Chris Sainty está em Portugal desde o verão de 2018 e já fala fluentemente português. Tão fluentemente que aceitou o convite do Observador para conversar sobre o Brexit e a situação atual que se vive no Reino Unido, em frente a um microfone, numa língua que começou a aprender há apenas um ano. Isso não o impediu de tentar passar uma mensagem: um acordo com Bruxelas, diz, ainda é possível. O embaixador britânico em Lisboa aproveitou a conversa com a Cátia Bruno, a Carla Jorge de Carvalho e o Paulo Ferreira, na rubrica Direto ao Assunto, das Manhãs 360, para sublinhar o empenho de Londres em conseguir esse acordo, muito embora os sinais dados por ambos os lados não sejam encorajadores. “As negociações europeias são muitas vezes assim. Nos últimos momentos, as coisas podem mudar muito”, avisa Sainty, ainda esperançoso de que Boris Johnson consiga uma solução em Bruxelas que evite um no deal.
O que não invalida que o Reino Unido esteja a salvo do que classifica de “pior cenário”: uma saída sem acordo, ou seja, um no deal. Boris Johnson tem dito que o país sairá da União Europeia a 31 de outubro, aconteça o que acontecer, razão pela qual os planos de contingência estão a ser acelerados. Chris Sainty reconhece que é isso que deve fazer “qualquer Governo responsável”, mas classifica as notícias que falam de uma possível falta de alimentos e medicação como “um pouco exageradas”. Defende a honra do seu Governo, dizendo que o plano apresentado por Boris Johnson na semana passada incluiu uma “cedência muito importante” no que diz respeito ao mecanismo de salvaguarda das Irlandas e que foi uma “proposta séria” e “sincera” — que ainda não teve resposta oficial, sublinha. Mas também admite que a situação política atual no seu país é “insólita” e que, mais cedo ou mais tarde, haverá eleições no Reino Unido. Dê por onde der, Chris Sainty regressa sempre ao ponto inicial de otimismo que o faz crer que um acordo para o Brexit ainda é possível: “Ainda temos tempo. Não muito, mas temos tempo.”
Diplomata de carreira, entrou para o Foreign Office em 1989 e passou por postos tão variados como Madrid, Islamabad e Nova Deli, mas estreou-se como embaixador em Lisboa. Liderar uma embaixada em tempos de Brexit é, nas suas palavras, “diferente”. “Acho que os meus antecessores provavelmente tinham um papel mais fácil do que o meu”, reconhece. Mas considera que é “um privilégio” estar em Portugal e afirma ter objetivos para a relação entre os dois países para lá do Brexit, sobretudo ao nível das relações comerciais. O contacto com o Governo português é praticamente diário. Porque, no meio da incerteza provocada pela saída da União Europeia, há 400 mil portugueses no Reino Unido e cerca de 20 mil britânicos em Portugal, que aguardam pelo desfecho com a respiração suspensa. É por isso que, garante o embaixador, os direitos dos cidadãos estão em primeiro lugar: “É a grande prioridade, tanto para nós como para o Governo português.” É por isso que, diz, “não há grandes motivos para os portugueses no Reino Unido se preocuparem” — mesmo que não haja acordo.
Há cerca de 400 mil cidadãos portugueses a viver no Reino Unido. O Governo anterior, de Theresa May, deixou a promessa de que todos os cidadãos da União Europeia terão assegurados os direitos de que gozam atualmente, mas, entretanto, temos um novo primeiro-ministro. O Reino Unido mantém o compromisso de que esses direitos estão salvaguardados, mesmo em caso de no deal?
Claro que sim. O novo primeiro-ministro britânico reiterou, na sua primeira declaração após tomar posse, o mesmo compromisso que fez a sua antecessora alguns meses antes. Diria que não há grandes motivos para os portugueses no Reino Unido se preocuparem com o futuro, mesmo num cenário sem acordo. A comunidade portuguesa no Reino Unido é muito importante, tem um contributo enorme na nossa sociedade e na nossa economia. São os nossos amigos e vizinhos e serão muito bem-vindos no futuro.
Também temos uma comunidade de britânicos em Portugal de dimensão considerável.
Sim.
Imagino que também estejam preocupados com a situação em que estão. Há cidadãos com património cá, há muito turismo vindo do Reino Unido… Na embaixada têm acompanhado também essas situação? Sente que se estão a resolver os problemas que possam surgir daí?
Quanto à comunidade britânica em Portugal, nós mantemos contactos muito estreitos com eles e acho que também em Portugal não há motivos os britânicos se preocuparem. Porque, mesmo num cenário de no deal, o Governo e o Parlamento português aprovaram uma lei que protege os direitos dessa comunidade no futuro.
Quais são as principais preocupações dos cidadãos britânicos que vivem em Portugal?
Obviamente a queda no valor da libra esterlina é um problema, para muitos pensionistas sobretudo. Têm preocupações sobre questões muito práticas como o acesso a serviços sociais, serviços de saúde, etc. no futuro. Mas tenho a confiança de que todos os problemas vão resolver-se.
Mas esse acesso a serviços já está garantido? As negociações com o Governo português já têm soluções para essas questões que se podem levantar?
Sim. No cenário de um acordo do Brexit, haverá um tratado internacional que garante os direitos dos cidadãos, tanto de portugueses no Reino Unido, como britânicos em Portugal. Mas mesmo num cenário de no deal, temos também a garantia desta lei portuguesa que protege os direitos dos britânicos no futuro.
Tem havido muitos contactos do senhor embaixador com o Governo português?
Sim, quase diariamente. E falamos muito frequentemente desta questão dos direitos dos nossos cidadãos. É a grande prioridade, tanto para nós como para o Governo português.
Com o [ministério dos] Negócios Estrangeiros ou é ao nível do primeiro-ministro?
Não falo muito frequentemente com o senhor primeiro-ministro, normalmente é com o ministro dos Negócios Estrangeiros e com outros ministros também.
O primeiro-ministro Boris Johnson tem dito que não exclui de todo a hipótese de uma saída sem acordo, de um no deal, mas que a situação preferencial seria a de um acordo. Esta terça-feira tivemos um telefonema entre a chanceler alemã, Angela Merkel, e Boris Johnson, que, segundo as fontes dos governos, não terá corrido bem. Há mesmo quem use a expressão “é impossível” ter um acordo a esta altura. Tem confiança de que ainda é possível dar a volta a isso, com o relógio a contar e cada vez mais próximo do dia 31?
Acho que sim. Obviamente, estamos num momento importante, talvez decisivo, neste processo do Brexit. Temos um Governo e um primeiro-ministro que estão muito determinados em cumprir a promessa que foi dada ao povo britânico em 2016, de implementar o resultado do referendo. É claro que seria muito melhor o Reino Unido sair com um acordo que garante uma saída bem ordenada. Na semana passada, o Reino Unido fez uma proposta em Bruxelas, uma proposta séria, sincera, para tentar superar os problemas pendentes das negociações, sobretudo a questão muito difícil da fronteira irlandesa. É verdade que, neste momento, não encontramos uma abordagem muito positiva, muito otimista, do lado europeu. Mas, [tendo em conta] a minha experiência, as negociações europeias são muitas vezes assim. Nos últimos momentos as coisas podem mudar muito. Também vi as notícias da conversa entre o nosso primeiro-ministro e a chanceler Merkel esta manhã [terça-feira], mas acho que é uma coisa bastante normal nesta fase final de uma negociação tão difícil. As coisas mudam de um dia para o outro.
Mas neste momento, com os dados que tem em cima da mesa, o que acha que vai acontecer no dia 31 de outubro? Vai haver um acordo até lá? Ou vai haver uma saída desordenada?
Para já, a nossa prioridade é conseguir um acordo. O Governo britânico está a trabalhar incansavelmente para conseguir esse acordo, essa é a nossa grande prioridade.
É difícil perceber ainda se vamos ter esse acordo até ao dia 31 de outubro…
O nosso primeiro-ministro disse várias vezes que, se não conseguirmos esse acordo, devemos estar preparados para sair sem acordo. E, portanto, como qualquer Governo responsável, estamos a fazer preparativos intensos para essa contingência. Mas repito: a nossa preferência clara é chegar a um acordo com Bruxelas.
Mas numa negociação há sempre cedências de cada uma das partes…
Exatamente.
Parece-lhe que, nesta negociação, tem sido equilibrado aquilo que o Reino Unido admite deixar cair e aquilo que Bruxelas tem negociado?
Na proposta da semana passada o Reino Unido fez algumas cedências. Uma cedência muito importante foi a proposta de criar uma zona regulatória única na ilha da Irlanda. É um compromisso importante do nosso lado. Ainda esperamos uma resposta adequada de Bruxelas. Em qualquer negociação, ambos os lados têm de fazer cedências, compromissos… Mas ainda temos tempo. Não muito, mas temos tempo.
Dirá que agora está do lado de Bruxelas uma resposta à proposta que o Governo britânico apresentou?
Sim, fizemos essa proposta, os nossos negociadores estão ainda em Bruxelas. Ainda hoje [terça-feira] se falou da nossa proposta e temos esperança de receber uma resposta positiva dos negociadores da União Europeia.
Se isso não acontecer, o que podemos esperar? Porque o Parlamento britânico aprovou uma lei que impede na prática que haja uma saída sem acordo, que diz que o Governo tem de pedir um adiamento se não houver acordo até dia 19, e o primeiro-ministro tem dito que não quer pedi-lo. O que poderá acontecer? Alguém sabe?
A verdade é que muitas coisas podem acontecer até 31 de outubro. A nossa prioridade é negociar um acordo com Bruxelas e estamos a fazer todos os nossos esforços para esse objetivo.
Mas, no caso de haver, mais cedo ou mais tarde, eleições, o que acontecer ao longo destes 15 dias pode ser determinante para a forma como essa eleição decorre.
Estamos numa situação política um pouco insólita no Reino Unido, atualmente. Temos um Governo que não tem maioria no Parlamento e isto, obviamente, cria problemas políticos. Na minha opinião, esta situação não é politicamente sustentável a médio-longo prazo e por isso tenho a certeza que num futuro próximo vamos ter eleições, mas não antes de 31 de outubro. Não seria possível.
Entretanto, há vários cenários que estão a ser traçados para a possibilidade de uma saída sem acordo e nem todos, ou quase nenhum, é muito tranquilizante para a vida que os britânicos estão habituados a ter. Não concorda com esta ideia?
É óbvio que o cenário de uma saída sem acordo é o pior cenário. Pelo menos no curto-prazo haveria perturbações económicas, políticas, sociais e queremos evitar isso. Mas, como disse, como qualquer Governo responsável, temos de fazer preparativos. Temos publicado muitos avisos para as empresas, comerciantes, cidadãos, a fim de tentar minimizar os impactos negativos de uma saída sem acordo.
E esses avisos passam por ter mantimentos em casa, medicamentos…? São alguns dos bens que se admite que podem não estar disponíveis.
Não, acho que algumas destas notícias são um pouco exageradas. Temos medidas de contingência para minimizar este impacto na nossa economia.
Mas vai haver um impacto económico.
Sim, claro, não podemos negar esse facto. Também noutros países, não apenas no Reino Unido… Uma saída sem acordo teria impacto em todos os outros países da União Europeia e, portanto, é do interesse de todas as partes conseguir um acordo.
Como é que acha que os cidadãos, britânicos e europeus, olham para a forma como estão a decorrer as negociações? Não se encontra um acordo, toda a gente sabe quais são os prazos… Não há um certo descrédito dos cidadãos em relação à capacidade dos políticos fazerem as coisas como devem ser feitas?
Os nossos cidadãos querem acabar com o [processo do] Brexit e olhar para lá destes anos de negociações, para pensar num futuro mais otimista, mais positivo.
Em termos geopolíticos, passando para um cenário em que o Reino Unido já está fora da União Europeia, os Estados Unidos vão ser cada vez mais um parceiro estratégico do Reino Unido, não?
Os Estados Unidos já são um parceiro estratégico do Reino Unido.
Mas em termos de importância relativa com a Europa?
Aí pode ser, mas somos um país europeu. Estamos a deixar a União Europeia, mas somos um país europeu, com valores europeus, e isso não vai mudar.
Mas o primeiro-ministro tem dito repetidamente que o Reino Unido é um país ocidental, virado para o Atlântico, e que os EUA têm de estar envolvidos em qualquer sobrevivência futura do Reino Unido. E o Presidente norte-americano tem demonstrado apoio, mas ainda não houve nenhum sinal concreto de “Vamos fazer um acordo comercial”. Ainda pode vir a acontecer, mas só depois de um Brexit? Ou o Reino Unido não pode contar com essa garantia?
A nossa parceria com os Estados Unidos é uma das nossas parcerias mais importantes do mundo e, portanto, estou otimista que, depois da nossa saída, vamos poder negociar bons acordos com Washington. Mas esta é uma questão para o futuro. Agora estamos muito focados na questão de resolver os problemas pendentes do Brexit.
Continuando a olhar para cenários, caso não haja acordo para o Brexit, o futuro passa por acordos pontuais com cada Estado-membro, como está a acontecer entre Portugal e o Reino Unido? Será por aí o plano B?
É um dos cenários que estamos a considerar no contexto de uma saída mais desordenada, digamos. Muito provavelmente vamos precisar de acordos bilaterais com países individuais.
Que já estão a ser feitos, como com Portugal.
Alguns, sim, mas não com todos os países. Aqui em Portugal, queria expressar o meu agradecimento ao Governo português pela sua abordagem muito positiva e construtiva durante os últimos meses. Para tentar abordar e resolver este tipo de problemas, no contexto de uma possível saída sem acordo.
E parece-lhe que Portugal pode continuar a ser um destino atrativo para os turistas britânicos?
Com certeza. Sempre [risos].
Mesmo com uma libra mais baixa?
Mesmo, sim. Os britânicos adoram Portugal e vão continuar a passar as férias aqui.
Mas há aspetos burocráticos que mudam…
Pode ser, mas estamos a trabalhar juntamente com as autoridades portuguesas para minimizar estes impactos.
É a sua primeira experiência como embaixador, em Lisboa. Está com cerca de um ano de função. Que balanço faz?
Para mim tem sido um grande privilégio ser nomeado embaixador britânico num país com o qual temos ligações tão importantes, tão históricas. Todos os portugueses sabem que temos uma aliança muito antiga, de mais de 600 anos, e é um privilégio estar aqui a representar o Reino Unido em Portugal. A nossa experiência, até agora, foi muito positiva.
Para um embaixador é melhor ou pior ser nomeado numa altura destas, em que há um tema tão importante? Por um lado há mais protagonismo, por outro lado há dificuldades.
É diferente, pelo menos. Acho que os meus antecessores provavelmente tinham um papel mais fácil do que o meu.
E gosta dessas dificuldades?
São interessantes, sim [risos].
Que objetivos lhe deram quando lhe atribuíram Portugal como destino para as suas funções? Que objetivos tem?
Para mim o importante é olhar para além dos nossos problemas atuais, do Brexit, e pensar num futuro muito otimista e positivo. Tenho a visão de uma parceria bilateral futura entre Portugal e o Reino Unido e, neste contexto, estou muito, muito otimista. Acho que temos uma base muito forte para construir uma relação no futuro, em termos comerciais, por exemplo. O volume de comércio entre o Reino Unido e Portugal é muito grande. O Reino Unido é o quarto maior mercado para os exportadores portugueses e este volume está a crescer mais de 50% nos últimos cinco anos — apesar do Brexit. O que é uma coisa impressionante. Também a situação dos investidores neste momento é positiva. Temos muita colaboração, há investidores em serviços digitais, tecnologia, ciência, pesquisa, investigação, etc. e acho que estes setores têm muitas possibilidades para o futuro.
E não teme que um no deal possa pôr em causa essas possíveis parcerias futuras?
Não. Acho que podemos aprofundar estas relações independentemente do desfecho do Brexit.