Jaime Subtil trabalhou toda a vida para o Olímpico do Montijo como marcador de campo, nos intervalos do trabalho na bomba de gasolina. “Uma vez, o massagista que trabalhava com o Futre viu-me a acartar os baldes de cal e perguntou ‘Já marcaste o campo todo?’ Não acreditava que eu tivesse feito aquilo numa hora e pouco”, conta, orgulhoso, o homem de 83 anos. O antigo marcador de campo gosta de ir regularmente à Tertúlia O Aldeano para falar das antigas glórias, mesmo tendo acabado de costas voltadas com o clube — “até me riscaram de sócio”, queixa-se. “Bola, para mim, agora só o Benfica”, garante, abanando a cabeça.
O mesmo não podem dizer os outros fregueses do café. Benfica, sim, mas também Barcelona, Premier League, o que for. E o Olímpico, é claro. É por isso que a conversa do dia nesta associação do Montijo é apenas uma: o jogo do último domingo com o Vitória de Setúbal B, que teve confusão em campo e acabou com disparos para o ar por parte da polícia. “Faroeste” é a palavra mais usada por todos nas ruas da cidade.
Todos têm algo a dizer, mas nenhum se quer identificar ou ser fotografado. Nem mesmo Vítor Silva (nome fictício), que costuma acompanhar a claque e que estava no estádio Campo da Liberdade no dia do jogo de que todos falam: “Eu vou à bola para me divertir, mas parece que nós, na claque, é que somos os culpados de tudo”, lamenta-se em conversa com o Observador, na sua pausa de almoço.
Entre um café e uma mini, todos os que por ali passam queixam-se da má imagem com que ficaram os adeptos do clube depois das imagens de vídeo amador terem passado até à exaustão nas televisões. Os vídeos deixam claro que, no final da partida (que ficou empatada a zeros), houve trocas de argumentos, insultos, empurrões e uma confusão tal que terminou com agentes da polícia a dispararem para o ar.
Os adeptos do Olímpico focam-se sempre neste último ponto: “Ainda no sábado à noite houve facadas aqui num bar do Montijo. A polícia foi lá. Não se ouviram tiros nenhuns. E agora ali temos tiros e até uma arma apontada a um jogador”, diz Vítor. “Ele ficou pálido, não sabia o que fazer à vida dele. E, com a confusão, até houve crianças a saltar para dentro da tribuna da rádio para se esconderem.”
Rosalina, dona da Tertúlia, concorda: “O disparo podia ter atingido alguém, se houvesse um empurrão, por exemplo. Até uma criança, veja lá!”, comenta. Outra cliente, mais jovem, também se queixa: “Querem proibir as crianças de ir à tourada e na tourada não há tiros. Agora na bola, pelos vistos, há…”
Clubes falam em ação “empolada” pela polícia. PSP diz que bastões não estavam a ser suficientes
O clima é de indignação com a atuação policial e tudo se complicou depois de ter sido divulgado o comunicado da PSP, que fala em “agressões entre diversos cidadãos que participavam no evento desportivo, incluindo adeptos das duas equipas, que invadiram o campo”. Vítor, que estava lá, garante que nada disso se passou: “Quando o jogo acabou, o treinador do Vitória foi cumprimentar os jogadores da nossa equipa. Há quem diga que ele cuspiu, eu não sei. Sei é que aquilo se tornou numa confusão num instante, mas só dentro do campo”, assegura. Os adeptos, diz, ficaram nas bancadas.
Versão corroborada por Hugo Pacheco, diretor desportivo do clube: “Não houve adeptos dentro do campo, apenas membros do nosso staff”, afirma na entrevista que aceitou dar ao Observador, quebrando o dia de folga. “Talvez por não estarem identificados possa ter havido essa confusão por parte da polícia”, acrescenta.
O diretor desportivo, que estava presente, diz não ter orgulho na situação, mas considera que o caso atingiu “proporções demasiado grandes”: “Nós assumimos as nossas responsabilidades. Sabemos que não estivemos bem a reagir às provocações, temos de ter mais sangue frio”, afirma, antes de avançar que esta terça-feira haverá uma “conversa” com os jogadores e possíveis ações disciplinares. “Mas sinto que a situação extrapolou por todas as três partes envolvidas: os dois clubes e a polícia. Sobretudo com os tiros para o ar.”
Na origem do problema terá estado um desentendimento entre um avançado do Olímpico e um defesa do Vitória durante o jogo. O “desaguisado”, como diz Hugo Pacheco, nem escalou durante o jogo. Foi só no final da partida que tudo se complicou, quando o treinador do Vitória, Paulo Martins, cumprimentou o jogador em questão. Este terá feito críticas e a situação aqueceu. “As imagens mostram o que aconteceu: o nosso adjunto foi pedir justificações ao treinador do Vitória”, admite Hugo Pacheco. “Houve empurrões e, infelizmente, criou-se a confusão habitual que acontece nestas situações”, diz o dirigente desportivo, que ressalta que no final de um jogo as “emoções estão à flor da pele”.
O treinador da equipa, Marco Bicho, também já se pronunciou publicamente. Em declarações ao Record, deixou críticas à atuação da PSP, que definiu como “impensável e inqualificável”. Já o técnico do Vitória B, Paulo Martins, tem um entendimento diferente: “Se a polícia não desse aqueles tiros para acabar a confusão, teria sido muito pior”, disse à agência Lusa.
Hugo Nascimento faz um mea culpa pela atuação de jogadores e equipa técnica do Olímpico, mas não consegue deixar de mostrar desconforto: “As imagens que vimos em nada nos orgulham”, diz. “Mas tem de haver uma dose de bom senso. Isto não acontece só no futebol distrital. Acontece no nacional, também. E aí não há tiros para o ar. Não queremos que o Olímpico seja agora o bode expiatório da violência no futebol… Não queremos ser vistos como arruaceiros“, afirma.
Uma fonte do Vitória de Setúbal ouvida pelo Observador fala também numa “situação empolada” pela atuação policial. “Não houve agressões entre os atletas e a equipa técnica, não havia nenhuma batalha campal a decorrer“, afirma, criticando também o comunicado da PSP por falar em envolvimento de adeptos: “Quase não estavam lá adeptos nossos, porque nesse dia havia um jogo importante no Bonfim.” A equipa recebia o Vizela num jogo a contar para a Taça de Portugal — partida que ditou o afastamento dos sadinos da competição.
A mesma fonte, porém, apresenta um relato ligeiramente diferente do fornecido pelo Olímpico do Montijo: a de que terá havido uma agressão nas bancadas. “Não queremos que a imagem do Montijo fique manchada por meia dúzia de energúmenos”, acrescenta a fonte sadina, sublinhando que “não há qualquer animosidade” entre os dois clubes.
Ambas as equipas já condenaram publicamente a situação e, em comunicado, dizem-se disponíveis para colaborar com as autoridades. Ainda não há consenso sobre o que aconteceu exatamente dentro do Campo da Liberdade naquele domingo e o relatório da equipa de arbitragem ainda não foi divulgado — mas uma fonte próxima garantiu ao Observador que do documento não consta nenhuma expulsão de jogadores ou membros da equipa técnica, indiciando que o árbitro não terá dado particular relevância aos desacatos no final do jogo.
Na Tertúlia O Aldeano, Vítor Silva encolhe os ombros enquanto lê o comunicado do seu clube no Facebook, onde o Olímpico garante estar disponível “para colaborar nos respetivos processos de averiguações”, quer com a Associação de Futebol de Setúbal quer com a PSP. “Eles não podem fazer muito mais, têm de colaborar…”, diz o adepto. “Mas isto já passou para as redes sociais, agora vai andar aqui tudo aos saltos”, afirma, antes de começar a ler os comentários em voz alta, a grande maioria crítica da atuação da polícia.
A PSP já confirmou oficialmente a abertura de um inquérito disciplinar “para averiguar se os recursos a arma de fogo cumpriram com a legislação e regulamentação interna aplicáveis”.
Em declarações ao Observador, o porta-voz da PSP recusou comentar o recurso aos disparos pelo facto de estar em curso uma investigação interna. Mas lembra que tal só aconteceu na sequência de um “crescendo” da situação, depois de terem sido usados bastões para separar os grupos em conflito, sem o resultado esperado: “O que presidiu sempre à intervenção da polícia foi conseguir separar os grupos; e vê-se que só a presença da polícia entre grupos não surtiu efeito, o recurso ao bastão não surtiu efeitos e nota-se um crescendo de pessoas“, afirmou o intendente Nuno Carocha. “Os polícias não poderiam ficar à espera de que a situação assumisse maior gravidade, com ferimentos”, resume.
Clima de tensão entre claque do Olímpico e PSP já dura há semanas
As críticas à atuação da PSP no Montijo sobem particularmente de tom por surgirem na sequência de semanas tensas. Desde o início da época que a claque do Olímpico do Montijo se tem vindo a queixar do policiamento feito nos jogos em casa, que acusa de ser particularmente apertado. “Têm-se queixado de que se sentem reprimidos, sim”, confirma Hugo Nascimento. O diretor desportivo sublinha que, com exceção de um incidente num jogo contra o rival local Alcochetense, em 2017, nunca assistiu a quaisquer episódios de violência relacionados com a claque: “Nada a apontar à claque. O Montijo é uma cidade do futebol e o futebol é um sítio de paixões”, resume.
A paixão não impediu o grupo Orgulho Aldeano de suspender o apoio à equipa nos jogos em casa. A decisão foi anunciada no Facebook do grupo no dia 5 de outubro: “O Campo da Liberdade, que em tempos já foi a nossa casa, onde éramos bem vindos e onde nos podíamos encontrar com amigos e desfrutar de tardes de futebol, já não existe”, pode ler-se na publicação onde é dito que a claque passará a apoiar a equipa de forma organizada “apenas nos jogos fora”, para não “prejudicar o clube” nem “causar multas desnecessárias”.
Ao Observador, um membro próximo da claque explica que a decisão foi tomada na sequência dos últimos jogos no Campo da Liberdade. Os membros do Orgulho Aldeano dizem-se “acossados” pela PSP e queixam-se de revistas apertadas e exigências de certificado de vacinação contra a Covid-19 — apesar de este só ser obrigatório em estádios ao ar livre com lotação acima das mil pessoas. “Na outra semana, até o meu filho de sete anos queriam revistar, achavam que ele levava petardos”, diz o mesmo adepto. “Quando vamos para fora não pagamos bilhete, não pedem certificado, nada. E corre tudo bem. Aqui é um problema.”
No meio do clima de tensão entre os adeptos locais e as autoridades, todos temem pelo que possa vir a acontecer nos próximos jogos, se for aplicado algum castigo ao Olímpico, como um jogo à porta fechada. “Ainda por cima, o próximo jogo em casa é com o Alcochetense…”, comenta-se nas mesas da Tertúlia, em referência ao grande rival da zona.
Vítor Silva já antevê um cenário complicado: “Os velhos não vão porque têm juízo. Mas os miúdos hão de ir para andar à batatada. Se o jogo for à porta fechada, pior ainda”, diz, antes de deixar um aviso: “Levem o capacete das obras.” Por causa das pedradas, entenda-se. Jaime Subtil — um dos adeptos que não tenciona aproximar-se do Campo da Liberdade nesse dia — acrescenta que pedradas entre miúdos ao pé do campo sempre houve: “Uma vez, em Almada, até tivemos de nos esconder atrás de umas azinheiras, as pedras voavam”, comenta, entre risos.
“É futebol”, dizem todos no café, encolhendo os ombros. “Os insultos aos árbitros fazem parte” e “os bate-boca no final dos jogos” também, dizem. Nada que não seja esquecido com “umas cervejas no final, em bom ambiente”, garantem — “Ainda na semana passada o capitão esteve a pagar uma rodada à claque e ao pessoal da outra equipa”, conta Vítor.
Subtil concorda — ou não passasse o dia entre cuidar do seu pombal e ir dar dois dedos de conversa ao Aldeano. Mas, do alto dos seus 83 anos, não quer apontar tantos dedos à polícia como os mais novos: “Acho que eles tiveram medo, não queriam que aquilo alastrasse para as bancadas…”, confessa em voz baixa. “Mas o pior é para nós. Já temos fama de desordeiros e isto só piora tudo.“