhido uma outra pintura e talvez esta história fosse diferente.

Pinturas de Leonardo da Vinci e outros: Wikimedia Commons; Fotografia do Salon Carré: Arquivo de Paris; Restantes imagens: Wikimedia Commons, Getty Imagens, Pascal Le Segretain/Getty Images e Javier Soriano/AFP/Getty Images

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