A série “The Crown”, da Netflix, levou os espectadores pelos corredores da casa real para contar a história da coroa britânica e dos seus protagonistas ao longo das últimas décadas. O livro “Vitória de Inglaterra, a Rainha que amou e ameaçou Portugal” (Manuscrito) pode ser visto como uma proposta semelhante, só que aqui a personagem principal é a Rainha Vitória, o cenário é a Inglaterra do século XIX e há várias cenas dedicadas à coroa portuguesa. A autora Isabel Machado dedicou dois anos a investigar a vida da soberana britânica que deu nome a uma era inteira e em 2014 publicou aquilo que diz ser “a História de Portugal vista através da corte de Inglaterra”. O livro foi relançado esta quarta-feira, dia 22 de maio, numa nova editora e lança um novo convite a viajar pela vida da Rainha Vitória e perceber a personalidade e os contrastes que tornaram esta mulher uma das grandes figuras da História.
Da paixão pelo príncipe Alberto, o seu papel de soberana numa monarquia constitucional entre políticos e ainda a amizade com a Rainha Dona Maria II. As cartas que trocavam mostram duas mulheres à conversa sobre tudo e fazem-nos questionar o que teria sido esta relação se tivessem tido telefones. O reinado de Vitória foi tão longo que manteve a relação de proximidade com quatro soberanos portugueses, de Dona Maria II a Dom Carlos, que ascendeu ao trono em 1889 e viria a morrer em fevereiro de 1908, sete anos depois da soberana britânica. Com o revolucionário século XIX como pano de fundo, são muitos os acontecimentos internacionais que marcaram aquela época e continuam a fazer eco nos dias de hoje. Isabel Machado encontrou-se com o Observador no Palácio da Ajuda para falar sobre as histórias e descobertas deste livro.
Escolheu fazer esta entrevista no Palácio da Ajuda (em Lisboa). Porquê?
Escolhi estar neste palácio porque foi construído depois do terramoto de 1755, mas só vai ser usado muito mais tarde pelo rei D. Luís, que é um dos reis primos da Rainha Vitória e do Príncipe Alberto, o seu pai era primo direito dos dois. Portanto, a Rainha Vitória, o Príncipe Alberto e o nosso rei Dom Fernando II, marido de Maria II, eram todos primos direitos, filhos de irmãos. Dom Pedro V e outros dois irmãos vêm todos infetados de Vila Viçosa, pensa-se que com febre tifoide, e morrem em poucas semanas. Então, depois desse trauma, D. Luís finalmente diz que não consegue viver no palácio onde morreram os seus irmãos, e muda-se para aqui [para o Palácio da Ajuda]. Depois de tantos anos, depois do terramoto, vem inaugurar este palácio maravilhoso, ele e a sua mulher, Dona Maria Pia.
O D. Luís disse que gostava de casar com uma das filhas da Rainha Vitória e já sabia que não podia ser, porque eles eram anglicanos, protestantes. Não sei se havia o mesmo impedimento cá, dos reis portugueses, mas em Inglaterra não podiam casar com católicos. Depois a Rainha Vitória tenta influenciar sobre as princesas que ele deve escolher para casar e escolhe quatro, a maior parte delas alemãs. O D. Luís depois responde porque tomavam muito em consideração a opinião da Rainha Vitória, foi ela e o príncipe Alberto que escolheram a mulher para Dom Pedro V.
Porque é que uma Rainha de Inglaterra escolhe a noiva de um príncipe português?
Porque o D. Pedro V, que era o filho mais velho de Dona Maria II e de D. Fernando, tinha 16 anos quando a mãe morre e torna-se Rei. A Rainha Vitória era amiga da Dona Maria II, escreviam-se muito, e quando ela morre, tem um desgosto enorme. Há três meses de luto, na corte da Inglaterra. E dizem ao D. Fernando II, o rei de Portugal, para por favor enviar os filhos para lá [Inglaterra], para passar um tempo com eles. O D. Pedro V e o D. Luís passam dois verões em Inglaterra, até aos 18 anos de D. Pedro V, quando ele pode assumir a coroa, e são dois verões que vão transformar a vida deles.
O Dom Pedro V, que se dava um bocadinho mal com o pai, encontrou no príncipe Alberto um pai. Isto é uma história muito, muito bonita. E o príncipe Alberto encontrou no D. Pedro V um filho, porque se dava muito mal com o seu filho, futuro Eduardo VII, que era o Berti do livro e um grande amigo de Portugal. E esta relação de pai e filho é tão intensa que durante os poucos anos, infelizmente, que o D. Pedro V é rei, porque só é Rei durante seis anos, eles escrevem-se intensamente sobre tudo: as angústias, as tristezas, as dificuldades, a frustração do D. Pedro V com o país, com os políticos, com a corrupção. Eram cartas lençóis para o príncipe Alberto, e este a aconselhá-lo e a mandá-lo descansar. Realmente, Dom Pedro V era obcecado com o trabalho e destruiu a saúde.
Esta relação era tão próxima que, às tantas, o príncipe Alberto e a Rainha Vitória pensam que ele é um infeliz, só trabalha e que têm que lhe arranjar uma noiva. Então, o príncipe Alberto vai para o almanaque do Gotha escolher uma pessoa que tivesse a ver com ele porque gostava muito dele, mas sabia que ele tinha uma personalidade complicada, obcecada com o trabalho, era muito introvertido, e não podia ser uma princesa frívola. Então escolhe a [que viria a ser a] rainha Dona Estefânia. Portanto, é também pelos laços afetivos, não é que [a Rainha Vitória] mandasse em Portugal, embora tivesse aqui um bocado de poder.
Este livro é um relançamento. O que a levou há 10 anos à história da Rainha Vitória?
Eu tinha [escrito sobre] a Rainha Isabel I, mas é preciso dizer que não era uma biografia romanceada sobre Isabel I ou sobre a Rainha Vitória, foi desde o princípio a História de Portugal vista através da corte de Inglaterra, através destas duas grandes mulheres. Sobre a Rainha Isabel I eu nem sabia que havia tanta relação com a história de Portugal, depois descobri na pesquisa. Da Rainha Vitória já sabia que havia, mas não tinha noção. Portanto, o objetivo era para fazer o pleno das grandes monarcas britânicas, relacionadas sempre com a história de Portugal.
O século XIX é o meu século favorito, porque é o século extraordinário na história da Europa. É o século da liberdade. Os leitores vão ver neste livro a forma como o século XIX determina tudo o que vai acontecer no século XX. As guerras mundiais, os problemas com África, todas as descolonizações, as guerras na Europa, a guerra na Bósnia já nos anos 90 do século XX, tudo isto tem origem naqueles impérios feitos artificialmente no século XIX, no aparecimento da Alemanha, que é unificada nessa altura. No reinado da Rainha Vitória a Alemanha não existia, eram principados e unem-se. O crescimento da Alemanha, que é uma coisa extraordinária de ver, porque repete o que vamos ver no século XX, até o processo que depois vão usar na 2ª Guerra. Por volta de 1860, depois da Guerra Franco-Prussiana, eles vão anexando territórios, como faz agora o Putin, com o argumento de que são falantes de Alemão. De repente há um protagonista na Europa que vai destabilizar tudo, porque antigamente era sempre a França ou a Inglaterra, e de repente aparece a Alemanha. Tudo isto é durante o reinado da Rainha Vitória.
Tinha noção das afinidades?
Não fazia ideia dos laços de proximidade tão afetiva que houve entre a Rainha Vitória e os reis de Portugal. D. Maria II, D. Pedro V, D. Luís e D. Carlos. Sobretudo com D. Maria II e D. Pedro V, mas também com os outros, era uma amizade de cartas quase diárias e depois de tentativa de ajudar em todos os problemas que se passavam aqui em Portugal, nomeadamente a guerra da Patuleia, todos os problemas entre os liberais. D. Maria II pede ajuda e a Rainha Vitória, em todo o seu reinado, isto é interessante, tem uma posição de grande confronto em relação aos seus ministros. Eles tinham muito menos tolerância para com Portugal, porque não cumpria a escravatura, por exemplo, e ela sempre a tentar defender, a tentar arranjar mais um pouco de tolerância e isto vai acontecer até ao ultimato. Mas ela também desespera às vezes com Portugal. Não respondíamos, protelavamos, depois não pagávamos as dívidas, depois havia esquemas de corrupção por causa da escravatura, que é um grande mito acharmos que acabamos com a escravatura.
A escravatura é um tema muito presente no livro e na atualidade também. Por que é que isto foi uma questão tão importante naquela altura?
Eu achei interessante que as pessoas soubessem. A escravatura era um tema muito, muito importante na Europa desta época, no início do reinado da Rainha Vitória. E em Inglaterra, concretamente, era uma questão mesmo muito importante. Porque a Inglaterra, depois da Revolução Industrial, começou a ter uma classe de burguesia, média burguesia, que começou a estudar nos melhores colégios do reino, nas universidades e começou a criar uma comunidade de milhares de pessoas, muito conscientes, muito empenhadas socialmente. Não é por acaso que a Inglaterra está na vanguarda de muitos dos direitos humanos, das mulheres, dos povos, direitos à autodeterminação, de uma série de coisas. E, portanto, havia uma opinião pública fortemente anti-escravatura em Inglaterra que ia para a rua, em manifestações. Havia ministros, por causa de todo esse ambiente, que como qualquer político, tinham que se vergar à opinião pública, e outros por genuína convicção, como o Lord Palmerston, que era genuinamente contra a escravatura.
E por cá?
Portugal tinha uma situação incrível, porque no Brasil não tinha pessoas para tratar das vastas terras brasileiras e, portanto, alegava que precisava de escravos e precisava de alargar o prazo para terminar completamente com a escravatura. Isto é oficial, é factual. No Congresso de Viena, quando se rearranja a Europa depois de Napoleão, os portugueses suplicam para terem um prazo maior porque precisam de escravos. Os congressistas na Europa não gostaram, e já no reinado da Rainha Vitória torna-se incomportável. Portugal comprometeu-se a acabar com a escravatura e até fez acordos com a Inglaterra. Só que continuava a haver uma corrupção tremenda, entre os cúmplices no Brasil e as autoridades portuguesas em África. Isto é típico de Portugal, a lei é maravilhosa, na prática, os cruzadores, os navios que cruzavam o Atlântico constantemente de África para o Brasil estavam cheios de escravos. E os ingleses, a dada altura, dizem, ‘então, vamos nós controlar para o meio do Atlântico’.
Foi encontrado outro esquema. Como os portugueses eram aliados, as autoridades portuguesas e brasileiras e as portuguesas de África punham, por exemplo, em navios brasileiros, o pavilhão português ou a bandeira, para os aliados deixarem passar. Mas às tantas, os ingleses afundam um navio português cheio de escravos. Aquilo foi brutal. Os jornais em Portugal, até muitos em Inglaterra diziam que era um atentado. Os portugueses, de facto, protelavam. A lei dizia uma coisa, a prática fazia outra. Mas depois aquilo resolve-se. Com muita, muita diplomacia e ajuda da Rainha, a tentar pôr água na fervura. Enfim, mas ela não tem tanto poder assim. Ela já não é Isabel I, que reunia o Parlamento quando lhe apetecia.
Guie-nos pela pesquisa que fez para este livro. Andou por Inglaterra? Com quem falou? Onde esteve?
Eu fiz a pesquisa, ao mesmo tempo, da história de Portugal e da história de Inglaterra naquele período. Dos quase 900 anos de história, o século XIX, em termos de período prolongado, é o mais caótico da história de Portugal. As cartas de Dona Maria II estão todas publicadas em português, em dois grandes livros do Ruben Andresen Leitão, de meados do século XX, e algumas do D. Pedro V para o príncipe Alberto. As cartas dizem-nos tudo, porque eles escreviam cartas diariamente. Evidentemente, depois fui também ler as biografias deles, a História de Portugal, tudo isso.
Fiz duas pesquisas em Inglaterra em dois momentos diferentes. Uma para ir aos sítios onde ela [a Rainha Vitória] viveu, sobretudo Windsor. Eu já conhecia, mas tinha ido por causa de Isabel I. Fui ao Palácio de Buckingham, que é ela que estreia e esta tradição de a família real ir à varanda, foi ela que começou. O Castelo Balmoral ainda não se podia visitar, por isso não fui lá. Mas fui à ilha de Whight, à casa de Osborne. E aí é que eu percebi realmente a relação carnal e sensual entre a Rainha Vitória e o príncipe Alberto. É naquela casa, que é construída para uma família, não é para uma família real. As crianças estão todas lá para cima em camaratas, bem longe dos pais, para ninguém chatear. Os pais dormem na mesma cama, que é uma coisa nunca vista. E depois, o quarto está cheio de trancas. Eu perguntei e foi o príncipe Alberto que as mandou pôr. Eles tinham uma vida sexual intensa. Apaixonados. Ela obsessivamente, mas ele também. É mesmo uma bonita história de amor. É ela que tem que o pedir em casamento, porque ela é que é Rainha.
Qual a característica da Rainha Vitória que mais a surpreendeu?
É preciso ver que a corte dela era muito puritana, por causa do marido. Aquela Inglaterra puritana do século XIX baseada na imagem da família da Rainha, mas depois dentro de portas era explosivo. Era muito engraçado. Aquela paixão pelo marido, que ela mostrava e dizia a toda a gente. Portanto, isso é uma coisa muito, muito importante, foi a maior surpresa da pesquisa. Aliás, de todos os livros que escrevi, já escrevi seis, tenho sempre mesmo surpresas na pesquisa, mas a maior de todas até hoje, foi a sensualidade da Rainha Vitória. Era a última coisa que me passava pela cabeça.
Quando diz sensualidade, em que é que viu isso na pesquisa?
Na forma como ela descreve a beleza. Vi na casa de Osborne. Vi nos seus desenhos, que ela era uma esteta, portanto estava sempre a fazer aguarelas e desenhos. Vi na tal casa de Osborne, nas estátuas de nus. Como uma, nos aposentos privados, que é em alabastro, um príncipe Alberto, maravilhoso, vestido de legionário romano. Não há nada mais sexual que esta imagem. Nenhum dos filhos quis ficar com a casa — acho que tem a ver com o facto de ser a casa da paixão do pai e da mãe. Depois na Primeira Guerra até a deram aos soldados e aos feridos e pertence à herança histórica, portanto é visitado. Eu estive lá dois dias, de manhã à noite, a ver tudo, porque os sítios são muito reveladores. A maternidade para ela era um problema. A forma como é descrita por alguns historiadores, o que ela fazia e dizia e as atitudes dela, ela tinha depressões pós-partos, rejeitava os filhos. Assim que nascia um [bebé] ela olhava logo e dizia: “não é nada como o meu Alberto”. Ela não queria saber. Detestava a gravidez, sobretudo porque não podia dormir com o marido. Naquele tempo, uma mulher grávida tinha que estar separada. Isso para ela era mesmo um problema.
Ele sempre lhe foi fiel?
Sempre. E ela a ele. E foi assim toda a vida. Ela não era nada bonita, mas ele era absolutamente fiel. Qualquer história de amor não é perfeita. E ela tinha explosões, lutas, gritaria, mas era ela que começava. Depois ele escrevia-lhe cartas, era paternalista. Depois ela espojava-se aos pés dele, pedia desculpa.
Nas cartas no livro vemos Dona Maria II dizer constantemente que o país está uma balbúrdia.
É muito engraçado que Dona Maria era uma [mulher] prática e não tinha, temos que dizer, a noção da monarquia constitucional que tinha a Rainha Vitória, que foi absolutamente preparada. A Dona Maria II é atirada para um trono aos sete anos. Quer é resolver os problemas. As cartas entre as duas, tanto falam de política como da vida doméstica, mas a rainha Vitória depois tinha aquele lado um bocado pedagógico. Estava sempre a querer ensinar aos primos como é que é uma monarquia constitucional.
Logo no início do livro, percebemos pela correspondência entre as rainhas que elas se tratam pelo primeiro nome, de uma maneira muito doce. Isto era realmente assim?
Era, era. Elas só se encontraram duas vezes, aos nove anos e aos catorze, mas a Rainha Vitória era uma romântica, um puro exemplar de um movimento romântico. Era uma idealista. E quando gostava das pessoas era cega, amava.
Como é que se conheceram?
Conheceram-se porque quando a D. Maria II vinha para Portugal o navio teve que ser desviado para Inglaterra. Isto aqui era um caos com a Guerra Civil, entre o D. Pedro e o D. Miguel. Ela teve que ir para a Inglaterra, onde estavam os exilados liberais portugueses. Depois vai para a França e vai para outros sítios fazer a sua formação.
Elas têm a mesma idade com poucas semanas de diferença.
São duas mulheres que vão ser rainhas. Quando a Rainha Vitória a conhece não sabe que vai ser rainha. É filha de um quarto filho de um Rei e chega ao trono por sorte. A mãe dela, de facto, escravizou-a e ela vai escravizar os filhos. É tudo como ela quer, porque foi como ela foi educada. Ela era uma prisioneira, como ela diz. A Rainha Vitória não tem filtro. É uma coisa muito, muito curiosa. Não faz ideia o que são os diários dela… eu ponho [no livro] na primeira pessoa, mas não é como ela escreve. Faço-o de uma forma bastante mais cuidada, ponho uma linguagem mais elaborada. Os diários dela são um encanto de ler. Ela escreve “odeio” como faria uma criança, com letras maiúsculas e dez pontos de exclamação. “Adoro este homem”, pontos de exclamação. “Eu sou uma desgraçada”, pontos de exclamação. Ela escrevia cartas e diários obsessivamente e sem filtro nenhum, tanto que os diários foram queimados.
O príncipe Alberto morreu muito novo. Como é que a Rainha lidou com o luto?
O Castelo de Balmoral era o seu templo, ela fugia para ali e obrigava os ministros, imagine-se o que era no século XIX, a ir de Londres às Highlands da Escócia para reuniões semanais. E depois falavam sempre com muito cuidado. Só há um que a convence depois a voltar a ser vista [em público], que é o [Benjamin] Disraeli, uma grande figura, porque ela o adora. Quando ela gostava, fazia tudo o que eles [primeiros-ministros] queriam. Ela sofreu muito, mas também cultivou aquilo. O culto à morte do príncipe Alberto dominou até a Inglaterra. Foi um desgosto coletivo. Ele era mesmo um homem especial e morreu em meia dúzia de dias, com 41 anos. Não se estava à espera. Morreu de febre tifoide, mas hoje acha-se que não, porque ele tinha muitos problemas. Era um homem estóico, mas de físico frágil. Ele era lindo. Foi um casamento arranjado pelo tio Leopoldo, que também fez o casamento da nossa Dona Maria II com o D. Fernando, que era irmão dele. Este tio Leopoldo, que é o primeiro Rei dos Belgas, é que vai fazer estes casamentos todos.
A Rainha Vitória foi a primeira mulher a vestir-se de branco no casamento e tornou-se uma tradição. Descobriu outros rituais ou princípios em que ela tivesse sido pioneira?
Esse é o primeiro. Ela desenha o seu vestido e escolhe o branco, que não era uma cor nada real. Sendo uma romântica e estando apaixonadíssima, o branco era a cor da pureza. Ela bateu o pé e todas as filhas se vão casar de branco e por amor. Os filhos também, exceto o mais velho, que como ia ser Rei, é um casamento decidido pelo pai, mas que ele aceita.
A Rainha Vitória era completamente desprovida de preconceito racial. Ela gostava mais das pessoas simples, acho que era também uma questão de insegurança, ela sentia-se insegura entre os grandes ministros e intelectuais. A pessoa mais importante na primeira fase da vida dela é uma governanta e, depois da viuvez, ela está próxima de criados, de tal forma que se apaixona por dois, primeiro um escocês e depois um indiano. Na Índia, o ponto alto do seu reinado é o estatuto da Índia. Foi ela que esteve um ano inteiro a redigi-lo pelo seu punho, uma coisa que ela impôs foi que nunca fosse discriminada a cor da pele, nem a religião do povo indiano. Ainda hoje os indianos têm muito apreço por ela. Mesmo que não gostem de ingleses, gostam da Rainha Vitória. E ela tinha uma paixão pela Índia, mas nunca lá foi. Não gostava nada da Rússia e tem um filho que casa com a filha do Czar da Rússia e ela fica furiosa porque ele apaixona-se, lá está. E depois a neta favorita dela vai casar com o Czar e é a última Czarina que é morta com a família toda. Mas ela ficou horrorizada também com esse casamento da neta. É outro paralelismo. Portanto, a Rússia naturalmente já tinha a vontade de controle e de hegemonia e a primeira guerra da Crimeia é no reinado da Rainha Vitória.
Sendo certo que era uma mulher surpreendente em algumas coisas, na liberdade de casar por amor, no horror à discriminação racial ou religiosa, ou quando dizia que as mulheres eram escravas dos homens e que a gravidez e o parto eram um horror absoluto, não se pode dizer que fosse uma “feminista” antes do tempo. Aliás, era ela contra o direito de voto para as mulheres e contra a ideia de mulheres na política, como mostro no romance. Vitória era, acima de tudo, uma pessoa contraditória, e é assim que eu a retrato, extremamente complexa, podendo ir de um extremo de compaixão a acessos de grande frieza.
A Crimeia já era na altura um território desejado?
A história da Crimeia é muito complexa, mas esteve sob domínio otomano muito tempo, até os russos se apoderarem da região em finais do século XVIII. Ora, isto não interessava nada nem aos otomanos, nem aos franceses, nem aos ingleses. Estes últimos, que são os que nos interessam neste romance, porque o controlo do Mar Negro pelos russos podia pôr em causa o poder britânico, obviamente. É preciso ver a proximidade do Mediterrâneo, logo ao Egito, que muito interessava aos britânicos nesta altura do reinado da Rainha Vitória, mas também a própria Índia. Queriam os russos bem longe e quanto menos território dominassem, mais seguros estava o império britânico. A Índia sempre foi muito cobiçada também pelos russos. Daí terem feito uma aliança com os turcos e os franceses, declarando guerra à Rússia.
O reinado da Rainha Vitória tem legados para tudo. Mais um: a enfermagem nasce no reinado da Rainha Vitória durante a Guerra da Crimeia. Lá está, em Inglaterra esta classe burguesa do século XIX que estudou e que era muito avançada, tinha até mesmo alguns aristocratas, eram socialmente muito empenhadosc, como Florence Nightingale, que viria a fundar uma escola de enfermagem, depois de voltar da Crimeia.
[Embora não tenha sido uma iniciativa do governo britânico] a Rainha Vitória vai condecorá-la e mais tarde ela vai ajudar o nosso Rei D. Pedro V, que ele quer fazer um hospital a honrar a mulher, o Hospital Dona Estefânia. Quem faz o Hospital D. Estefânia é um arquiteto inglês, que a Rainha Vitória e o príncipe Alberto aconselham, porque os projetos iam do rei D. Pedro V para eles, e eles viam. Foi nesta altura que a Rainha Vitória criou a Victoria Cross, ainda hoje a mais alta condecoração militar britânica, atribuída por atos valorosos frente ao inimigo, mas que pode ser atribuída também a civis se estiverem em cenário militar, sob comando militar. É atribuída a poucos eleitos e é sempre entregue pessoalmente pelo Rei ou pela Rainha.
Os reis hoje em dia, ou algumas famílias reais, têm relações próximas, visitam-se, mas na altura como se mantinham as relações?
Muito por carta, claro, mas [a Rainha Vitória] chegou a ir a Paris, e depois já no fim, viúva, vai a França, vai para os Alpes. Reunia a família toda em sítios. Também foi a Itália. A Rainha Vitória começou outra coisa que é o conceito de férias em família, com a casa de Osborne e com a casa de Balmoral. Apesar de ela continuar sempre a trabalhar, a família está ali sozinha, não está na corte. Quando os filhos começam a casar, ela ia visitar a filha que estava em Berlim, a Vicky, que é mãe do futuro Kaiser, e visita outros. A Portugal é que nunca veio, era longe.
O livro está escrito quase num registo de diário, como se fosse uma sucessão de cartas. Porquê?
Por causa da Rainha Vitória, por causa da personalidade que eu encontrei. Uma personalidade tão emotiva, tão transbordante, tão inesperadamente excessiva, emoções à flor da pele, sem freio, sensual, que eu achei irresistível para o leitor, de vez em quando, entrar o registo de primeira pessoa, que é um registo ficcionado, mas baseado absolutamente nas opiniões dela e de como ela via as pessoas e o mundo.
Diz que todas as personagens do livro são verídicas. Quais é que destaca como sendo as mais interessantes?
Este livro tem muitas personagens. Mas a mais interessante é a Rainha Vitória, porque é inesperada, porque é uma mulher excessiva, sensual, muito escandalosa, e depois o príncipe Alberto. Foi a maior surpresa da pesquisa, é um homem incrível. Os ingleses devem-lhe muito, ele passou as passas do Algarve em Inglaterra por causa dos preconceitos por ele ser alemão e estrangeiro, quando ele era absolutamente brilhante, humanista, empenhado, um homem que deu tanto a Inglaterra. Depois da morte é reconhecido, ainda hoje é considerado um homem absolutamente extraordinário. E um homem de paz. Se ele tivesse vivido [não morresse tão cedo], talvez não tivesse havido a Primeira Guerra, que é provocada pelo seu neto. Guilherme II, que é o neto da filha preferida do príncipe Alberto, e eu acho que com a influência dele, talvez o século XX não tivesse sido assim.
E algumas figuras portuguesas?
Os reis portugueses também, nomeadamente Dom Pedro V, para mim também uma grande surpresa. Sofri muito com aquele rei. Ele é muito infeliz e eu gostei muito dele. Depois, há outras figuras políticas, como por exemplo Marechal Saldanha, que eu acho uma maravilha. É assim a figura mais colorida da política portuguesa do século XIX. O homem aos 80 anos ainda fazia pronunciamentos militares, estava nas guerras todas. O duque de Saldanha, Marechal de Saldanha. E depois, os políticos ingleses, há ali figuras extraordinárias. Temos o Benjamin Disraeli e o Gladstone. Sobretudo estes, que ela odiava um e amava outro. O Lord Belmore, o seu primeiro primeiro-ministro. O tio Leopoldo, que faz os casamentos de todos, mas esse entra mais à distância. E depois o Eduardo VII, o seu filho Berthi, eu dou muita atenção, porque acho que ele era muito maltratado pelos pais e era um grande amigo de Portugal.
Viveu parte da sua vida fora de Portugal, nomeadamente nos Estados Unidos e em Macau, sítios onde não há a tradição da realeza. De onde vem o seu interesse por figuras deste universo?
Eu não sou monárquica. Há atração por algumas figuras da realeza, mas a atração é pela História e por alguns períodos e algumas figuras. De facto os meus livros são todos sobre figuras ligadas à realeza, mas é mais uma consequência de figuras ou períodos históricos que me atraem. Muitas vezes é nas pesquisas de uns [livros] que tenho ideias [para outros]. Tenho estado muito na realeza, mas hei-de sair.
Já foi professora e jornalista, o que é que a levou para a profissão de autora?
A minha grande primeira paixão foi sempre a literatura e a História, por causa do meu pai. Era um apaixonado por História. Nós desde pequeninos, desde que aprendemos a falar, aprendemos a ouvir falar de História. Depois estudei línguas e literatura, depois o jornalismo acontece em Macau, a televisão também. Continuo depois cá no canal Parlamento e a escrever para revistas. Os livros foram uma sugestão de uma editora, a Esfera dos Livros na altura. Um amigo meu tentava arranjar pessoas que pudessem talvez adaptar-se a escrever romances históricos nessa editora e um dia perguntou-me se eu não gostava de fazer um romance histórico. Eu disse logo que sim. Foi a primeira e única vez na minha vida que disse logo que sim a uma proposta de trabalho. Foi uma loucura porque disse que sim sem saber no que me estava a meter.
Há quem diga hoje que a monarquia está ultrapassada, mas a verdade é que continua a interessar muito às pessoas. O que acha que mantém esse interesse?
Acho que em primeiro lugar é o simbolismo da ligação à história. A pertença. Ou seja, as pessoas olham para aquelas pessoas e veem uma continuidade que é muito apelativa e que nenhum político tem. Depois, o cerimonial é uma coisa que é muito importante na vida humana. O simbolismo, todo o significado dos gestos. Todas as culturas têm isso e não há nenhum sistema do mundo em que isso seja mais exacerbado do que numa monarquia. Adoro o Carlos III, há muitos anos, acho o melhor deles todos, humanamente. Há 50 anos que ele é um defensor do ambiente, da agricultura orgânica, do diálogo interreligioso, do diálogo interracial. Há 50 anos quando ninguém falava nisto. É um homem extraordinário. Há uma coisa que eu, apesar de não ser monárquica, tenho de reconhecer nas monarquias constitucionais. É que aquela pessoa é treinada desde pequena para o dever. É absolutamente apartidária. E é mesmo. Nós olhamos para a Dinamarca, olhamos para a Holanda, sabemos que podem ser elementos unificadores. A Bélgica, a Espanha, a Grã-Bretanha. Mesmo os escoceses, quando quiseram fazer o referendo, antes do Brexit, disseram “nós queremos ser independentes, mas queremos manter a libra e a Rainha”.
A dada altura, no seu livro, a Dona Maria diz à Rainha Vitória que os políticos arranjam problemas que têm de ser os soberanos a resolver. Quais é que acha que são os desafios da realeza atualmente quando, nas monarquias constitucionais, os reis são diplomatas nos bastidores, mas vistos como figuras decorativas para o exterior?
É esse equilíbrio. O principal desafio de qualquer monarquia constitucional é manter-se relevante num mundo em constante mudança. Eles aí até podem ter um trunfo, que a tal continuidade é a estabilidade que eles podem representar. E eles têm de se adaptar. Portanto, eles têm de manter na mesma o cerimonial e todo o simbolismo que tanto cativa as pessoas e que une as pessoas, mas têm de modernizar. No caso de Inglaterra, a família real, a monarquia em geral, dá aos cofres milhões. Milhões, não só no turismo, mas, mais importante ainda, na caridade. Porque a família real britânica é, talvez, no mundo das instituições que mais consegue angariar fundos para tudo o que se possa imaginar.
Acha que as monarquias têm futuro, nomeadamente na Europa? Quem é que são as figuras que destaca do presente e, possivelmente, para o futuro?
Destaco já Carlos III. Gosto muito do Rei de Espanha, Felipe VI. Não gostava do outro, mas gosto deste, como pessoa. Destacaria estes dois. Se tem futuro, não sei. Têm que saber manter-se relevantes e acompanhar os tempos.
Quanto tempo andou mergulhada na vida da Rainha Vitória a escrever o livro?
Dois anos. Portanto, de 2012 a 2014.
Esta edição do livro acrescenta alguma coisa à primeira?
Não, há uma diferença da escrita. Fiz algumas alterações na estrutura. Acrescentei as fotografias que não tinha. Acrescentei uma árvore genealógica que não tinha. Acrescentei a nota da autora. Atualizei [alguma informação, por exemplo, sobre] o Rei Carlos III.
Pode revelar quem é a personagem que já tem debaixo do olho para o próximo livro? Se é do antigamente ou mais recente?
Não. É da história.
Porque sente que é relevante falar da Rainha Vitória agora?
A Rainha Vitória é sempre atual porque, em primeiro lugar, é uma mulher que reinou sobre um império inteiro. Uma mulher de poder no século XIX, que é um século em que começa a despontar o direito das mulheres. Depois, era uma mulher sem preconceitos raciais, que se vê muito no livro, que é uma coisa absolutamente inesperada. Muito na ordem do dia e muito surpreendente. É uma mulher que não fazia distinção entre classes. Preferia muitas vezes a companhia de criados causando, aliás, até muito incómodo na sua família, nos seus filhos, na aristocracia porque ela gostava da gente simples e diz isso desde jovem.
Depois, é uma mulher que defendeu os casamentos por amor, ela deu um grande passo, e há muitos sítios do mundo onde ainda não se casa por amor, onde as mulheres são forçadas a casar. Nós vivemos num paraíso, mas se calhar em dois terços do mundo, as mulheres têm zero direitos e cá também têm menos que os homens. Também não há nenhum sítio onde não têm menos que os homens, nem na Suécia. E depois, é importante porque há uma desagregação na Europa, que está numa convulsão tremenda, e a Rainha Vitória e o príncipe Alberto sempre acreditaram e sempre lutaram no sentido da paz. E essa felicidade de terem até os filhos casados, eles acreditavam que a paz era melhor que a guerra. O reinado da Rainha Vitória, que é o reinado das grandes conquistas sociais, deve lembrar-nos que nós temos sempre, sempre, sempre de lutar pela democracia, pela liberdade, porque é a coisa mais frágil do mundo.
Artigo atualizado às 12h05 de 27 de maio com as datas do reinado de Dom Carlos