Noé Duchaufour-Lawrance trocou Paris por Lisboa e fez da união entre design e técnicas artesanais uma missão de vida. Uma carreira de sucesso como designer levou-o pelo mundo, mas é perto do mar e longe da agitação que se sente bem. Descobriu Portugal há 15 anos. Visitou o país por recomendação de amigos e a bienal Experimenta Design também já tinha chamado a sua atenção para Lisboa. Na altura não se falava de Portugal, era um destino desconhecido, longe da popularidade de que tem gozado nos últimos anos. Quando visitou a capital achou que a cidade tinha um semblante pesado, por outro lado, quando conheceu o Porto adorou, sentiu-se próximo da sua Bretanha natal. Mudou-se com a família em 2017 e mais tarde arrancou com o projeto Made in Situ. Tem um espaço em Lisboa que é um palco de experiências e tem percorrido o país para cruzar técnicas artesanais com projetos de design. O mais recente chama-se “Azulejos” e denuncia logo a matéria prima.
Noé ri-se e diz que quando se pensa em Portugal é inevitável pensar também em azulejos. Visitou a Viúva Lamego pela primeira vez há mais de dois anos e foi um dos primeiros espaços com que se cruzou quando andava em tour pelo país à procura de técnicas artesanais. Contudo, os azulejo deram-lhe que pensar. Sabia que queria trabalhar com eles, mas ainda não sabia como.
Havia que decidir que história esta obra ia contar. Com a sua equipa, discutiram que os azulejos espalhados pela cidade contam histórias, por isso porque não contar a do próprio Noé? Ou seja, o seu percurso da Bretanha até Lisboa com mar, porque é um elemento muito importante na sua vida. “O horizonte [no mar] permite-te pensar em liberdade. O horizonte é tão vago e tão forte que te permite projetares-te e imaginar coisas além.” Então ficou decidido: “Vamos usar a linha de costa como o fio condutor da narrativa.” E assim a obra ganhou a forma de três painéis de azulejos verticais, com cada um deles a formar uma curva e alinhados criam a ilusão de uma onda. Nos painéis está representado o mar e é possível reconhecer partes da linha de costa reais. Noé explica que é como ver a costa de cima, uma perspetiva que o Google Maps nos trouxe de novo.
Na fábrica descobriu uma coleção de azulejos em cerâmica negra de pequena produção que não era muito explorada e quando Noé decidiu trabalhar com eles, ficaram contentes. Este era também um material que lhe permitia esculpir, assumiu o papel de areia onde as ondas terminam e foi por onde começou a construir a obra. O mar resulta de camadas de cor e cozimentos com nuances de azul e um brilho cativante. Noé conta que demorou (apenas) 10 dias no total a conceber este projeto e que era muito importante para si não desapontar a Viúva Lamego. Também a moldura faz parte da história. Os azulejos estão montados sobre estruturas de madeira feitas por marceneiros com uma pequena oficina. Até 21 de outubro é possível ver a obra e marcar uma visita através do site da Made in Situ. Noé ainda não sabe o que vai acontecer às peças “Azulejos”, mas a experiência com este material vai prolongar-se para mobiliário.
Não se considera um artista, mas assume que trabalha “na fronteira entre a arte e o design”. Arte que lhe está no sangue e que o acompanha desde sempre. O pai era escultor e a mãe uma artista que também dava aulas de arte. O primeiro morreu quando Noé era muito novo. “Achei que seria interessante continuar a história.”
Depois percebeu que a escultura não era a sua arte preferida e começou a crescer o interesse pelo design. Como cresceu numa pequena vila na Bretanha na década de 1980, o design não era um tema que despertasse especial interesse. Foi a folhear os catálogos da La Redoute em casa, que se cruzou com uma coleção que o famoso designer francês Philippe Starck fez para a marca e fez-se luz — pensou: “isto é como escultura, mas também pode ser mobiliário e útil”. Num recorte que o padrasto, um cavalheiro inglês, lhe deu descobriu uma história onde a escultura e o design se encontravam na perfeição e assim aos 13 anos ficou claro que queria ser designer.
Aos 15 entrou numa escola especializada em artes e descobriu que era ali que pertencia. Percebeu cedo que não estava preparado e fartou-se de desenhar sem parar até se sentir confortável neste meio. Estudou escultura numa das quatro melhores escolas de Paris durante dois anos e passou para a melhor escola de artes decorativas da capital francesa, Les Arts Décoratifs, onde se especializou em design de mobiliário. Depois deu um salto ainda maior e em Marrocos durante um ano. Foi ali que sentiu a primeira atração pelos encantos das artes artesanais. Mas havia ainda de regressar a Paris para terminar os estudos.
Noé começou a trabalhar com um designer de interiores que o desafiou a juntar-se à sua equipa, em Londres, para participar num projeto que se adivinhava importante desde o início: o famoso restaurante Sketch, na capital britânica. As cadeiras cor de rosa e o chão em ziguezague são um sucesso no Instagram e, quanto às casas de banho, Noé reclama a autoria dos ovos gigantes que fazem as delícias dos fotógrafos amadores que por lá passam. Acabou por se revelar um bom mediador de vozes e, eventualmente, assumiu o comando das operações. Mais tarde abriu-se caminho para montar o seu próprio estúdio e começar a desenvolver os seus projetos. “Eu não tive um professor, aprendi fazendo, e por isso cometi muitos erros. O que foi, por vezes, bom e, outras vezes, muito mau.”
Foi em Paris que Noé montou o seu estúdio e o trabalho ganhou asas. Apostou forte no design de interiores, fez projetos para grandes marcas internacionais e viajava por todo o mundo, sendo responsável por 15 lojas Montblanc. Mas o trabalho também lhe trouxe alguns constrangimentos, muitas reuniões e uma vida na capital francesa que se tornou assoberbante. Hoje confessa que não é uma pessoa citadina. Na altura criou uma espécie de bolha, passava duas horas por dia num café em Paris só a desenhar. Mais do que uma disciplina de trabalho, era um momento de escape da vida diária na capital francesa, com a qual já não se sentia realizado.
Estava à espera de um projeto que lhe proporcionasse fazer uma pausa de Paris e chegou a pensar mudar-se para Barcelona. Começaram a surgir à sua volta pessoas que apostavam em basear o trabalho nos recursos ao seu redor, da comida à produção, e Noé começou a interessar-se por esta mecânica de estabelecer uma empresa no local onde estão as matérias primas e os artesãos com as técnicas e quis fazer o mesmo com o design.
Há quase seis anos, a voltar de férias em família no Brasil, passou quatro dias em Portugal para fazer kitesurf, uma outra paixão e foi então que se apaixonou de vez. “Chegámos e foi um momento perfeito na altura do Natal. Estava tudo bonito, o tempo estava ótimo, as pessoas sorriam. No dia depois de partirmos eu disse ‘Vamos viver ali’”.
A namorada de então concordou e Noé chegou ao escritório em Paris e disse: “‘Daqui a três meses já não estou aqui!’ Tinha de ser radical”. A ideia era fechar esse capítulo na sua vida, por isso terminou os projetos que tinha em mãos, mas tantos outros apareceram depois que ainda hoje mantém o estúdio a funcionar a todo o gás. “Os projetos que apareceram eram exatamente o que eu queria fazer quando estava em Paris, por isso não me queixei, era muito bom.” A equipa em Paris está focada em mobiliário de luxo e alguns projetos para marcas na área do design de interiores. Explica que fazer peças de mobiliário para pessoas com orçamento ilimitado é um projeto de sonho.
Noé e a família mudaram-se para Portugal em 2017, o ano dos terríveis incêndios que fustigaram o país e fizeram história pelo número de pessoas que perderam a vida. A família veio de avião e depois veio Noé, de carro, que acusou o choque mal atravessou a fronteira com Espanha. “Fui a sítios onde aconteceram os fogos e vi as árvores que ficaram apenas como paus espetados por todo o terreno, quase como uma paisagem lunar. É lindo, mas é terrível.” Como foi a primeira coisa que viu quando chegou a Portugal decidiu que teria de fazer um trabalho sobre isso. Também se debruçou sobre o barro negro e a cortiça queimada.
Quando se entra no nº 16 da Travessa do Rosário, em Lisboa, há um espaço muito especial que conta com uma escritório, uma galeria, uma sala de reuniões e até uma cozinha. Noé passou um ano em Portugal a pensar qual seria o seu projeto aqui. Reuniu uma equipa e acabou por nascer o projeto Made in Situ. “É uma plataforma que tenta reunir processos criativos fora do seu contexto. E a partir daí trabalhar em experiências”, explica. “Não tem só a ver com objetos e design, também pode ser uma experiência gastronómica, ou uma instalação de som massiva, como a que vamos fazer em setembro”, com o projeto “Azulejos”.
Noé gosta de trabalhar com outras pessoas, partilhar e discutir ideias. E este projeto vive dessa partilha. Ainda não fala português, mas já percebe um pouco da língua. Anda à procura artesãos e técnicas pelo país para depois pensar num projeto adequado. “Inverti o processo de criação, normalmente começa com algumas ideias e técnicas que se tem em mente e depois tenta-se encontrar a melhor pessoa” para concretizar, “aqui é diferente, eu conheço as pessoas, os materiais e as técnicas e depois tento conectá-los com os melhores projetos”. Explica que “esta foi a minha maneira de explorar Portugal e perceber este país onde estou a viver agora.”
Os artesãos assumem-se como as estrelas dos projetos. Já em França gostava de acompanhar as peças de mobiliário que o seu estúdio fazia com uma placa com o nome do artesão que tornou a peça realidade gravado. Em Portugal, conta que as pessoas com quem tem trabalhado se mostram cada vez disponíveis para os projetos que mais as desafiam. “O importante não são apenas as formas ou os objetos bonitos, mas também todo o contexto, a história por trás de cada técnica.” Entre os planos conta-se a expansão do projeto Made in Situ a outros países, por exemplo a França, sendo que os projetos feitos em Portugal são primeiro mostrados por cá e só depois voam para outras paragens. Neste momento há projetos Made in Situ que estão em exibição numa galeria em Nova Iorque.