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[Durante esta semana, o Observador viaja em reportagem pela Irlanda do Norte, pela Escócia e por Inglaterra para acompanhar uma das eleições mais decisivas na história do Reino Unido]
Hez Jamil recorda-se muito bem da única vez em que esteve com Jeremy Corbyn. Era ainda adolescente e, numa visita de estudo ao Parlamento, a sua turma foi acompanhada pelo deputado do seu círculo eleitoral, de Islington North. Hez tem hoje 38 anos, mas, tanto agora como na sua adolescência, o deputado daquele círculo continua a ser o mesmo homem: Jeremy Corbyn himself, eleito em Islington pelo Partido Trabalhista desde 1983, e agora à beira de enfrentar a eleição da sua vida. “Gostei muito dele, pareceu-me um tipo muito simples”, diz ao Observador o homem que viveu toda a vida neste bairro emblemático do norte de Londres, enquanto lhe cortam o cabelo.
“Sabe quem é que esteva sentado precisamente nesta cadeira há umas semanas?”, pergunta o empregado da barbearia. “Precisamente Jeremy Corbyn. É cliente habitual, a cada três, quatro semanas aí está ele para aparar a barba ou cortar o cabelo”, acrescenta, depois de explicar que não quer ser identificado no artigo porque “o patrão já está farto” que deem entrevistas sobre isso. “Um homem da sua gente. Gosto disso!”, atira Hez, ainda tapado com a mesma bata às riscas azuis e brancas com que Corbyn se deixou fotografar, há apenas três semanas, quando ali foi aparar a barba antes do primeiro debate contra Boris Johnson.
“Tenho uma amiga americana que viveu toda a sua vida aqui em Islington. E, há uns anos, recebeu uma carta a dizer que ia ser deportada. Ela escreveu a Corbyn, por ser o nosso deputado, a pedir ajuda. Ele foi a casa dela, pessoalmente, e ajudou-a a obter a cidadania”, conta este residente de Islington. “E, à altura, ele ainda nem sequer era líder do partido. Isto só demonstra o caráter dele. É um homem bom.”
A opinião de Hez sobre o líder dos trabalhistas parece ser geral em Islington, ou não continuasse Corbyn a ser eleito repetidamente neste círculo eleitoral. Mas também é preciso recordar que Islington, com as suas mansões vitorianas e os seus bairros sociais, sempre foi um bastião da esquerda em Londres: desde os intelectuais que vivem na porta ao lado de Tony Blair até aos mais pobres, que aqui votam sempre à esquerda, é certo e sabido que a cada noite eleitoral o círculo de Islington North fica com o vermelho do Labour e não com o azul dos tories.
[As eleições britânicas estão a ser o tema do Zoom desta semana na Rádio Observador. Pode ouvir aqui o último sobre Jeremy Corbyn e o Partido Trabalhista]
Em vésperas de eleição, contudo, Corbyn arrisca só conseguir vencer em locais como Islington, onde a sua liderança é incontestada. Está em queda na Escócia face ao SNP e em risco de perder o nordeste de Inglaterra e parte das Midlands para Boris Johnson. O contraste com o bastião trabalhista que é Islington é muito. Por aqui, também há opiniões para todos os gostos sobre Corbyn, mas uma coisa é certa: no final, pesadas as hipóteses, é no Labour que Hez e outros residentes votam.
Islington, das mansões como a de Tony Blair à esperança de vida mais baixa do país
“Islington sempre foi uma zona trabalhista, de forte imigração irlandesa. Com o tempo, passou a ser mais ocupada por funcionários públicos e outras profissões liberais, geralmente favoráveis aos trabalhistas, e agora está a atravessar um processo de gentrificação. Portanto, aqui existem três tipos de voto: o católico das classes trabalhadoras, muito pró-Labour; o dos intelectuais; e, agora, o das minorias étnicas.” O retrato é traçado ao Observador por Eunice Goes, portuguesa a viver no Reino Unido há mais de 20 anos, professora universitária na Universidade de Richmond e autora das obras The Blair Era e The Labour Party Under Ed Miliband: Trying But Failing to Renew Social Democracy. Como se não bastasse, vive em Islington. É, por isso, a pessoa ideal para explicar por que razão têm os trabalhistas tanto domínio sobre este área e que desafios enfrenta Corbyn nesta eleição que, reconhece Eunice, “não está fácil”.
O bairro é não só terreno político, mas também residencial de muitos trabalhistas de relevo. Tony Blair vive numa das mansões da zona mais a sul de Islington, zona representada em Westminster por Emily Thornberry, ministra-sombra dos Negócios Estrangeiros do Labour. Que, por sinal, também vive em Islington. Assim como os antigos líderes Ed Milliband e Neil Kinnock e vários membros do atual governo-sombra. Já para não falar que foi aqui, no famoso restaurante Granita, que Blair negociou, em tempos, com Gordon Brown a futura liderança do partido, num encontro que ficou para a História.
Guto Harri, antigo conselheiro de Boris Johnson na Câmara de Londres, ironizou sobre isso mesmo esta semana no programa da BBC Electioncast: “[O ministro-sombra para o Brexit] Keir Starmer: vive mesmo perto de Islington; [a ministra-sombra da Administração Interna] Dianne Abbott: mesmo perto de Islington; [a ministra-sombra dos Negócios Estrangeiros] Emily Thornberry: Islington. Quer dizer, o [ministro-sombra das Finanças] John McDonnell é um estrangeiro, porque vive a umas seis milhas de Islington. Acho que nunca vimos uma equipa política, de direita ou esquerda, que viesse toda de uma área tão específica.” Confrontado pelo moderador com o facto de Boris Johnson ter vivido até há pouco tempo em Islington, Guto arrumou a questão dizendo que o primeiro-ministro “não a representa, contudo”.
Tendo em conta que muita desta elite política está aqui concentrada, a par de um processo de gentrificação que tem encarecido as propriedades no bairro, não falta quem olhe com desdém para os residentes de Islington, que se tornaram quase uma caricatura de si próprios. “Sim, aqui há uma certa alergia a grandes cadeias, por exemplo. Se tentam estabelecer um Starbucks aqui, há uma pequena rebelião”, conta a professora Eunice entre risos. “É o eleitorado das Birkenstocks e da quinoa, não o podemos negar.”
Jeremy Corbyn já foi, inclusivamente, confrontado com essa crítica, em 2017, quando lhe perguntaram se fazia parte da elite de Islington: “É verdade, há pessoas em Islington que compram e bebem cappucinos todos os dias e conheço muitas delas. Mas também temos 40% das nossas crianças em situação de pobreza e também temos gente a dormir nas ruas, como em todo o país”, apontou, à altura, o líder dos trabalhistas.
Islington é, na verdade, um mundo de contrastes. “Temos a quarta maior taxa de pobreza infantil do país. Somos o 14.º bairro mais empobrecido. Um terço das nossas crianças vive em casas sobrelotadas. 40% dos idosos vivem em situação de pobreza. Temos a esperança de vida mais baixa de Londres. Temos os maiores níveis de depressão em Inglaterra”, enumerou em 2015 ao jornal Guardian Kristina Glenn, diretora da Cripplegate Foundation, uma instituição de solidariedade social de Islington. “E isso convive com um mundo onde um T1 custa meio milhão de libras e onde as rendas representam 40% do salário das pessoas. E o outro mundo está ali à frente delas: as lojas em Upper Street onde um café custa quatro libras”, resumiu.
Quatro anos depois, a situação não parece ter-se alterado. Passear pela Holloway Road, uma das ruas principais de Islington, em direção a sul, à zona de Angel, onde ficam as casas mais caras, é ir caminhando lentamente de uma zona mais empobrecida, onde há cafés locais, casas de penhores, barbearias familiares e talhos halal para uma zona de vivendas milionárias, cafés trendy e lojas de design. Tudo isto cabe em Islington.
Dos imigrantes aos jovens, a coligação arco-íris que apoia Corbyn
Shazna Bagum saiu do Bangladesh há 20 anos. É precisamente na Holloway Road que o Observador se cruza com ela, enquanto compras dois quiabos numa banca de vegetais de rua. O véu islâmico que traz na cabeça e a tez de cor escura indiciam que é imigrante. O seu inglês limitado também. Mas vive em Islington desde que chegou ao Reino Unido à procura de uma vida melhor e hoje em dia já está registada para votar. Em quem? “No Labour, claro!”, apressa-se a dizer. “Só em minha casa somos três a fazê-lo. E em casa da minha irmã, outros três. O Boris não é bom homem, só quer saber de dinheiro e vai atirar-nos a todos borda fora. O Corbyn sim, esse é que é um bom homem”, afirma sem hesitações.
Na sondagem da rua, Corbyn é sempre o mais popular por aqui. Mas Islington não pode ser tomado como amostra para o resto do país. “Jeremy Corbyn é o líder da oposição mais impopular de sempre de acordo com as sondagens”, relembra a professora Eunice Goes. “Por um lado, porque não tem uma visão moderada, é um homem claramente da ala esquerda do Labour. E tornou-se líder com muito pouca experiência de liderança, foi a vida toda um backbencher que defendeu causas que não são muito populares.”
E se alguns imigrantes, como é o caso de Shazna, veem Corbyn como o campeão das minorias, nem todos os grupos minoritários concordarão. É o caso da comunidade judaica, que tem denunciado repetidamente uma cultura anti-semita no Labour de Corbyn: “O escândalo do anti-semitismo tem prejudicado muito o partido. Não só pelo facto de Corbyn ter dito coisas ou apoiado organizações que são anti-semitas, mas, sobretudo, a forma como o partido tem tratado das queixas que recebe: tem sido sempre muito lento a reagir”, resume Eunice.
Em causa estão as várias queixas de membros do partido que dizem ter sido alvo de ataques anti-semitas ou assistido a ações anti-semitas, o que já levou a Comissão de Igualdade e Direitos Humanos a abrir uma investigação formal ao Partido Trabalhista — algo que só tinha previamente acontecido com o British National Party, de extrema-direita. “Para um partido com um historial de anti-racismo, como o Partido Trabalhista, isto tem potencial para o destruir”, avisa a académica.
Para a maioria dos residentes de Islington, contudo, isso não será problema na hora de votar em Corbyn. “São tudo tretas”, classifica Hez, sentado na cadeira da barbearia que partilha com o líder do partido. “Houve uma altura em que os tories queriam subir o salário mínimo. Agora que é o Corbyn a querer fazê-lo, de repente todos falam como se ele fosse falir a economia. Isto, na verdade, depende é tudo do jornal que se lê.”
Sofian Qarroui não podia concordar mais. O francês, que vive há três anos em Islington, não poderá ainda votar nestas eleições mas, se pudesse fazê-lo, não tinha dúvidas em apostar em Jeremy Corbyn. “Mas mesmo que pudesse, não ia fazer grande diferença: é óbvio que aqui quem ganha é o Labour”, concede com um sorriso.
Este estudante da London Metropolitan University, que fica mesmo ali no centro de Islington North, é um dos jovens entusiastas de Corbyn, a quem a imprensa britânica chama, por vezes, de Corbynistas, assim mesmo, como se dizê-lo de forma espanholada traduzisse melhor o radicalismo das ideias. “Uma vitória de Corbyn seria uma viragem para um sistema socialista em vez da política conservadora e liberal que o Reino Unido tem tido”, resume o jovem. “Acho que o facto de ele não ser moderado é bom, porque abre possibilidades.”
As estatísticas não enganam: Corbyn é popular entre os jovens, sobretudo em Londres. Tão popular que muitos preferem-no até quando comparado com outros políticos trabalhistas. De acordo com uma sondagem do YouGov, citada pelo Politico, em caso de duelo hipotético entre Corbyn e o mayor de Manchester, Andy Burnham, os jovens entre os 18 e os 24 anos preferem o líder de 70 anos (55%-45%); contra a claramente remainer Yvette Cooper, a diferença é ainda mais significativa, passando para os 70% de apoio a Corbyn.
“Todos os meus colegas pensam como eu”, aponta Sofian. “Acho que não conheço uma única pessoa que vai votar nos conservadores. Só isto mostra como pensa Londres”, resume o francês, que define Corbyn como um político que coloca “as pessoas à frente dos lucros”.
“A mobilização dos jovens em torno de Corbyn é interessante e explica-se porque as perspetivas económicas de muitos são terríveis”, resume Eunice Goes. “É a geração boomerang, muitos deles endividam-se para ir para a universidade e depois voltam para casa dos pais. Só para se perceber, a idade média de aquisição de casa no Reino Unido costumava ser ali por volta dos 25/26 anos e agora está nos 35. Já para não falar que até os preços das rendas são astronómicos.”
Significa então que iremos assistir a uma nova Corbynmania dos jovens, como aconteceu em 2017, ajudando o Partido Trabalhista a roubar à última hora a maioria absoluta a Theresa May? Não exatamente, crê a professora: “Os jovens já estiveram muito entusiasmados, mas para alguns agora há um pouco de deceção.” Por um lado, pela posição pouca clara de Corbyn face ao Brexit, quando a maioria dos jovens são a favor da manutenção na UE. Mas não só: “Falo com alguns dos meus estudantes e com membros do Momentum [grupo da sociedade civil de apoio a Corbyn] e aquilo que me dizem por vezes é que estão a fazer campanha, vão votar no Labour, mas acham o governo-sombra demasiado estalinista, demasiado velha guarda.” As posições do líder em termos de política internacional e, sobretudo, o estilo de liderança concentrada começa a incomodar a alguns.
Corbyn vencerá Islington. Mas o nordeste de Inglaterra e a Escócia podem ficar pelo caminho
No entanto, críticas à parte, o mais certo é os jovens de Islington e de outras zonas de Londres se manterem firmes no apoio a Corbyn. “O programa do Labour tinha potencial para melhorar a vida das comunidades do nordeste de Inglaterra, por exemplo. Mas a abordagem de Corbyn, na verdade, apela mais aos eleitores mais jovens e mais urbanos”, resume a professora. “A verdade é que os conservadores começam a ser mais populares junto da classe trabalhadora do que o Labour”.
Como exemplo, Eunice aponta para Dennis Skinner: um dos deputados trabalhadores mais carismáticos de sempre, ex-mineiro da ala esquerda do partido, está em risco de perder o seu lugar em Bolsover. Porquê? Numa só palavra: Brexit. Bolsover votou 70% pela saída e não se sente representada pelos trabalhistas nessa matéria, podendo mesmo virar para os conservadores esta quinta-feira. “Mais do que descontentes, as pessoas estão muito zangadas. E as zonas mais afetadas pela austeridade são normalmente as que votaram mais em força pelo Brexit.”
Em Islington, os eleitores do Labour sabem isso. “Não tenho muita esperança de que Corbyn vença”, confessa o estudante Sofian. “Mas há sempre um bocadinho de alento. Os apoiantes do Trump também não esperavam que ele vencesse, os do Brexit também não… Talvez desta vez seja ao contrário. Vou torcer por um vento de mudança — veremos se ela vem através de eleições ou de uma revolução”, atira o jovem, antes de se despedir para ir para as aulas.
Hez Jamil é menos romântico: “Oiça, eu sou um apoiante de Corbyn, mas acho que ele promete algumas coisas demasiado rebuscadas. Como dizer que quer plantar um milhão de árvores ou investir muito mais no NHS não explicando como irá pagar isso”, aponta. É uma posição partilhada por muitos eleitores mais moderados do Labour que, explica Eunice, se tornaram mais céticos com a austeridade: “Parece-lhes impossível cumprir todas aquelas medidas: internet para todos, aumento do salário mínimo, fim das propinas. Houve até um comentador que disse ‘Isto parece um calendário do advento, todos os dias abre-se uma janelinha e sai uma prenda’.”
Mas mesmo com todas as hesitações, não será isso que fará o eleitorado hardcore do Labour em zonas como Londres recuar, crê a professora. Hez confirma a tese: “Acho difícil ele conseguir investir no NHS como propõe. Mas mesmo isso é melhor do que vender o NHS, como o Boris quer fazer”, diz o cliente da barbearia Madi’s Barber Shop. “O Boris só gagueja e as pessoas acham que isso é enternecedor. Não é: é só ele a evitar responder a perguntas.”
É por isso que, esta quinta-feira, Hez votará em Corbyn. Tal como a imigrante Shazna e a sua família. E muitos jovens como Sofian, mas de nacionalidade britânica. Já para não falar dos tais consumidores de cappucinos a quatro libras que por aqui pululam. “Islington é esta mescla”, resume Eunice Goes. “Em Holloway Road tanto encontramos os cafés onde as empregadas nos tratam por love, que é uma coisa que não acontece em mais lado nenhum em Londres, como também nos cruzamos com os chamados hipsters”, descreve. “Se o Labour perdesse aqui, isso sim, era sinal de que o partido estava totalmente destruído.” O problema para Jeremy Corbyn é que o país não é todo Islington.