A Ordem dos Médicos deverá terminar ainda esta sexta-feira a análise a todos os casos de alegadas más práticas clínicas — que teriam resultado em mortes e mutilações — no serviço de cirurgia geral do hospital Amadora-Sintra e denunciados ao conselho de administração, sabe o Observador.
Entre os 18 casos que chegaram às mãos do Colégio da Especialidade daquela área clínica, 14 já tinham sido avaliados até ao início da tarde e quatro iam ser analisados até ao fim do dia. Até essa altura, nas centenas de páginas que compõem os ficheiros, não se encontravam evidências de um desrespeito sistemático da “legis artis” — isto é, das regras e princípios técnicos e científicos por que se devem pautar todos os atos clínicos. O relatório final, que já está a ser redigido, deverá ficar pronto na próxima semana.
Em dois casos, no entanto, encontraram-se dados que poderão indiciar “pelo menos uma falta de prudência e de senso no tratamento dos doentes”, apurou o Observador junto de uma fonte próxima do processo. São os únicos que levantam dúvidas sobre a adequação do exercício dos profissionais de saúde que acompanharam os doentes em causa. Na grande maioria, contudo, os doentes tinham quadros clínicos muito complexos (incluindo cancros terminais, por exemplo) cujo desfecho mais provável seria a morte — e foi a gravidade desses casos que acabou por provocar o óbito, não quaisquer más práticas praticadas pelos médicos, concluiu a análise da Ordem dos Médicos.
IGAS espera por conclusões do hospital para investigar
Os casos estão a ser investigados por António Menezes da Silva, presidente do Conselho da Especialidade de Cirurgia Geral da Ordem dos Médicos, que foi chamada a atuar pelo conselho de administração do hospital a 10 de outubro, quatro dias depois de ter recebido a denúncia de um dos seus cirurgiões. A Ordem nomeou então um instrutor externo para conduzir o processo de inquérito interno que o Amadora-Sintra decidiu instaurar logo no dia seguinte a ter recebido a denúncia. Até ao momento, nenhum profissional de saúde foi afastado de funções na Cirurgia Geral do Amadora-Sintra — e assim será pelo menos até que a investigação fique concluída.
Em paralelo à investigação pedida pelo hospital, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) avançou esta sexta-feira à Lusa que abriu um “processo administrativo para investigação dos factos alegadamente ocorridos no serviço de cirurgia geral do Hospital Amadora-Sintra”. A Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS), por outro lado, ainda não está a investigar as denúncias em causa — de que teve conhecimento no mesmo dia que a Ordem dos Médicos, a 10 de outubro — e deverá aguardar pelas conclusões comunicadas nos próximos dias pelo hospital para decidir se deve ou não intervir no processo.
O seu posicionamento é que o conselho de administração do Amadora-Sintra tem mecanismos de atuação técnica suficientes para explorar o processo, sobretudo tendo em conta que solicitou o destacamento de um investigador externo da Ordem dos Médicos. O envolvimento da inspeção seria redundante neste momento, considera uma fonte conhecedora do processo ao Observador: se a presidência do hospital não tivesse instaurado um processo interno, ou se quem o estivesse a conduzir não fosse isento, a atuação da IGAS seria a mesma da que está em desenvolvimento neste momento — abrir uma inspeção ou um inquérito e destacar um perito do Serviço Nacional de Saúde (SNS), independente do caso, para emitir um parecer sobre ele — é este o entendimento dentro daquela inspeção.
Denunciante é ex-diretor do serviço e tinha sido acusado de assédio laboral
Como avançou o Expresso esta sexta-feira e confirmou o Observador junto de fonte oficial do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, o conselho de administração recebeu por email uma denúncia relativa a “alegados indícios de más práticas no seu Serviço de Cirurgia Geral”. O documento a que aquele jornal teve acesso afirma que vários doentes operados no Amadora-Sintra — a notícia fala de 22, mas o Observador confirmou que apenas 18 estão sob investigação — “morreram ou ficaram mutilados” como resultado de uma “prestação de cuidados ao doente cirúrgico que não coincide com a legis artis”.
A denúncia — que, tal como o próprio autor admite, “não se centra num médico em particular”, por se tratar de uma “situação sistémica” — menciona o caso de um utente na casa dos 60 anos que morreu “exsanguinado, com perto de 15 transfusões” depois de ter sido submetido a uma operação ao baço apesar de não ter anteriormente qualquer indicação para a realizar. Outro caso, também de uma pessoa com cerca de 60 anos, refere-se a uma operação ao pâncreas por suspeitas de um tumor que, afinal, não existia.
Outras queixas dizem respeito a um “doente que fez radioterapia e não tinha tumor”, outro que “acaba por morrer com peritonite por lesão do intestino, tratada por nova cirurgia que só aconteceu vários dias depois de ser evidente por análises que algo não estava bem” e de um utente que foi operado para retirar um abcesso do fígado, mas que foi “reinternado pouco tempo depois em choque sético gravíssimo, com necessidade de cirurgia emergente e cuidados intensivos”.
Na origem da denúncia em que surgem estas histórias está o ex-diretor do serviço de cirurgia geral, Vítor Nunes, que apresentou a demissão do cargo em fevereiro do ano passado após ter sido acusado por alguns profissionais de saúde da equipa de assédio laboral. Ao que o Observador apurou, o conselho de administração quis manter Vítor Nunes em funções até ao término do inquérito interno instaurado após a comunicação dessas queixas, mas o cirurgião insistiu na saída. Continuou, no entanto, a integrar a equipa de cirurgiões, mas agora como médico. E a investigação foi arquivada por falta de provas sobre a prática desses atos.
Dezassete dos casos que Vítor Nunes descreveu foram enviados ao conselho de administração em outubro e os restantes no fim de novembro. Nenhuma das queixas se refere a alegadas complicações ocorridas quando Vítor Nunes ainda era o diretor de serviço. Todas dizem respeito a casos clínicos acompanhados no Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca desde fevereiro do ano passado, quando já havia um novo diretor de serviço em funções.
Trata-se de Paulo Fernando Lopes Alves, que saiu do Centro Hospitalar de Leiria — onde já tinha completado o internato geral e o da especialidade — e entrou no Amadora-Sintra através de um concurso público. Quando Paulo Alves entrou em funções, Vítor Nunes abriu um processo colocando em causa a nomeação do novo diretor de serviço, afirmando que o concurso não tinha seguido os trâmites legais — uma tese que foi recusada pelas autoridades legais.
O Observador contactou Vítor Nunes para prestar declarações sobre o caso, mas o médico não quis comentar as notícias neste momento.
“Quanto mais depressa for esclarecido, melhor”, diz bastonário
Num vídeo enviado às redações esta sexta-feira, Ana Valverde, diretora clínica do hospital, já tinha confirmado que o autor da denúncia era o ex-diretor do serviço de cirurgia e assegurou que, “se houve erro” em algum dos casos denunciados por Vítor Nunes, ele “não será ignorado” e será levado “às últimas consequências”: “As investigações estão em curso, feitas com rigor e independência, sob a responsabilidade de um perito nomeado pelo Colégio da Especialidade da Ordem dos Médicos. Muito em breve serão finalizadas e as conclusões comunicadas às entidades competentes”.
“Esta denúncia foi encarada com a correspondente responsabilidade e seriedade. De imediato foram desenvolvidas diligências e instaurado um processo de inquérito para apurar a verdade dos factos e as responsabilidades”, asseverou Ana Valverde, que diz continuar a manter a confiança em todos os profissionais do Amadora-Sintra, “quer do serviço de cirurgia geral, quer dos restantes serviços”: “Zelam pela segurança e qualidade dos cuidados que prestam”.
Numa nota publicada entretanto no site do hospital, fonte oficial garante aos utentes que “eventuais práticas clínicas questionáveis são tratadas com a seriedade que merecem, não colocando em causa o bom trabalho que os profissionais de saúde de todos os serviços do Hospital Fernando Fonseca fazem todos os dias”: “Não podemos, por isso, aceitar que um número muito reduzido de alegados casos sob escrutínio venha colocar uma sombra sobre o trabalho realizado pela instituição e pelos seus profissionais. Afirmamos, de forma muito clara e inequívoca, que o hospital existe para servir e prestar os melhores cuidados de saúde à população dos concelhos da Amadora e de Sintra. Esse é o seu compromisso”.
Ao Público, o Ministério da Saúde disse estar em contacto com a administração do Amadora-Sintra “no âmbito das suas competências e face à informação recebida, seguiu os procedimentos habituais para este tipo de situação”: “Nesse sentido, encontram-se a decorrer processos de inquérito nas instâncias próprias, para total esclarecimento dos factos”. Mas que “manifesta confiança total na segurança dos cuidados de saúde prestados no Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca”.
Más práticas no Amadora-Sintra. “Imagine a perda de confiança”
Em declarações à Rádio Observador esta tarde, Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, comentou que “esta dúvida — se aconteceu aquilo que foi relatado ou não, se foi mesmo assim ou mais ou menos –, fica nas pessoas e é péssimo, uma quebra de confiança”. O médico explica que este é “um processo complexo”, que envolve “vários níveis de responsabilidade”: “Responsabilidade disciplinar, violação das boas práticas, eventualmente negligência”, sublinha o bastonário: “E terá responsabilidade civil e penal. Quanto mais depressa for esclarecido, melhor para todos nós”.
O Amadora-Sintra é o hospital de referência que serve maior maior população no país: são cerca de 650 mil pessoas. De acordo com a unidade, ao longo do ano passado, realizou-se uma média de 49 cirurgias por dia, num total próximo das 18 mil intervenções.