“Todos, todos, todos” e de todos os ângulos possíveis. A mensagem do Papa Francisco, na passagem por Lisboa para a Jornada Mundial da Juventude, foi aproveitada por todos os partidos políticos (exceto um único, o Bloco de Esquerda). Do PCP ao Chega, do “progresso e justiça social” à “vida” e à “transparência”, não houve interpretação dos vários líderes partidários que não puxasse o chefe da Igreja Católica à sua própria linha ou ação política. Francisco, que já disse não ser marxista mas não se ofende com a comparação, deixou no país uma crítica clara ao modelo socieconómico e também às tentações populistas, pedindo “uma boa política”. Mas cada um fez fé no que maior comunhão poderia trazer.
A começar no primeiro-ministro socialista e a acabar num artigo de opinião do ex-líder parlamentar comunista João Oliveira publicado esta quarta-feira, a boleia de um evento com a dimensão da JMJ e o impacto das intervenções do Papa não foi desperdiçada. O PCP já tinha feito uma comunicação oficial a destacar a presença do líder Paulo Raimundo na receção institucional ao Papa Francisco, no Centro Cultural de Belém, logo no dia de chegada deste a Portugal, sublinhando o significado do discurso do Chefe da Igreja Católica.
“Na condenação das injustiças, das desigualdades, da guerra, dos problemas ambientais, das dificuldades e da precariedade que muitos jovens enfrentam, nomeadamente aqui em Portugal e na Europa e que não estarão desligadas, nem o poderão estar, das opções e do caminho traçado pela União Europeia. Este retrato tem causas e responsáveis”, anotava o PCP, apontando o dedo ao Governo.
António Costa, no entanto, esteve longe de entender as palavras de Francisco nessa manhã da mesma maneira e não encaixou a crítica que o PCP detetou. Nem mesmo quando o Papa falou no “momento tempestuoso” e na “falta de rotas corajosas de paz”, ou ainda quando enumerou os muito fatores que “desanimam” os mais jovens, “como a falta de trabalho, os ritmos frenéticos em que se veem imersos, o aumento do custo de vida, a dificuldade de encontrar uma casa e, ainda mais preocupante, o medo de constituir família e trazer filhos ao mundo.”
O primeiro-ministro também não relevou as referências de Francisco à questão da eutanásia (cuja legalização avançou em Portugal com a maioria socialista), referindo-se ao “fácil acesso à morte, solução cómoda que parece doce, mas na realidade é mais amarga que as águas do mar” — e que a Igreja condena. Costa preferiu ignorar esse ponto concreto e destacar outros.
Costa acredita na bênção à sua governação e PCP neste Papa
Em tudo o que ouviu por estes dias, o primeiro-ministro que se define como “não crente” destacou antes a sintonia nas “causas globais da paz, a necessidade de reconciliação com a natureza e o combate às desigualdades”. “Não sou crente e não tenho a menor das dúvidas que a mensagem se dirige a todos e todos refletimos e somos chamados a responder”, afirmou depois de ouvir a primeira intervenção do Papa.
Mais tarde, já na despedida, foi mais longe, e viu mesmo “uma grande consonância entre a trajetória do país e a mensagem fundamental do Papa Francisco”. “Desde logo no reconhecimento das diferenças. Quando fala de todos, cada um fará a sua leitura, eu senti-me bastante confortado pela evolução que a legislação nacional tem feito nas diferenças e no respeito pela forma de ser de cada um. Quando diz que tem de de olhar para os mais desfavorecidos, olho para a trajetória do aumento significativo, mesmo nos momentos mais difíceis, do salário mínimo nacional.”
No insuspeito PCP, João Oliveira louvou no Público a abordagem do chefe da Igreja Católica e a sua particular relevância “pelo sentido que aponta em questões como a paz e os caminhos de solução dos conflitos e guerras, o contraste entre a aposta armamentista e a falta de resposta e combate às desigualdades, o avolumar das injustiças e a sua agudização a partir da exploração e da precariedade da vida dos jovens, as migrações, a proteção do ambiente e a sua relação com a dimensão social, o estímulo à iniciativa dos jovens na rejeição do medo e na superação de obstáculos e dificuldades com que se confrontam.”
O capítulo da guerra na Ucrânia, que se esperava incontornável nesta JMJ, é sensível para o PCP que tem resistido a condenar a invasão russa. O mesmo João Oliveira, em fevereiro de 2022, mostrou isso mesmo num debate parlamentar sobre o tema, optando antes por condenar “todo o caminho que trouxe até aqui e todas as ações que contribuem para o mesmo objetivo. A escalada de confrontação política, económica e militar não é um ato ou uma circunstância isolada”, contornou o comunista, os únicos a tomarem tal posição.
O PCP tem, assim, concentrado os ataques à ação da NATO e à “escalada armamentista”. A abordagem do Papa também acabou por ser sobretudo centrada na procura de “percursos de paz” e na crítica ao investimento de “recursos em armas e não no futuro dos filhos” — ainda que tenha mostrado solidariedade muito concreta, por estes dias, com a “dor da Ucrânia”.
Na avaliação global que faz no artigo que escreve, João Oliveira vai mais longe e diz mesmo esperar que a mensagem deixada por Francisco em Portugal possa “juntar crentes e não-crentes num caminho de transformação social que aponte o sentido de resolução de alguns dos mais graves problemas com que a humanidade se confronta”. “Haja capacidade para garantir que é esse o principal impacto que a JMJ tem no país e nas novas gerações”, remata.
O marxismo nega a existência de um ser sobrenatural e defende a abolição da religião, “o ópio do povo” que ameniza o sofrimento de forma ilusória. Mas a tolerância comunista com as mensagem deste Papa tem sido manifesta e as associações de Francisco aos comunistas também não são de agora — embora o próprio já as tenha afastado por completo.
Após a exortação apostólica Evangelii Gaudium, sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual, que publicou meses depois de ter sido eleito Papa, Francisco chegou a ser confrontado com a eventual defesa do socialismo pelos ataques aos sistema capitalista e a uma “economia de exclusão de desigualdade” que ali firmou. Acabou por vir mesmo afirmar: “Não sou marxista”. “A ideologia marxista está errada. Mas na minha vida conheci muitos marxistas bons como pessoas, e por isso não me sinto ofendido“.
Nessa altura, as palavras que feriram mais foram sobre a economia que ‘mata'”. O primeiro Papa jesuíta explicou que na sua exortação “não há nada que não se encontre na doutrina social da Igreja” e que não falava “de um ponto de vista técnico” — apenas mostrou “uma fotografia do que acontece”. “Os comunistas roubaram-nos a bandeira. A bandeira dos pobres é cristã”, disse ainda na mesma entrevista ao jornal italiano Il Messaggero admitindo que os caminhos agora se cruzam.
Papa Francisco afirma que comunistas roubaram “bandeira dos pobres” à Igreja
Ouvido seletivo de PSD, Chega e IL
A intervenção mais política de Francisco foi aquela que fez no CCB, perante uma plateia onde estavam muitos dos representantes da classe política (à exceção do Bloco de Esquerda e do Livre, que escolheram não estar presentes). As reações foram naturalmente diferentes. Luís Montenegro, líder de um partido que também tem uma franja importante de eleitorado católico reconheceu o caráter político do discurso do chefe da Igreja Católica, elogiando os apelos ao “combate à pobreza, às desigualdades” e pela “construção de uma sociedade mais justa e mais fraterna”.
O líder do PSD acabou por ignorar parte da crítica violenta que Francisco fez ao modelo capitalista, tal como Rui Rocha, da Iniciativa Liberal. Depois de ouvir o Papa defender o “verdadeiro capital humano que é a educação, a saúde, o Estado social” e a exortar políticos a corrigirem “os desequilíbrios económicos dum mercado que produz riquezas, mas não as distribui, empobrecendo de recursos e de certezas os ânimos”, o presidente da Iniciativa da Liberal não entrou por estes campos e ouviu apenas uma intervenção “muito ligada” à situação que se vive em Portugal e a necessidade de existir uma “aposta na juventude, [de] dar condições a jovens para terem um futuro diferente”. Quanto ao mais, o presidente da IL falou na paz, considerando-a “uma questão permanente da Igreja Católica”, uma matéria de “bom senso”.
A atitude não foi muito deferente da de André Ventura — que sendo assumidamente católico foi o grande ausente desta JMJ. O líder do Chega ignorou o elogio que o Papa fez aos jovens católicos em Portugal, que “não andam pelas ruas a gritar sua raiva, mas a partilhar a esperança do Evangelho”. “E se, em muitos lugares, se respira hoje um clima de protesto e insatisfação, terreno fértil para populismos e conspirações, a Jornada Mundial da Juventude é ocasião para construir juntos”, apelou Francisco.
Ventura também contornaria a referência feita pelo Papa, na Universidade Católica Portuguesa, à necessidade de equilibrar planos, nomeadamente a necessidade de “colocar o drama da desertificação em paralelo com o dos refugiados; o tema das migrações juntamente com o da queda da natalidade”. “Não queremos polarizações, mas visões de conjunto”, defendeu Francisco que, nos próximos dias, vai seguir viagem para Marselha onde terá o tema das migrações em foco.
O discurso mais radical de Ventura sobre a imigração ficou na gaveta na curtíssima reação que publicou nas redes sociais à passagem do líder da Igreja Católica por Portugal. O presidente do Chega leu uma “mensagem poderosa e revigorante” nas palavras do Papa, concentrando-se apenas na “vida, a paz e a transparência”. André Ventura, católico, esteve fora durante toda a semana, em campanha eleitoral na Madeira. As suas discordâncias com o atual Papa são conhecida, tendo mesmo afirmado em 2020, numa entrevista ao Diário de Notícias e à TSF, que “este Papa tem prestado um mau serviço ao cristianismo“.
Uma mensagem poderosa e revigorante. Que os políticos não esqueçam as palavras do Papa Francisco sobre a vida, a paz e a transparência, agora que termina esta incrível JMJ em Portugal! pic.twitter.com/cIIRX7liCV
— André Ventura (@AndreCVentura) August 6, 2023
Ventura não nega as alterações climáticas — embora a resistência a este combate seja muitas vezes encontrada nos partidos com as características do Chega, da direita radical e conservador, como o Observador explicou recentemente a propósito da Lei da Restauração da Natureza — e também foi um tema focado pelo Papa em que não tocou. O mesmo não aconteceu com o PAN de Inês Sousa Real que, sem surpresa, não falou de outra coisa depois de ouvir Francisco intervir no CCB e falar das “lixeiras de plástico” nos oceanos, apelando ao combate à crise ambiental.
A deputada ouviu nas palavra do Papa uma convocatória “para o combate às alterações climáticas e para um pacto intergeracional não só na questão da proteção do ambiente mas sobre o espírito solidário entre os mais jovens os mais idosos”. Esta é “uma luta partilhada pelo PAN”, disse ainda Sousa Real citando mesmo a encíclica Laudato Si, publicada pelo Papa em 2015, sobre “o cuidado da casa comum”, o planeta. Este já era um dos Papas mais transversalmente citado por políticos e esta passagem por Portugal aprofundou a prática.