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Os amigos Mark O'Brien e Nathan Jones no pub "Princess of Wales" em Greenwich
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Os amigos Mark O'Brien e Nathan Jones no pub "Princess of Wales" em Greenwich

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Os amigos Mark O'Brien e Nathan Jones no pub "Princess of Wales" em Greenwich

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

"Não estamos só a fazer o luto por uma pessoa. É um luto pela História"

Como é que os britânicos passam o primeiro domingo sem Isabel II? Para três amigos só havia um plano possível: ir à missa e depois beber um copo no pub, em memória da mulher que encarnou o século XX.

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Enviados especiais do Observador ao Reino Unido, Cátia Bruno, João Porfírio e Luís Soares.

Nathan Jones passou os últimos dias “dormente”. Na quinta-feira passada ia no comboio, a fazer o trajeto habitual entre a escola onde dá aulas, no centro de Londres, e a sua casa, em Greenwich, e não conseguia evitar não saber mais notícias sobre o estado de saúde da Rainha Isabel II. Não é surpreendente se tivermos em conta que Nathan, de 32 anos, é um professor de História que se assume como obcecado pela Família Real.

Foi então que pegou no telemóvel — cuja imagem de fundo é do primeiro-ministro Winston Churchill — e pôs a emissão da BBC a dar em direto. Ao seu lado seguia uma mulher, enfermeira, que lhe perguntou se podia assistir com ele. À sua frente seguia sentado um homem mais velho, que lhe fez o mesmo pedido. De repente, estavam os três colados ao ecrã do seu telemóvel, a assistir à emissão conduzida pelo pivô Huw Edwards, que já usava uma gravata preta. Pouco depois, o jornalista da BBC confirmava oficialmente a notícia da morte da Rainha. “De repente, aconteceu. A senhora dá-me um abraço e o senhor aperta-me a mão. No meio do comboio. Isto é Londres, isto não acontece aqui!”

Nathan recorda aquele momento ao Observador três dias depois, enquanto contempla o copo de vinho tinto que tem à frente e a edição do Sunday Times, com um retrato azulado de grande dimensão da Rainha. Estamos no pub “Princess of Wales” (Princesa de Gales), em Blackheath, na zona de Greenwich, famosa pelo Observatório Real e pelo meridiano a que empresta o nome. As paredes estão preenchidas com retratos das várias mulheres que tiveram o título de princesas de Gales antes de Kate Middleton o ter recebido esta quinta-feira — Catarina de Aragão, Alexandra da Dinamarca, a princesa Diana. As mesas de madeira escura e grossa e o balcão corrido imponente tentam assinalar que aqui se bebe desde o século XIX.

Na véspera, este professor de História decidiu que tinha de fazer algo para assinalar a morte de Isabel II este domingo. Foi então que convidou os amigos Mark e Tom, com quem estudou em Oxford há mais de dez anos, para irem ter com ele no dia seguinte. O plano? Ir à missa na Igreja de Todos os Santos, um edifício com uma imponente torre de pedra, na ponta do parque de Greenwich, rodeado de verde. E, depois, ir beber um copo a este pub em homenagem a Isabel II.

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Nathan não conheceu a Rainha — mas encontrou o príncipe Philip a embrulhar prendas de Natal

“Mesmo que vocês não estivessem aqui, não íamos falar de outra coisa se não dela”, garante o amigo Mark O’Brien, que trabalha como produtor para a televisão do Parlamento e teve de passar por Westminster de manhã — razão pela qual não conseguiu chegar a tempo da missa e veio de fato e gravata preta, que se apressou a tirar. “Sim, ela tinha 96 anos e já estávamos à espera, mas é como quando morre alguém da família, nunca estamos preparados”, diz, referindo-se à Rainha.

Nathan Jones é professor de História. Vai pedir aos alunos que escrevam um texto sobre este momento e o guardem numa "cápsula do tempo"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Nathan abana a cabeça, desconsolado: “Dizemos todos as mesmas coisas, não é? O que dizer de novo sobre ela, de quem já se disse tudo?”, lamenta-se. Tom Garton — também ele produtor televisivo de profissão — tem pouca vontade de falar, mas tenta puxar pelo amigo Nathan. “Ele é um verdadeiro fanático da Família Real, até conheceu o príncipe Philip e tudo”, atira. Nathan cora ligeiramente e acaba por contar a história, de forma resumida. Quando estudava na universidade, foi um dos organizadores de um dos bailes formais de Oxford e, por isso, pôde ir entregar um convite ao príncipe que era também patrono da Universidade. “Lembro-me que era Natal e quando entrámos no escritório ele estava a embrulhar presentes com as próprias mãos. Foi adorável.”

Tom volta então a provocar: “Eu sei que tens muito a dizer sobre o Harry e a Meghan. Conta lá o que achaste da presença deles ontem em Windsor, com o William e a Kate?” Nathan revira os olhos. “Não quero dizer nada de ofensivo num momento destes”, comenta, com uma gargalhada. “Digamos só que eu sou muito fã do príncipe William e da Kate e menos dos outros.”

A “Princesa Auto-Mecânica” adorada na II Guerra Mundial também foi criticada após a morte de Diana. “Era uma diplomata”

Quando voltar à escola, depois de terminado o período de luto nacional, Nathan já tem planos para o que irá fazer com os seus alunos, com idades entre os 11 e os 18 anos: vão todos escrever um texto sobre a Rainha Isabel II e depois guardá-lo numa “cápsula do tempo”, que será enterrada nos terrenos da escola, para que outros alunos as leiam daqui a alguns anos e percebam o impacto da notícia.

“A minha avó nasceu no dia do Jubileu de Prata do Rei Jorge V, em 1935. Toda a vida ela colecionou tudo e mais alguma coisa sobre a Família Real. E eu cresci com isto. A vida de Isabel II permeou a vida dos nossos avós, que a adoram, e por arrasto as nossas”, resume este professor de História, antes de dar mais um gole no copo de vinho tinto.

Talvez por defeito de profissão, a conversa não tarda a resvalar para um enumerar dos inúmeros momentos históricos que Isabel II presenciou. Por um lado, o seu papel na II Guerra Mundial, ainda enquanto princesa: “A postura desafiante, a ideia do stiff upper lip [expressão britânica que traduz uma ideia de estoicismo], tudo isso foi muito graças ao exemplo dela. E não nos podemos esquecer que ela era a última líder viva que usou um uniforme durante a II Guerra”, diz Nathan, referindo-se à participação de Isabel II no Serviço Auxiliar do Território, as brigadas femininas do Exército britânico à altura. Ali, Isabel não trabalhou como cozinheira ou telefonista — tirou o curso de motorista e mecânica, que lhe valeu o título de “Princesa Auto Mecânica” dado pelos jornais à altura.

Princess Elizabeth learning basic car maintenance as a Second Subaltern in the A.T.S 12th April 1945.

A princesa Isabel a mudar um pneu durante o período de recruta no Serviço Auxiliar do Território, na II Guerra Mundial

Mirrorpix via Getty Images

Mark aproveita para relembrar que, apesar da popularidade da princesa nesse período e da unanimidade que hoje em dia existe em torno da figura da Rainha, nem sempre foi assim. “Ela nos últimos anos ganhou muita popularidade graças à imagem de uma velhinha simpática, rodeada de uma família que lhe dá muitos problemas. Mas houve momentos muito duros em que a imprensa não lhe perdoou — basta lembrarmo-nos que o maior jornal do país pertence a um australiano republicano”, avisa, referindo-se ao The Sun e à figura de Rupert Murdoch, o titã dos media que é dono da Newscorp (que detém ainda o The Times no Reino Unido, o canal Fox News nos EUA e muitos outros órgãos por todo o mundo anglo-saxónico).

Como exemplo, o jovem destaca o período da década de 1990, que englobou o Annus Horribilis de 1992 e a morte da princesa Diana, em 1997. A decisão inicial de Isabel II de não se deslocar de Balmoral para ir a Londres receber o corpo da princesa foi fortemente criticada e vista como fria por muitos. “Ela recebeu muitas críticas: diziam que não mostrava emoção, que era emproada… Mas aquela reação não tinha a ver com ela não gostar da Diana, era uma questão de tentar proteger a Família, de cumprir o seu dever. Se virmos as coisas por outra perspetiva ela era precisamente uma diplomata.”

Do IRA à Torre de Grenfell, de Churchill a Truss. Com Isabel, “redunda sempre tudo na História”

Nathan interrompe para concordar e aponta mais dois momentos em que essas características se destacaram. Uma é a viagem da Rainha à Irlanda em 2011, a primeira viagem de um monarca britânico ao país desde que ele se tornou independente. “Ela falou em gaélico!”, diz, entusiasmado. “A Uachtarain agus a chairde”, disse Isabel II, o que significa “Presidente e amigos”. Foi assim que começou um discurso no castelo de Dublin onde expressou compaixão por “todos os que sofreram as consequências” do passado comum “turbulento” das duas nações e reconheceu que “há coisas que gostaríamos de ter feito de forma diferente ou de não ter feito de todo”.

No ano seguinte, em Belfast, a Rainha encontrou-se com Martin McGuinness, à altura vice-primeiro-ministro da Irlanda do Norte e antigo comandante do IRA. Ao encontrarem-se, apertaram as mãos. “O IRA matou o primo dela, o Lord Mountbattern”, aponta Nathan. “E ela mesmo assim fez aquilo. Acho que demonstra bem o quão consciente ela sempre foi do peso e da responsabilidade históricos do seu cargo.”

Queen Elizabeth II And Prince Philip, Duke Of Edinburgh Visit Northern Ireland - Day 2

O aperto de mão histórico ao antigo comandante do IRA, Martin McGuinness, em Belfast

Getty Images

O professor de História aponta ainda mais um exemplo, este mais recente. Em 2017, um incêndio num prédio de Londres, a Grenfell Tower, provocou 72 mortes e destruiu mais de 150 casas. A Rainha foi com o príncipe William a um dos centros de realojamento falar com os sobreviventes e Nathan ficou impressionado. “A certa altura ouve-se um gemido, alguém que estava muito perturbado lá atrás. Toda a gente à volta fica a olhar, mas ela continua serena a prestar toda a atenção à pessoa com quem está a conversar. Aquela resiliência emocional tem uma utilidade e é admirável.”

A mesa fica em silêncio por alguns instantes, enquanto os três amigos tentam pensar no que dizer mais sobre uma figura tão marcante. “Provavelmente não há mais ninguém no mundo que quando morrer terá uma reação tão unânime”, aponta Nathan. “Isto não tem lógica, acho que sempre pensámos que ela ia ficar cá para sempre. Mas cá estou eu a repetir o que dizemos todos.”

Tom Garton é amigo de Nathan dos tempos de Oxford. "Conta aquela vez em que conheceste o príncipe Philip", desafia-o

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

É então que Tom, que até então parecia alheado da conversa e que se tinha limitado a provocar o amigo Nathan, resolve falar a sério sobre a Rainha. Afasta o copo da sua frente e debruça-se sobre a mesa. “Como se pode ver por esta conversa, redunda sempre tudo na História. Não estamos só a fazer o luto por uma pessoa, estamos a fazer um luto pela História”, declara. Mark e Nathan abanam a cabeça em sinal de concordância. “Ela não era só uma chefe de Estado. Era ela que nos ligava a um Reino Unido muito diferente do que aquele que conhecemos hoje. Ela era História. E é muito mais fácil sentirmo-nos ligados a uma pessoa do que a um documento.”

E com estas palavras, o silêncio cai sobre esta mesa do “Princess of Wales”. Das paredes olham-nos os retratos das várias princesas de Gales, também elas parte da História. Mas nenhuma figura tão marcante como a da Rainha Isabel II, a mulher que lidou com mais de uma dezena de primeiros-ministros e esteve presente, de forma discreta, em todos os momentos. “O Churchill foi o primeiro, a Liz Truss a última. Há 101 anos de diferença a separar a data de nascimento de cada um deles. E Isabel foi Rainha com os dois”, diz o professor de História Nathan. “Como é que se resume uma vida destas? Não é possível.” Só lhe resta dar um último gole e levantar-se para pagar a conta.

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