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Este texto foi inicialmente publicado a 24 de junho de 2022 e é agora republicado de forma adaptada a 16 de fevereiro de 2024 devido à morte de Alexei Navalny.
Mais de oito horas por dia em frente à televisão. É assim que Alexei Navalny passa o tempo ao longo dos três últimos meses. “Ler, escrever ou qualquer outra coisa é proibido. Temos de nos sentar numa cadeira e ver televisão”, descreveu o próprio na primeira entrevista que concedeu desde que começou a cumprir pena na colónia penal número 2, alguns quilómetros a leste de Moscovo, em março de 2021.
Ou, melhor dizendo, era assim que Navalny passava os dias nas primeiras semanas em que esteve a cumprir pena. Isto porque, a certa altura, os advogados de Navalny fizeram o alerta: o seu cliente já não estava na colónia número 2 e não sabiam do seu paradeiro. As autoridades russas acabaram por confirmar que o opositor mais popular de Vladimir Putin tinha sido transferido para a prisão de alta segurança de Melekhovo. E o próprio confirmou-o nos dias seguintes, com humor: “Acho que nunca vou ser um prisioneiro reeducado. Só estou há uma semana na minha nova e acolhedora prisão de alta segurança e já recebi uma ‘reprimenda’”, escreveu na sua conta de Twitter, que é atualizada pela equipa com as mensagens que Navalny lhes transmite através dos advogados.
1/9 I guess I'm never going to become a reformed prisoner ????
I've only spent a week in my new cozy high-security prison, and I've already received a "reprimand by the rights of the head of the institution".
— Alexey Navalny (@navalny) June 21, 2022
A transferência para Melekhovo fez soar os alarmes junto dos seus aliados — os rumores sobre as péssimas condições de segurança e as “mortes acidentais” naquela prisão são muitos. Já há um mês que Navalny ouvia dizer que podia ir ali parar. “Dizem que quando googlamos ‘Melekhovo’ há histórias de prisioneiros a quem arrancam as unhas. Bem, então terei um motivo para usar um emoji da moda”, escreveu o político em maio, na sua conta de Instagram, pontuando a publicação com um emoji de unhas a serem pintadas.
Desde então, a dança repetiu-se várias vezes. Navalny “desaparecia” do sistema e causava preocupação a família e amigos. Dias depois, reaparecia numa prisão com segurança ainda mais apertada do que a anterior. Até que, esta sexta-feira, o destino que eles temiam se cumpriu: os serviços prisionais anunciaram que o recluso morreu. “Navalny sentiu-se mal depois de um passeio e perdeu a consciência quase de imediato”, anunciaram.
O humor e o uso inteligente das redes sociais eram armas habituais de Navalny, até perante os cenários mais assustadores. E foram também parte das razões pelas quais este antigo advogado se tornou um dos opositores de Putin mais populares em toda a Rússia. “Ele tem aquilo a que chamamos carisma”, resume ao Observador Sergei Guriev, amigo próximo do político, atualmente exilado em França. “É corajoso e compromete-se a sério, vai até ao fim. Pode não ter sido ainda bem sucedido — afinal, Putin ainda está no poder —, mas nunca desiste.”
Nem todos, porém, têm palavras tão elogiosas para este homem. Há quem o ache arrogante e demasiado ambicioso, inclusivamente dentro da própria oposição russa. As suas posições no passado, com proximidade a nacionalistas e vídeos de caráter racista, lançam dúvidas a muitos sobre o seu compromisso com os valores democráticos e sobre a sua coerência ideológica. “Navalny é um populista”, diz sem rodeios ao Observador Alexey Sakhanin, opositor da Frente de Esquerda russa que liderou protestos ao lado Navalny em 2011, a partir de Moscovo. “Mas quero ser muito claro: o que se passa com ele neste momento é um crime. Sou crítico dele como político, mas, ao mesmo tempo, sou totalmente contra a repressão brutal que ele está a enfrentar.”
Um ano e meio antes, o Observador traçou o perfil do opositor mais conhecido de Vladimir Putin, falando com amigos e antigos adversários. O principal inimigo dentro de portas de Vladimir Putin é uma personagem complexa, que inspira paixões e críticas ferozes. Mas, desde que Navalny foi envenenado com o agente químico novichok (segundo o próprio, por ordem deliberada do Kremlin) e condenado a uma pena de prisão efetiva (num processo denunciado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos como “politicamente motivado” ), o homem tornou-se mito. Muitos dos antigos críticos têm agora pudor em atacá-lo, numa situação em que o Kremlin parece ter puxado das armas mais pesadas para lidar com um opositor. As divisões do passado tornaram-se assim memórias distantes, que ninguém gosta de invocar sem acrescentar a seguir um “mas”.
O momento é assim apropriado para perguntar quem é este homem que pode ter levado Vladimir Putin ao extremo de o tentar assassinar? Por que razão Navalny se tornou o único rosto da oposição russa? Quais são os fantasmas do passado que ainda o assombravam? E quão grave era a situação em que se encontrava até morrer, a cumprir uma pena de nove anos numa prisão de alta segurança?
O Observador falou com várias pessoas que conhecem Navalny para tentar responder a estas e outras perguntas. E, seguindo o exemplo do próprio, olhou para a arte para procurar respostas. Quando foi condenado, Alexei Navalny resolveu citar uma das suas séries televisivas preferidas, a norte-americana The Wire: “[Na prisão] Só se cumpre dois dias. O dia em que se entra e o dia em que se sai”, disse o líder político, revelando que imprimiu a frase numa t-shirt para a levar consigo para a prisão, mas que esta foi confiscada pelo conteúdo “extremista”. Passada na cidade de Baltimore, The Wire (HBO) é um retrato sobre o submundo do tráfico de droga, o sistema policial, os corredores da política. E é, acima de tudo, um retrato sobre a corrupção de um lugar. E há palavra mais apropriada para falar do combate entre Navalny e o Kremlin do que “corrupção”?
“Essa é a cena sobre os velhos tempos: são os velhos tempos”
Slim Charles. The Wire, Temporada 4, Episódio 3 (“Home Rooms”)
Quando Yevgenia Albats conheceu Alexei Navalny, ele ainda não era o político impressionante que assusta o Kremlin. No início dos anos 2000, o advogado especializado na área do imobiliário começou a frequentar os serões organizados na casa desta jornalista — que se viria a tornar editora da edição russa do The New York Times —, que reuniam a nata da oposição russa. No meio de jornalistas, políticos, escritores e intelectuais de todo o tipo, o Navalny de 20 e tal anos parecia algo deslocado. “Alto, de ombros curvados, inadequado, com uma pequena barriga de cerveja — um ‘homem-criança’”, resumiu um antigo ativista à revista Vanity Fair.
Alguns dos presentes, contudo, notaram que havia nele qualquer coisa. “Era claro que tinha enorme potencial”, diz Sergei Guriev ao recordar-se desses tempos, quando conheceu Navalny. À semelhança de Albats, desde cedo percebeu que estava na presença de um auto-didata — Navalny, por exemplo, aprendeu sozinho a falar inglês. “Ele começou a dar-se naquele círculo mais liberal de jornalistas e políticos que, na Rússia, é conhecido como sendo uma ‘clique’”, aponta ao Observador Morvan Lallouet, investigador da Universidade de Kent e um dos autores da biografia Navalny: Putin’s Nemesis, Russia’s Future? (sem edição em português). “Isto pode ser uma das chaves que ajuda a explicar o sucesso dele: ele era ao mesmo tempo um insider e um outsider. Insider porque fazia parte daquele mundo de Moscovo; mas, ao mesmo tempo, era alguém que estava pronto para desafiar muitas das certezas e formas de agir daquelas pessoas.”
Ao contrário dos companheiros de tertúlia, Navalny não era um produto típico da Moscovo intelectual. Nascido em 1976, não cresceu na capital russa, nem estudou nas melhores universidades. Filho de um militar do Exército Vermelho e de uma contabilista, passou toda a infância em plena União Soviética a saltar de cidade em cidade, por causa do trabalho do pai. As férias de verão eram frequentemente passadas na aldeia dos avós ucranianos, perto de Chernobyl, até ao acidente nuclear em 1986.
A política era algo presente na família, mas Navalny tinha todo o tipo de influências. A avó materna admirava Estaline; a paterna (ucraniana) uma vez perguntou a um familiar se tinha cuspido no corpo de Lenine quando visitou o mausoléu.
Alexei foi sempre uma criança irrequieta. No seu blog, contou uma vez que a mãe e a avó chegaram a chatear-se por causa do seu comportamento: “Contigo, ele vai crescer a ser um reincidente”, terá a mais velha dito à mais nova.
A adolescência foi o momento em que Navalny tomou consciência pela primeira vez da política, sobretudo através de música e televisão críticas do regime soviético. “Parece-me que as minhas ideias políticas se formaram quando tinha 17 anos. E eu proclamava-as a toda a gente”, contou. Desde cedo, o jovem assumiu-se como um “liberal”, por oposição ao comunismo. Queria a economia de mercado e os ventos que sopravam do Ocidente. Quando a União Soviética ruiu, Navalny teve finalmente o seu desejo.
Os anos de 1990, liderados por Boris Yeltsin, resultaram numa transformação acelerada do país para um sistema capitalista, que deixou memórias negativas em muitos russos assolados por dificuldades económicas. Mas não para Alexei Navalny. Defensor de Yeltsin ainda hoje — com exceção do facto de este ter escolhido Vladimir Putin para seu sucessor —, o político considera que a Rússia estava no caminho correto, mas que este foi interrompido pelo atual Presidente.
Em 1999, quando Putin já estava a ser cortejado por Yeltsin, Navalny juntou-se ao Yabloko, o único partido russo que se assumia como liberal. “Era o único partido democrático com consistência que falava de ideias e não as trocava por dinheiro ou nomeações políticas”, justificou sobre a sua decisão numa entrevista, em 2011. Começava aí o seu caminho na vida pública.
“Um homem sábio não queima pontes sem ter a certeza de que consegue separar as águas”
Norman Wilson. The Wire, Temporada 4, Episódio 11 (“A New Way”)
Não demorou muito, no entanto, até que Navalny criasse anti-corpos dentro do Yabloko. Em 2006, defendeu a realização da Marcha Russa: um evento que reunia membros na sua maioria da extrema-direita, onde era habitual encontrar homens tatuados com suásticas e skinheads. Mais do que isso, Navalny participou no evento juntamente com a amiga Albats, ela própria judia. “Eu levei uma Estrela de David gigante, para poder ser vista à distância”, contou a jornalista ao Financial Times. O objetivo, garante, era o de tentar chegar a entendimentos com os nacionalistas mais radicais, para unir toda a oposição.
Mas a dúvida sobre até que ponto Navalny estava confortável com estas companhias perdurou. No ano seguinte, entrou em conflito aberto com a liderança do Yabloko e acabou por ser expulso do partido. Rapidamente se apressou a fundar um novo movimento político, a que deu o nome de NAROD, sigla em russo para Movimento Nacional de Libertação Russa. Um dos principais objetivos do grupo era a defesa da “unidade orgânica” dos antigos territórios russos que pertenceram em tempos ao Kiev Rus’ e à União Soviética — uma ideia não muito distante das defendidas mais recentemente por Vladimir Putin em alguns dos seus discursos sobre a Ucrânia. Provavelmente não por acaso, um dos membros do NAROD é Zakhar Prilepin, que recentemente esteve na Ucrânia a lutar ao lado dos separatistas pró-russos.
Também em 2007, Alexei Navalny gravou um vídeo para o NAROD que ficaria para a história. À altura com 36 anos, Navalny aparecia em frente à câmara a defender o direito de porte de arma e dava um exemplo em que esta seria útil: para exterminar “moscas e baratas”, dizia, ao mesmo tempo que as palavras eram ilustradas com imagens de homens claramente muçulmanos. Pouco tempo depois, publicaria um segundo vídeo semelhante: mascarado de dentista, dizia que as cáries estragavam os dentes saudáveis — e, uma vez mais, o vídeo era pontuado com imagens de migrantes.
Ao longo dos anos, Navalny foi confrontado com o conteúdo destes vídeos várias vezes. “Tomei uma liberdade artística”, justificou ao The Guardian. A sua tese, porém, é sempre a mesma: a de que não é racista, simplesmente defende mais controlo na imigração vinda das repúblicas da Ásia Central e do Cáucaso. Quer que seja instituído um regime de vistos de trabalho, já que, atualmente, tal não é exigido à maioria dos trabalhadores destes países. “Todo o meu nacionalismo se reduz a esta proposta, em particular para garantir o direito dos migrantes a ter uma autorização de trabalho e acesso à saúde”, chegou a dizer em 2015.
Uma antiga aliada do Yabloko, Engelina Tareyeva, considera que os vídeos são prova do racismo de Alexei Navalny: “É o homem mais perigoso da Rússia”, escreveu. Os aliados, porém, discordam. “Sim, são vídeos abertamente racistas e eu disse-lhe isso. Ele diz que já não concorda com aquilo, mas que não pode negar que os gravou”, diz Guriev. O economista — tão próximo de Navalny que o acolheu e à família na sua casa de campo em França no início da pandemia de Covid — acrescenta uma “nota pessoal” na conversa com o Observador: “Eu não sou etnicamente russo [é da Ossétia], tal como a Arbats [judia] também não é. E, tanto eu como ela, nunca assistimos a nenhuma atitude racista da parte dele, garanto-lhe.”
Alexey Sakhanin, político da Frente de Esquerda russa (oposição), tem um entendimento diferente: “A retórica nacionalista para ele foi uma ferramenta populista. Nos anos 2000, o nacionalismo radical parecia ser a única força com peso nas ruas. Portanto, Navalny aproveitou-se desse movimento, de forma cínica”, diz o adversário. “Mas, ao mesmo tempo, não podemos esquecer que ele é filho do contexto social em que cresceu, de uma classe média-alta russa. Para esta classe, os migrantes vindos destes sítios são vistos com alguma xenofobia. Ele partilha desse preconceito — mas não é um nacionalista hardcore.”
Ideia semelhante à defendida pelo académico Morvan Lallouet: “Aquelas ideias eram muito populares entre a maioria dos russos à altura, devido aos elevados níveis de imigração”, explica. “Mas dizer que foi apenas oportunismo político da parte de Navalny parece-me esticado. À altura, no blog dele, era evidente que ele tinha opiniões fortes sobre a imigração. Provavelmente foi uma mistura de convicções políticas genuínas e a atmosfera da altura.”
Um instinto para o que pode ser popular que se mantém até aos dias de hoje. Veja-se o caso da anexação da Crimeia, tema consensual entre a maioria dos russos, onde Navalny teve sempre uma posição ambígua. Dizendo-se contra a atuação de Putin, o político não defende, porém, que a península seja devolvida de imediato aos ucranianos, por considerar que neste momento tal é “impossível” na prática. “A Crimeia é alguma sandes de fiambre para ser tirada e devolvida assim?”, questionou.
Para evitar as águas turvas da geopolítica, Navalny e a sua equipa preferem focar-se nas questões de política interna. Nos últimos anos e, com a ajuda do economista Guriev, o russo tem afinado o seu programa político. Desde 2018 que inclui medidas como o aumento do salário mínimo nacional para os 25 mil rublos (cerca de 450 euros). “Ele moveu-se para a esquerda, eu diria que hoje em dia ele é um político de centro-esquerda”, define Guriev, à semelhança de vários dos colaboradores de Navalny, que o tentam encaixar atualmente na família social-democrata europeia nas múltiplas entrevistas que dão.
O próprio, porém, é mais cauteloso. “Dizem-me que me inclinei para a esquerda só porque apoio o movimento sindical”, afirmou em entrevista à Der Spiegel já em 2020. “O meu único objetivo é que a Rússia siga o caminho europeu do desenvolvimento. Não vejo qualquer contradição em promover os sindicatos e, ao mesmo tempo, exigir um visto de entrada aos migrantes da Ásia Central.”
Esquerda ou direita, pouco importa para Navalny. E talvez seja essa mesma indefinição que ajudou a popularizá-lo, tornando-o capaz de unir descontentes de vários quadrantes. Como resumiu David Clark, antigo conselheiro do ministério dos Negócios Estrangeiros britânico, “é precisamente isso que o torna tão perigoso para o Kremlin”. “Navalny é um fenómeno autenticamente russo”, disse.
“Meu, o dinheiro não tem donos. Só tem gastadores”
Omar Little. The Wire, Temporada 4, Episódio 4 (“Refugees”)
Só há um tema que é constante em toda a carreira política de Alexei Navalny: a corrupção. O jovem licenciado em Direito e que fez depois um curso sobre Ativos e Bolsa começou a vida profissional a trabalhar num banco. Seguiu-se depois o trabalho no ramo imobiliário. Ao mesmo tempo, começou a investir na bolsa e a fazer algum dinheiro. E, com a quantia que foi acumulando, decidiu pô-la a favor do ativismo político.
“O Alexei percebeu que, em vez de se limitar a ganhar dinheiro, podia usá-lo como ferramenta política”, resume Sergei Guriev. A estratégia era simples: comprar ações de uma empresa pública num valor mínimo. Depois, investigar como o dinheiro da empresa era gasto. Por fim, ir a uma reunião de acionistas e exigir respostas, confrontando os gestores em público. Guriev ajudou-o numa das suas primeiras investigações, no VTB. À altura, o economista estava no Conselho de Administração do banco e Navalny contactou-o: “Devíamos trabalhar juntos”, disse-lhe. Juntos investigaram e acabaram a confrontar a administração do banco com desvios de dinheiro suspeitos. Foi uma das primeiras grandes investigações do ativista Navalny.
Foi também nessa altura que Luke Harding ouviu falar de Navalny pela primeira vez. À altura correspondente do The Guardian em Moscovo, o jornalista começou a fazer algum trabalho de investigação sobre as origens do dinheiro de Vladimir Putin e não tardou a cruzar-se com o trabalho do ativista. “Era impressionante, porque ele estava a investigar o mesmo que eu: a corrupção, a relação entre o poder e as empresas, os contratos públicos… Eram temas muito interessantes”, analisa o jornalista em conversa com o Observador. “Foi aí que ouvi falar do Navalny pela primeira vez. E foi aí que comecei a ser assediado pelo FSB [serviços secretos russos]. Tornou-se claro que há assuntos sobre os quais era mais sensato não escrever: o dinheiro de Putin é um deles.”
Mas Navalny continuou. Em finais de 2010, lançou um site, o RosPil, onde partilhava os resultados das suas investigações. Ao mesmo tempo, embora já fora do Yabloko, continuava envolvido nos movimentos da oposição política. No ano seguinte, rebentariam as manifestações que ficaram conhecidas como os protestos da Praça Bolotnaya, que uniram vários líderes da oposição, incluindo Navalny. Foi aí que o auto-assumido liberal deu pela primeira vez nas vistas, ao conseguir colocar grande parte da multidão a entoar o slogan que criou para descrever o Rússia Unida, partido de Vladimir Putin: “Partido dos patifes e ladrões”. No pico dos protestos, Navalny fez capa da edição russa da revista Esquire: “A revolução é inevitável, simplesmente porque a maioria das pessoas entende que o sistema está errado”, disse na entrevista.
O investigador Morvan Lallouet não tem dúvidas de que a preocupação de Navalny com o tema é genuína — “Vê-se que ele fica verdadeiramente indignado quando fala disto” —, mas alerta que há também ali um olho de político. “Ele identificou este tema como um tema que une as pessoas.” De esquerda ou de direita, é fácil colocar eleitores de acordo neste tema. E, como extra, Navalny passou a abordá-lo de forma pedagógica, descomplicada… e com humor.
“O blog dele é muito bem escrito, ele tem um estilo próprio. E depois usa memes, imagens, gráficos, uma linguagem engraçada e irónica. Isto atraiu muita gente”, resume o biógrafo. “Quando o Youtube se tornou popular na Rússia, ele transferiu esse mesmo estilo para os vídeos. De repente, vídeos com o tema ‘Este tipo desviou milhões’ tinham milhares de visualizações.” Foi o caso de “Não lhe chamem ‘Dimon’”, uma investigação à fortuna e bens de Dmitry Medvedev, que à altura (2017) ocupava o cargo de primeiro-ministro. Os iates, as vinhas, um palácio, tudo captado em imagens com a ajuda de um drone. Como resultado, Navalny conseguiu convocar milhares de pessoas para manifestações nas ruas. Com a ajuda da Fundação Anti-Corrupção (FKB), que criou entretanto, e da equipa que foi contratando, os vídeos foram-se tornando mais e mais profissionais.
O estilo de comunicação de Navalny, aplicado a um tema tão complexo como a corrupção, desde cedo começou a atrair seguidores. Expulso do país em 2011, o jornalista Luke Harding não quis abandonar a Rússia sem antes conhecer pessoalmente o ativista. “Ali estávamos nós a falar de esquemas de desvio de dinheiro e ele era um génio a comunicar. Tinha um talento de pedagogo, conseguia explicar coisas muito complicadas de forma muito interessante”, conta sobre esse encontro. Rapidamente, Harding percebeu que Navalny se iria destacar entre as restantes figuras de uma oposição “dividida, marginalizada e deprimida”.
“Ele era inteligente, alto, bonito e tinha uma certa ginga, um certo dinamismo. Colocava questões acertadas: como é que os amigos de Putin são tão ricos quando há partes do país onde nem sequer há estradas?”, ilustra o jornalista. “Ele é o mais próximo que os russos já tiveram de um político como os que temos no Ocidente. Um político que consegue discutir, debater, construir um argumento e até gozar.”
Para isso resultar, nada como aplicar estes talentos à discussão sobre a corrupção. Se o tema já é popular em qualquer lado, na Rússia é verdadeiramente transversal a toda a sociedade. Como resumiu a jornalista Anne Applebaum, “a Rússia contemporânea é uma sociedade materialista e não-ideológica”. “É pouco surpreendente que o primeiro movimento verdadeiro de oposição a ter sucesso tenha adotado essa mesma atitude”.
“Neste estado, há uma linha ténue entre os cartazes de campanha e as fotos que se tiram na esquadra”
Ervin Burrell. The Wire, Temporada 1, Episódio 7 (“One Arrest”)
Não tardou até que Alexei Navalny despertasse a atenção do Kremlin. O Presidente, porém, nunca pronunciava o seu nome. “Esse senhor”, “essa pobre amostra de político”, “a personagem de que fala” são todas expressões que Putin usou ao longo dos tempos sobre ele. Um hábito que outro político da oposição e amigo de Navalny, Ilya Yashin, classifica como tendo algo de “quase místico”: “É quase como um ritual ou uma superstição, cuspir três vezes por cima do ombro ou não atravessar a rua depois de ver um gato preto. ‘Se não disser o nome de Navalny em voz alta talvez ele não seja tão assustador’.”
A exceção aconteceu em 2013. Quando um jornalista perguntou a Putin se não pronunciava o nome de Navalny propositadamente, o Presidente invocou-o uma única vez: “Não, porquê? Alexei Navalny é um dos líderes do movimento da oposição”, respondeu simplesmente. Nesse mesmo ano, o líder da oposição conseguiria um dos feitos mais impressionantes de toda a sua carreira, ao concorrer às eleições para a Câmara de Moscovo e obter 27,2% dos votos. Impressionante por duas razões: por um lado, porque a prática de fraude eleitoral é comum na Rússia, o que significa que Navalny pode ter tido um resultado de facto superior; por outro, porque o resultado foi obtido sem qualquer acesso aos media tradicionais.
Não é apenas Putin que não pronuncia o nome de Navalny. Também na televisão russa — o meio de comunicação consumido pela larga maioria da população — ele raramente é invocado. Veja-se o exemplo dado por Yulia Pankratova, pivô do Canal 1, ao jornalista Joshua Yaffa, da New Yorker: “Imaginemos que vou a conduzir para o trabalho e oiço na rádio que o Navalny organizou uma manifestação no dia anterior. Eu sei que não vamos passar essa notícia e pronto. Não vou ter com o meu editor e perguntar, não tenho vontade nenhuma de falar sobre isto com ele. Para quê?”
A “máquina perfeita” do Kremlin para anular os adversários de Putin
Mas se o regime não prestava atenção a Navalny em público, prestava bastante em privado. O assédio das autoridades a Navalny começou a ser feito de várias maneiras. Primeiro, no bairro de Maryino, onde vivia com a mulher Yulia e os dois filhos (Dasha e Zahar), os serviços secretos compraram um apartamento no prédio em frente do deles, para os vigiar — e Yulia começou a dizer aos amigos em tom de brincadeira que, já que o FSB seguia a filha de ambos, mais valia darem-lhe boleia da escola para casa.
Após cada manifestação, a rotina era mesma: Navalny era detido, passava uns dias na prisão, acabava libertado. A certa altura, a mulher já lhe preparava uma mala com comida, roupa e produtos de higiene antes de cada protesto, para estar preparado para os dias na esquadra. Mas em 2012, os embates com a Justiça tornaram-se mais duros. O primeiro caso foi uma acusação de ter enganado o governo regional de Kirov, que terminaria com uma pena suspensa. Em dezembro desse ano, Alexei foi condenado juntamente com o irmão Oleg por desvio de fundos da empresa francesa Yves Rocher (apesar de a empresa dizer que não teve perdas financeiras por ação dos Navalnys). O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos foi classificando os vários casos como “politicamente motivados”.
O caso Yves Rocher terminaria em 2014, com Navalny a receber uma pena suspensa, mas o irmão cumpriria uma pena efetiva de três anos e meio. Grande parte da pena foi cumprida na solitária. “O meu irmão foi preso só por ser meu irmão, ele nunca foi sequer a uma manifestação”, lamentar-se-ia Navalny. “Vou para sempre trazer isto comigo.”
Pelo meio, o ativista enfrentava ainda os ataques na rua. Em 2017, uma pessoa atirou-lhe tinta de triarilmetano, que lhe deixou a cara verde durante dias. Mas o composto tinha sido misturado com lixívia e outros químicos e acertou-lhe num olho; Navalny ficou sem visão e teve de ser operado de urgência em Espanha. Esse foi o momento em que a filha Dasha — atualmente a estudar nos Estados Unidos — diz ter tido medo pela primeira vez.
Mas Alexei Navalny não desistiu. Havia eleições presidenciais marcadas para o ano seguinte e o opositor tencionava concorrer. Em fevereiro, começou uma tour pelo país para recolher as assinaturas necessárias e ir fazendo campanha. “Foi precisamente aí que começaram a atacá-lo mais nas ruas”, recorda Sergei Guriev. “Estava a começar a tornar-se perigoso, à medida que a maioria da população o ia conhecendo.”
Navalny acabaria por ser impedido de concorrer, mas nem por isso renunciou. A sua Fundação começou a abrir escritórios por todo o país e a marca Navalny deixava de ser apenas um exclusivo da classe média e mais jovem de Moscovo e São Petersburgo. Na Sibéria, em Ekaterinburg, em Krasnodar, o nome Navalny também começava a ser pronunciado. O ativista da Frente de Esquerda Alexey Sakhanin lamenta que a equipa de Navalny tenha abandonado o resto da oposição nessa altura e começado a correr em pista própria, mas admite que a tática resultou: “Criaram uma estratégia nacional, espalharam-se por todo o país e acho que numas eleições livres já conseguiriam uns 10% do voto, o que é muito”, diz ao Observador. “Mas ninguém consegue travar o Kremlin. A estratégia colapsou.”
“Se atacas o rei, é melhor não falhares”
Omar Little. The Wire, Temporada 1, Episódio 8 (“Lessons”)
Chegados ao ano de 2020, Alexei Navalny já era, sem margem para dúvidas, o único líder da oposição a Vladimir Putin. “Sou-o não porque eu tenha banido todos os outros, mas porque é assustador ser líder da oposição”, afirmou no almoço com o Financial Times. Garry Kasparov estava no exílio. O radical de esquerda Sergei Udaltsov tinha saído da prisão pouco antes. O nacionalista Alexander Potkin estava precisamente a cumprir pena. E o histórico Boris Nemtsov tinha sido assassinado a sangue-frio, em plena Praça Vermelha.
Navalny tinha noção de que também ele podia acabar preso ou assassinado. Quem o garante é Sergei Guriev, que recorda um episódio no longínquo ano de 2012. À altura, convidou-o para falar aos seus alunos em Paris, na Sciences Po. Quando um estudante perguntou a Navalny porque é que ainda não tinha sido morto, a sua mulher, sentada na primeira fila, começou a chorar. “Ele sempre teve a consciência de que este é um trabalho perigoso”, afirma o economista.
Em 2016, numa entrevista ao Politico, Navalny especulava que talvez não tivesse sido ainda preso nem assassinado por o Kremlin temer torná-lo num “mártir”. Mas o sucesso que começou a ter a partir de 2018 tornou-o num alvo: “Tenho a certeza de que ele foi envenenado porque estava a tornar-se imparável”, resume Guriev. “É o indesejável número 1 do Kremlin.”
Tudo aconteceu em agosto de 2020. Navalny e a sua equipa vinham de uma visita à cidade de Tomsk, na Sibéria, e embarcaram num voo para Moscovo. Pouco depois de levantarem voo, o ativista sentiu-se mal. Levantou-se para ir à casa de banho, mas não conseguiu sair. Lançou gritos de dor que se ouviram por todo o avião. Mais tarde, compararia a sensação à de ser “tocado por um Dementor”, as criaturas da saga Harry Potter — “Sentes que a vida te está a deixar”.
O piloto reagiu de imediato e voltou a aterrar em Omsk. Navalny foi levado para o hospital e a sua mulher informada. Quando chegou, Yulia não conseguiu entrar no seu quarto — as autoridades exigiam que apresentasse uma certidão de casamento para o poder ver. A mulher acabou por conseguir, da mesma forma que conseguiu escrever uma carta a Putin a exigir que o marido fosse transferido para a Alemanha, para ali ser tratado. O Kremlin acedeu.
Na Alemanha, um laboratório indicaria que Alexei Navalny tinha sido envenenado com novichok — uma arma química desenvolvida pela Rússia que já tinha sido usada no ataque ao ex-espião Sergei Skripal, no Reino Unido. A chanceler alemã, Angela Merkel, confirmou que Navalny foi vítima de uma “tentativa de homicídio com um agente nervoso” e de “um crime com a intenção de o silenciar”. “O caso levanta perguntas muito sérias a que só o governo da Rússia pode — e deve — responder”, afirmou a chanceler.
Navalny, entretanto, continuava a sua recuperação no hospital. Acordou de um coma quase sem controlar movimentos e sem conseguir escrever. Pouco a pouco, com muita fisioterapia, foi recuperando. E aos poucos começou a investigar, com a ajuda de um jornalista do site Bellingcat.
Em dezembro de 2020, o Bellingcat publicou uma investigação em parceria com a CNN e a Der Spiegel que comprovava que Navalny estava a ser seguido por uma equipa do FSB especializada em substâncias de envenenamento antes do incidente em Omsk. Dias depois, o próprio Navalny divulgou um vídeo impressionante. Numa chamada telefónica com um dos agentes do FSB, Konstantin Kudryavtsev, Navalny faz-se passar por um dos chefes dos serviços secretos e leva-o a falar do seu próprio caso. Kudryavtsev afirma que foi colocado novichok na parte de dentro das calças da vítima, de forma a mais ninguém entrar em contacto com a substância.
A maioria das pessoas ouvidas pelo Observador para este trabalho não têm dúvidas, como o próprio Navalny, de que o político foi envenenado por agentes do FSB. “Acho que o Kremlin já tinha capacidade para o assassinar há muito tempo e não queria fazê-lo. Mas, a certa altura, Putin disse ‘Já chega’”, afirma Luke Harding. “Uma operação para matar o mais poderoso político da oposição não poderia ter ocorrido sem o líder saber.”
Só o opositor Alexey Sakhanin mantém algumas reservas: “Parece muito ilógico, muito estúpido”, diz este ativista, destacando o recurso a um agente químico perigoso e o facto de o ataque não ter sido bem sucedido. O vídeo da conversa de Navalny com o agente do FSB, porém, retirou-lhe a maioria das reservas. “A verdade é que desde 2014 já pouca coisa tem lógica, o envolvimento russo na Ucrânia é prova disso. Às vezes o Kremlin simplesmente faz coisas estúpidas.”
“O jogo é o mesmo, só se tornou mais feroz”
Slim Charles. The Wire, Temporada 3, Episódio 4 (“Amsterdam”)
Após o envenenamento de Navalny, um antigo amigo de quem se afastou, Oleg Kashin, escreveu um artigo no New York Times onde especulava por que razão Putin teria autorizado a sua transferência para a Alemanha. “O senhor Putin provavelmente achou que o senhor Navalny era como os outros: que entre ser preso na Rússia e ter uma vida confortável na Europa, ele escolheria a segunda hipótese. Mas o senhor Putin fez mal as contas”, escreveu o jornalista russo.
À medida que Navalny recuperava em território alemão, o último processo judicial que pendia sobre si — acusando-o de desviar fundos da sua própria organização, a FKB — continuava a decorrer. O ativista tinha na altura uma pena suspensa, mas o recurso ainda estava em cima da mesa. Após o caso novichok, regressar à Rússia poderia significar ver a pena agravada.
Amigos próximos, como o banqueiro Vladimir Ashurkov, tentariam por isso demovê-lo de regressar. Mas Alexei estava decidido: “É claro que vou regressar. Se não voltar é o resultado ideal para eles. Iam adorar ter-me como outro emigrante político”, disse à revista New Yorker, numa entrevista publicada ainda em outubro de 2020.
“Ele é uma pessoa corajosa. Sabia muito bem o risco que corria e, mesmo assim, fê-lo”, resume o antigo adversário Sakhanin. A 17 de janeiro de 2021, Alexei e a mulher Yulia aterraram no aeroporto de Sheremetyevo, em Moscovo. Assim que atravessou o controlo de passaporte, Navalny tinha à sua espera agentes da polícia, que o detiveram de imediato. O motivo? Ter falhado a sua apresentação obrigatória na esquadra enquanto cumpria pena suspensa — muito embora a razão pela qual tenha falhado tenha sido o facto de, à altura, estar em coma.
A detenção provocou dias de manifestações intensas nas ruas de várias cidades por toda a Rússia. Mas estas, reprimidas por bastões e detenções brutais pela polícia, acabaram por acalmar. Dali a oito meses, havia eleições regionais em vários pontos da Rússia e a equipa de Navalny continuava a trabalhar a todo o gás. Por um lado, a afinar a sua estratégia de SmartVoting, convencendo eleitores a votarem em qualquer partido que pudesse roubar lugares ao Rússia Unida. Por outro, a divulgar o mais recente vídeo de investigação a uma fortuna — nada mais nada menos do que a do próprio Vladimir Putin. À data de hoje, o vídeo já foi visto mais de 124 milhões de vezes.
A 2 de fevereiro, Navalny foi presente a tribunal e aproveitou o momento. “Tivemos Alexandre, o Libertador. Yaroslav, o Sábio. Agora temos Vladimir, o Envenenador de Cuecas”, disse em plena audiência. A sentença foi a esperada: pena de prisão efetiva de dois anos e meio, a que se somariam mais nove anos de cadeia no recurso. Na audiência desse mesmo recurso, já em maio de 2022, Navalny voltou a aproveitar o palco para criticar o Kremlin, desta vez a propósito da guerra na Ucrânia: “Porque estamos a combater nesta guerra? Para os forçar a fazer o quê? Acabámos de pegar em 40 milhões de pessoas e declarar: ‘São nazis!’ e começar a bombardeá-los.”
Sakhanin pensa que Navalny contava que todos estes passos desde o seu regresso poderiam levar a uma contestação tal que deitaria o governo abaixo. “Agora vemos que isso não resultou. As autoridades suprimiram ainda mais as manifestações e o movimento de Navalny foi repressivamente destruído, de forma brutal. Sei o que isso é, já passei pelo mesmo. Detenções, chantagem… As pessoas passaram a ter medo de se manifestarem. As autoridades venceram.”
A app de Navalny que quer unir a oposição russa — mas está a dividi-la
Precisamente no meio deste clima — em que até a FKB de Navalny está arrasada, com quase todos os seus dirigentes no exílio e o líder atrás das grades —, a opinião sobre Navalny entre os líderes da oposição russa começou a mudar. Em vésperas das eleições regionais, Grigory Yavlinsky, líder do antigo partido de Navalny (o Yabloko), criticou o antigo colega. Mas muitos outros discordaram, até publicamente.
A “clique” finalmente perdoava os pecados do passado a Navalny e aceitava-o. “Para muitos, ele já nem é considerado um político, é um prisioneiro político. Muitos dizem ‘Não o vou criticar, está preso. Não devemos voltar aos assuntos do passado’”, ilustra o biógrafo Morvan Lallouet. Nas ruas, durante as primeiras manifestações a pedir a sua libertação, ouvia-se uma frase repetida: “Não concordo com Navalny em tudo, mas…”, descreveu o antigo dissidente soviético Victor Davidoff. As reservas começavam a ser deixadas para trás. O grande medo do Kremlin começa a tornar-se real: Alexei Navalny tornou-se um mártir.
A cada passo que as autoridades davam, mais esse estatuto de mártir se acentuava. Com a transferência para a prisão de alta segurança de Melekhovo já neste mês de junho, os avisos dos advogados de que Navalny corre risco de vida começaram a ganhar sentido para muitos. “As prisões russas são ambientes muito duros. Isto está bem documentado: há tortura, há mortes suspeitas. É o local ideal para um político como ele desaparecer. Não temos garantia nenhuma de que não o farão”, declara o académico Lallouet.
O antigo correspondente Luke Harding — logo ele que sabe bem o que é ter a vida revistada pelos serviços secretos russos — diz mesmo que a vida de Navalny “está por um fio”. Só há um cenário, arrisca, que pode justificar que Vladimir Putin queira manter o político vivo. “Putin acha que Navalny é um agente do Ocidente. E pode querer usá-lo como moeda de troca — em troca pela reativação do Nord Stream 2, por exemplo. Sei que isto é rebuscado, mas Putin pensa assim.”
O ativista Alexei Sakharin, que também sabe o que é ser perseguido pelas autoridades russas, concorda. Navalny “está em perigo”, mas pode ser usado para tentar negociar algo com os governos ocidentais, diz. Só que, considera este político, Navalny é uma ameaça pessoal para Vladimir Putin: se por acaso houver um golpe de Estado no Kremlin, sugere Sakharin, a fação mais liberal dentro do Kremlin poderá querer colocar Navalny no poder para tentar reatar relações com o Ocidente. “Isto é uma grande ameaça para Putin e é por isso que Navalny corre um grande risco de vida neste momento”, sentencia.
Na Rússia, há neste momento uma chuva que apaga toda e qualquer fagulha de dissidência. A oposição política a Putin está dizimada, incluindo a FKB de Navalny. A guerra na Ucrânia tornou-se o grande móbil para silenciar qualquer forma de protesto. “O país é agora todo ele uma grande prisão. As pessoas são detidas por enviarem uma mensagem, por fazerem manifestações pacíficas, por levarem com elas o ‘Guerra e Paz’ do Tolstoy”, ilustra Sakharin, que, por enquanto, ainda vive em Moscovo. “Ninguém está numa situação boa aqui, neste momento. Mas o Navalny está numa ainda pior.”
Apesar disso, o ativista continuava a pedir à sua equipa que publique nas redes sociais os seus recados. Um dos últimos, a propósito da “reprimenda” que recebeu, conta uma história em pormenor: às 6h30 da manhã, Alexei Navalny foi à casa de banho da prisão barbear-se, como é habitual. Mas recebeu um aviso por “violar o código de vestuário”. “Fui lá de forma perigosa! Fui lá como um extremista, a minha t-shirt ameaça o atual governo”, escreveu, de forma jocosa, explicando que os guardas não apreciaram a t-shirt que levava vestida. Não sabemos qual era, mas podemos adivinhar qual é que Navalny gostaria de estar a usar: a que diz que na prisão “Só se cumpre dois dias. O dia em que se entra e o dia em que se sai”. Demore o tempo que demorar até ao dia da saída — seja qual for a forma como se sai.