“Pronto, está decidido. ‘Isto’ não entra mais. Nem neste episódio, nem no resto da temporada”.
O realizador Manuel Pureza está sentado numa régie a vigiar uma cena importante da segunda temporada de “Pôr do Sol” — depois do sucesso da primeira temporada deste “novela cómica”, a produção vai regressar no verão. Os elementos da equipa que o rodeiam respiram de alívio. Pureza está vestido de branco, raramente se irrita e responde sempre com uma gargalhada cada vez que assiste a um take cómico. É o vigésimo dia de gravações, faz calor: insistimos, faz mesmo muito calor na Quinta do Torneiro, em Paço de Arcos. São 16h00. Até o pato de borracha amarelo no topo de um dos ecrãs de visionamento poderia suar, caso o deixassem.
As cerca de 60 pessoas que andam num vaivém, entre atores, figurantes, novas personagens, técnicos, produção e maquilhagem, parecem saber bem o que há para fazer, mesmo que a rodagem tenham arrancado de manhã cedo e já chegue à vista de um visitante o inevitável cansaço. Nem a exclusão do “isto” — que não podemos revelar, para não fazer spoiler, assumimos esse compromisso — troca as voltas. É Manuel Pureza que, num momento raro, dá a ordem sem esboçar um sorriso. Afinal, nem tudo aqui é para rir. Aliás, isto é matéria muito séria. É um sucesso televisivo que merece e quer uma continuação à altura da primeira temporada. Humor? Sim. Exigência leve como uma gargalhada? Nunca.
Enquanto se resolvem problemas técnicos de som, lá dentro está toda uma planta improvisada e desenhada para filmagens. Um pequeno quarto, com uma cama de casal, que serve de camarim para vestir e despir atores. Uma sala enorme com espelhos, cadeiras e utensílios de maquilhagem. Uma varanda, junto a um jardim francês (tal como diz o site da Quinta, ideal para casamentos), onde alguns atores descansam. “Preciso da folha de serviço para amanhã”, chuta um assistente. Há uma cronologia para seguir e mais quatro episódios extra para fazer desta vez, porque a nova temporada terá, ao todo, 20. Não fosse a descontração profissional óbvia de quem por ali anda e a ausência de dress code e apostaríamos num regime militar, dada a disciplina e organização de tudo isto.
O edifício foi construído no século XVIII e já foi casa de diplomatas e fidalgos. Nada mais adequado para uma série que retrata a famigerada família Bourbon de Linhaça, alta sociedade, cheia de problemas, do negócio das cerejas, do colar de São Cajó e de gémeas separadas. Os walkie talkies são o garante de que, apesar de já terem chegado à quarta semana de rodagem, ninguém deixa que a comédia cozinhada ali acabe em tragédia. “Esta parte está feita”, ouve-se lá de fora. Siga para bingo.
Take 2: “um upgrade” com mais personagens, mais ação e mais piada
Ou bingo ou jackpot. Foi isso que saiu na rifa a Manuel Pureza, Henrique Dias e Rui Melo, os criadores da sátira com a graça “Pôr do Sol”. Quem sabe, não se importa de recordar. Quem não conhece, convém saber: esta é a saga de uma família latifundiária do Ribatejo que vive conflitos internos que colocam a própria existência em causa. Como a mais clássica das novelas que já vimos, mas com um guião irónico, quando o sistema faz pouco de si próprio, com gosto e graça.
A primeira temporada teve muito sucesso em Portugal, quer na RTP e na RTP Play, quer nas redes sociais. Bateu audiências, criou furacões de memes. Teve direito a playlists no Spotify da banda Jesus Quisto (agrupamento musical criado a propósito do argumento) e fãs que resolveram fazer lojas online de material da série. É raro no país chegar-se a um fenómeno pop desta dimensão em tão pouco tempo. Mais raro ainda é chegar à conclusão de que uma ficção nacional, sem ser uma novela, e ainda por cima cómica, merecia uma segunda temporada.
“Nunca tinha feito uma segunda temporada. Há mais exigência, há um upgrade, o público já conhece os códigos, podemos brincar com isso. Quanto aos atores, agora é só corrigir pequenos erros. É refinar mais a comédia, mais à lupa”, confessa, em poucos minutos Manuel Pureza entre pausas, água, pipocas e armas (e mais não dizemos). Quanto a spoilers? Não há. Só um, vá: “Vamos ter um final épico”. Mais nada? Enfim.
A banda está afinada, só precisa de retoques quando o maestro assim o exige. É isso que se sente no ambiente. Está tudo alinhado, só falta o Toy aparecer a cantar. Não aconteceu. E o público? Será que andou pelas ruas a gritar por “só mais uma, só mais uma?”. Bom, disso não há dúvidas. “É inédito as pessoas terem saudades de uma ficção portuguesa como se fosse o ‘Duarte e Companhia’. As pessoas já não veem estas personagens há um ano, é como matar saudades da família”, diz-nos o realizador antes de, agora sim, voltar ao trabalho.
Enquanto a atriz Noémia Costa, que faz de Maria da Piedade (empregada dessa família de referência que são os Bourbon de Linhaça), vai direta para o camarim, o guarda roupa é essencial — “troca, troca tudo!”, diz um assistente — na zona de comes e bebes, a melhor para este tipo de acontecimentos, Diogo Amaral mete-se com Gabriela Barros, eles que formam a dupla que podemos apelidar de “protagonista”. Geram-se ali acusações de que um deles só terá visto o primeiro episódio da primeira temporada, enquanto são filmados por uma operadora de câmara, à parte, para possíveis vídeos de bastidores.
É a altura certa para puxar um dos atores para dois dedos de conversa, com a devida educação. O bom ambiente, que não acontece sempre neste tipo de produções, dizem-nos, é o destaque principal de todos os que falaram com o Observador. “Claro que queremos que corra muito melhor, mas tenho a convicção de que já está ganho. O entusiasmo é bom, as pessoas estão felizes, isto é um privilégio. Há pozinhos de perlimpimpim”, conta-nos Diogo Amaral. E convenhamos: se há perlimpimpim, isto está ganho.
“Não dá para te encostares” ao sucesso
Com mais ou menos pozinhos, Manuel Pureza “quase” não tem de dizer nada nesta segunda ronda de “Pôr do Sol”. Os tempos, as punchlines, a coordenação, está tudo na ordem porque já toda a gente conhece a música, estão todos afinados pelo mesmo tom. Ainda assim, há que manter o nível. “O desafio aqui é carregar a piada, seguir o guião. É preciso ter sempre algo que nos desafia, porque não nos podemos encostar, não podemos confiar que vai tudo correr bem só porque foi isso que aconteceu no ano passado. Mas é preciso admitir: agora há mais confiança, está tudo aprimorado”, revela o ator.
Deixamos Diogo Amaral acabar o repasto e viramo-nos para Gabriela Barros, de sorriso na cara, cansada mas pronta para, assim que acabar a cena do dia, seguir viagem para o teatro. A atriz principal quer “corresponder às expetativas” do público, sendo certo que a pressão está bem no alto mas, mais uma vez, o ambiente, sempre o ambiente, ajuda muito. Confessa que teve colegas a dar-lhe os parabéns há um ano, e que outros lhe disseram até que ficaram com pena de não entrarem — “As pessoas já sabem a fórmula, o guião do Henrique Dias é um upgrade comparativamente à primeira temporada. Tenho aqui grandes amigos, ficava a fazer dez temporadas, seria como um bombom!”, diz. Se voltar é bom e se a responsabilidade não retira o gozo, qual é mesmo o desafio desta vez? “Já sabemos as regras do jogo, o difícil é não nos rirmos enquanto estamos a trabalhar. Há cenas muito complicadas nesse sentido”, garante.
O relógio já aponta para o final de tarde. Ouve-se um glorioso “está feito” antes de um último plano. Palmas, selfies, amanhã há mais. O ambiente de que tanto falam é fácil de entender. Trabalhar num sucesso de audiências em Portugal, que goza com o eterno sucesso de audiências em Portugal, só pode funcionar como terapia para toda a gente, gente que constantemente procura garantir um sucesso de audiências em Portugal. Sem ser possível revelar os detalhes que gostaríamos, o público terá mais personagens, mais núcleos e mais “problemas graves” da família Bourbon de Linhaça. É esperar pela segunda dose no verão.