É na Rua do Campo Alegre, num antigo stand de automóveis, que a partir do dia 5 de abril abre ao público o primeiro Museu do Holocausto na Península Ibérica. Criado pela Comunidade Judaica no Porto, composta por mais de 500 membros oriundos de 30 países diferentes, o museu surge depois de, em 2019, Portugal integrar a Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, um fórum que pretende combater o antissemitismo, prevenir a intolerância e evitar novos genocídios.
Resultado de parcerias com outros museus na Europa, na América e na Ásia e composto por documentação exclusiva que integra o arquivo da Comunidade Judaica do Porto, o espaço divide-se em várias salas e retrata a vida judaica antes do Holocausto, a expansão nazi na Europa, os guetos, os refugiados, os campos de concentração, de trabalho e de extermínio, as marchas da morte, a libertação e, por fim, a fundação do Estado de Israel.
“Estamos a falar de documentação que estava guardada nos nossos arquivos, da qual fizemos cópias em 2013 para o museu de Washington, mas que mostramos agora pela primeira vez ao público”, explica Hugo Vaz, curador do espaço que inclui informações valiosas como os mais de 400 registos de refugiados do Holocausto de passaram pelo Porto ou as duas torás – livros sagrados para os judeus – deixadas por famílias de refugiados na sinagoga da cidade.
“Mais que um museu de objetos ou de coleção, queremos informar, educar e ser um ponto de partida para outras atividades. Falámos de forma ténue de todos os temas relacionados com o Holocausto, mas todos eles podem ser explorados e investigados. É um espaço sensorial, que apela aos sentidos, onde a ideia não é que as pessoas sintam o que se sentiu na época, porque isso é impossível, mas que possam imaginar o que seria a vida naquela altura.”
A mensagem parece ser simples: não esquecer o que aconteceu e evitar que se repita. “Porque devemos dar tanta importância ao Holocausto? A Alemanha era uma nação civilizada, numa Europa evoluída, e mesmo assim conseguiu fazer uma coisa destas. Isto pode acontecer a qualquer momento e em qualquer lado, contra judeus ou contra outros grupos. É preciso não esquecer nada disto para que não se volte a repetir.”
“Pessoas iguais a nós que passaram a ser um número a abater”
O trajeto do museu começa numa sala verdejante, cheia de folhas artificiais, que representa a vida antes do Holocausto e o florescer da religião judaica na Europa. “É importante focarmo-nos no período que antecede à tragédia para percebermos que os seis milhões de judeus que morreram tinham famílias, vontades e sonhos iguais ao nossos. Eram pessoas perfeitamente normais, integradas uma sociedade, mas de um momento para o outro deixam de ser humanas e passam a ser números que é necessário abater.”
Uma das paredes transmite excertos de “A Luz de Judá”, o filme lançado em 2020, realizado por Luís Ismael, que retrata a presença judaica no Porto, já outra é ocupada por uma fotografia luminosa da entrada de Auschwitz – Birkenau, o famoso campo de concentração, de trabalho e de extermínio, no qual morreram mais de um milhão de pessoas. No teto está suspenso um arco em ferro onde se pode ler em alemão: “o trabalho liberta”, o chão está coberto por um autocolante que faz lembrar um caminho de ferro e na mesma sala pode ainda ver-se uma instalação artística composta um Menorá – um candelabro com nove braços, acendido progressivamente durante a Chanuká, uma festa judaica celebrada em dezembro – preso por uma arame farpado, símbolo maior do Holocausto.
Logo em frente, encontramos a zona mais realista do museu: as barracas. Com beliches feitos de madeira e sacos de sarapilheira, esta espécie de dormitório é acompanhada por fotografias reais nas paredes e listas com o número de vítimas registadas em apenas dois anos nos seis campos de extermínio localizados na atual Polónia.
Uns passos depois, chegamos à sala que “convida ao silêncio e à reflexão”, sendo também uma homenagem à memória dos judeus que morreram vítimas do nazismo. 32 mil nomes, oriundo de 15 países diferentes, cobrem três paredes e no centro está uma peça em pedra onde se pode ler: “Remember”. “Não existe uma ordem alfabética, todos os nomes têm o mesmo tamanho e tipo de letra. Todos são iguais”, realça o curador, Hugo Vaz.
Os que trabalhavam, os que passaram pelo Porto e os que morreram
Depois de passarmos pelo dois rolos torá, também eles presos por arame farpado em duas vitrinas, entramos na sala da narrativa histórica. O lado esquerdo está repleto de textos, fotografias e vídeos que contam de forma cronológica as várias etapas do Holocausto, do início do nazismo e da expulsão dos judeus da vida pública, passando pela noite em que grande parte das sinagogas foram destruídas, à invasão da união soviética, marcada pelos fuzilamentos em massa e pela industrialização da morte no campos de concentração.
Já do lado direito é possível ver mais de 400 fichas individuais de polacos, belgas, checoslovacos, alemães, holandeses, franceses, austríacos, romenos, húngaros, argentinos ou iranianos que passaram pelo Porto e receberam o apoio da cidade, entre 1940 e 1941. Nome, profissão, nacionalidade, destino e capacidade financeira são algumas informações registadas pela Comissão de Assistência aos Judeus Refugiados legíveis em inglês, francês e alemão.
“À partida, estas pessoas sobreviveram, mas não sabemos se depois de Portugal chegaram ao seu destino e o que lhes aconteceu”, sublinha o curador Hugo Vaz, acrescentando que grande parte dos refugiados aqui representados, entraram no país graças a vistos emitidos por Aristides de Sousa Mendes. O cônsul expulso da diplomacia é um dos quatro portugueses que integram o painel que homenageia os “justos entre as nações”, os não judeus que salvaram judeus durante a II Guerra Mundial.
“O meu preferido é o padre Joaquim Carreira que abriu um colégio de seminaristas em Roma para esconder judeus e morreria caso fosse apanhado pelas autoridades italianas, fascistas ou nazis”, recorda Hugo Vaz, fazendo referência também a Joseph Brito Mendes, o luso descente que adotou uma criança judia. Ao todo são mais de 27 mil homens e mulheres que ajudaram a mitigar os efeitos deixados pelo Holocausto e que também são lembrados nesta mostra.
No final da II Guerra Mundial, milhões de judeus dispersos pelos quatro cantos do mundo sentiam que só um lar próprio, com uma maioria judia, poderia evitar a repetição do Holocausto. Em 1948, foi proclamada a independência de Israel e na última parede informativa do museu é bem possível comparar imagens antigas e atuais do país fundado pelos sobreviventes da tragédia que marcou o século XX.
A viagem proposta pelo museu termina numa sala iluminada e polivalente, capaz de receber exposições temporárias, cerimónias da comunidade, sessões de cinema ou de formação. “Foi desenhada para ser o centro nevrálgico do museu, é o espaço mais importante, é nela que vamos construir o futuro”, destaca o curador, Hugo Vaz.
O Museu do Holocausto no Porto, na Rua do Campo Alegre, 790, abre portas ao público a 5 de abril, de forma gratuita até ao fim do mês de maio. Poderá visitá-lo de segunda a sexta feira, entre as 14h30 e as 17h30.