“Estimado cliente, informamos que não aceitamos pagamentos com dinheiro!”. O aviso, rematado com ponto de exclamação, está bem visível no balcão de uma rede de padarias que já tem oito lojas na Grande Lisboa. Aqui, mesmo que apenas compre um pequeno pão, só pode pagar com cartão bancário ou MBWay – ou seja, notas e moedas não servem. Advogados ouvidos pelo Observador dizem não ser legal mas o Banco de Portugal mostra-se muito pouco incomodado. E os clientes não se queixam? “Queixam-se, sim…”, diz a funcionária de uma loja, com sotaque brasileiro – “queixam-se demaaais… mas, depois, compram mesmo assim”.
O caso das padarias Gleba, referido acima, não é o único exemplo de uma tendência que parece ser crescente. Para consumir em alguns festivais de música e cultura deste verão (como o Meo Kalorama), os pagamentos por cartão bancário também foram a regra. E no Time Out Market Lisboa, um espaço de restauração e pequeno comércio na capital, também deixou de ser possível pagar em dinheiro nos vários restaurantes que ali fazem negócio.
A empresa gestora do espaço, porém, recusa a ideia de que quem não tem cartão bancário não pode consumir naquele local e fala numa alternativa: quem só tiver dinheiro ou não quiser usar o seu cartão bancário pode comprar, à entrada, um cartão pré-pago – esse cartão custa 1,5 euros e não é possível reaver valores não utilizados.
No Meo Kalorama o cenário foi semelhante. Nos pontos de venda de bebidas e outros produtos, dentro do recinto, não havia caixas ATM [vulgarmente conhecidas como caixas multibanco] e, como se lê no site do evento, apenas foram aceites pagamentos com cartão de crédito/débito. “Para as pessoas que não tenham cartão, poderão comodamente carregar com numerário uns cartões existentes para conseguirem consumir“, pode ler-se no site (onde não era dito que este cartão, na verdade, tinha o custo de um euro).
Se em alguns países escandinavos é comum ver-se situações como estas, em lojas e restaurantes, em Portugal o fenómeno está a surgir de forma mais tímida e mais tímida também do que em outros países da zona euro onde este tema já causou muita polémica, como em França e nos Países Baixos.
A pandemia é a principal justificação que as empresas dão para esta decisão – embora não seja a única – mas foi já depois do surgimento da Covid-19 que o Banco Central Europeu (BCE) veio recordar a recomendação emitida pela Comissão Europeia em 2010 que estabelece que “os comerciantes não podem recusar pagamentos em numerário, a menos que as partes tenham acordado entre si outros meios de pagamento“.
Mais concretamente, a recomendação deixa claro que “a afixação de etiquetas ou cartazes a indicar que o comerciante recusa pagamentos em numerário, ou pagamentos em certas denominações de notas, não é suficiente“. Para que essa recusa seja aceitável, à luz da recomendação, “o comerciante tem de apresentar uma razão legítima, tal como dificuldades em assegurar suficientes reservas de numerário para dar troco aos clientes ou riscos de segurança física concretos relacionados com a presença de grandes montantes em numerário no seu estabelecimento”.
Em maio de 2021 uma responsável da Gleba (diretora comercial) respondeu a uma reclamação de um cliente no Portal da Queixa onde explicou que “numa época de pandemia, a Gleba decidiu abolir pagamentos em numerário por precaução, proteção e segurança dos nossos clientes e funcionários“.
Esta foi uma decisão tomada com “as melhores intenções”, garantia a responsável da Gleba, sustentando-se na “interpretação” dos advogados da Gleba de que “a legislação em vigor não proíbe tomar esta medida, que foi devidamente comunicada pelos nossos funcionários e está afixada na nossa padaria, visível a todos os clientes, para que possam ter esta informação antes de efetuarem a compra”.
As três razões por que a Gleba apenas aceita pagamentos com cartão
↓ Mostrar
↑ Esconder
Contactada, a Gleba explicou, por e-mail, as três principais razões por que decidiu apenas aceitar pagamentos por cartão (e MBWay):
Higiene. Em particular durante a pandemia, a utilização de cartão vs notas e moedas traz vantagens acrescidas.
Segurança. Sem dinheiro vivo em caixa, aumentamos a segurança dos nossos funcionários e clientes ao diminuirmos a probabilidade de assaltos.
Transparência, rapidez e conveniência. O pagamento via cartão previne a evasão fiscal, é mais rápido e conveniente, na medida em que não há trocos, nem enganos com os mesmos”.
Fonte oficial da empresa não deu esclarecimentos sobre a interpretação jurídica que lhe deu o respaldo para esta prática.
Advogados falam em ilegalidade. Banco de Portugal não vê problema
A interpretação dos advogados ouvidos pelo Observador não é essa. “No nosso entender, a prática da recusa dos estabelecimentos comerciais não aceitarem pagamentos em numerário é proibida“, afirma Bruno Sampaio Santos, associado coordenador da Miranda. O advogado justifica essa interpretação com aquilo que está no tratado da União Europeia, do Regulamento Nº. 974/98 de 3 de Maio de 1998 e da Recomendação da Comissão 2010/191/EU de 22 de Março de 2010 sobre o alcance e consequências do curso legal das notas e moedas em euros.
João Santos Carvalho e António de Pape, respetivamente sócio e advogado da SRS Advogados, têm uma interpretação semelhante. “O numerário é usualmente descrito (inclusivamente em publicações do Banco de Portugal) como um meio de pagamento ‘universal e de aceitação generalizada’, ou, por outras palavras, ‘de aceitação obrigatória‘ como meio de pagamento de bens e serviços”, dizem os advogados.
No entender destes advogados, excetuando as limitações pelo “princípio geral da boa fé” (como não ter moedas para dar troco, num dado momento), “não parece ser possível aos comerciantes limitar tal aceitação sem que exista uma base legal para o fazer. Ora, tal base legal não existe, em nosso entender, em Portugal“.
Sobre a recomendação de Bruxelas, que parece admitir a possibilidade de recusar notas e moedas se as “partes tiverem acordado entre si outros meios de pagamento”, os juristas da SRS Advogados dizem que estas regras “não são vinculativas e destinam-se, em primeira linha, aos Estados-membros”, pelo que “têm um alcance incerto, em particular quanto à possibilidade de virem a ser invocadas por comerciantes”.
Conclusão: “Não tendo o legislador português previsto por via de lei as exceções referidas nestas recomendações, a não aceitação de numerário fundada nas mesmas é de legalidade, no mínimo, discutível”, dizem João Santos Carvalho e António de Pape.
Questionado, o Banco de Portugal confirma que nos últimos tempos “teve conhecimento de situações pontuais de não aceitação de numerário em alguns estabelecimentos comerciais, essencialmente relatados por clientes”. “Alguns desses relatos, para além de pretenderem ver esclarecida a legalidade dessa prática, demonstravam alguma insatisfação com essa limitação nos métodos de pagamento”, salienta fonte oficial do supervisor financeiro português.
Sobre este tema, o Banco de Portugal garante estar em “permanente contacto” com as entidades europeias acerca desta matéria e admite que venha a “equacionar-se a definição de um plano de ação que vise proteger os cidadãos que utilizam o numerário como meio (quase) exclusivo de pagamento, mantendo o caráter universal desde meio de pagamento e que o distingue de todos os outros”.
“A aceitação de notas e moedas em euros, como meio de pagamento, deve ser a regra nas transações de qualquer natureza”, afirma o Banco de Portugal, acrescentando que, “de acordo com o princípio da boa-fé integrado pela garantia pública de genuinidade das notas e moedas com curso legal, o credor tem o dever de aceitar qualquer tipo de nota ou moeda, não podendo, regra geral, recusá-la“.
Porém, na prática, o Banco de Portugal demonstra não ter uma posição muito restritiva, baseando-se na recomendação da Comissão Europeia. “Eventuais recusas de notas e moedas em euros como meio de pagamento apenas podem ser fundadas na boa-fé (por exemplo, desproporcionalidade entre o valor da nota apresentada pelo devedor face ao montante devido ao credor do pagamento) ou mediante acordo das partes em usar outro meio de pagamento“.
É isso que está em causa quando se entra na padaria, se vê o letreiro e, mesmo assim, se compra o pão? O consumidor está, dessa forma, a aceitar implicitamente que seja usado outro meio de pagamento? O Banco de Portugal confirma: “Quanto ao exemplo da padaria, refira-se que, sempre que for disponibilizada, pelo comerciante, informação relativa à não aceitação de numerário como meio de pagamento, a presunção de má-fé daquele cai, não decorrendo dessa prática qualquer sanção, mas uma potencial perda de interesse contratual por parte do cliente, que terá de se dirigir a outro comerciante“.
Sem notas e moedas? “Para mim, isto é o sonho…”
A limitação no pagamento também não parece incomodar um casal de jovens clientes que estava na fila, numa outra loja da mesma rede de padarias. “Eu nunca ando com dinheiro no bolso, para mim isto é o sonho, mas percebo que a algumas pessoas possa fazer confusão”, afirma o jovem. Por outro lado, ao ver que só estava uma pessoa a servir ao balcão, numa manhã de domingo, “se fosse preciso mexer em dinheiro tinha de tirar as luvas, fazer o troco, voltar a calçar as luvas para mexer no pão… Ia atrasar muito o serviço”.
Na resposta no Portal da Queixa, a diretora comercial da Gleba acrescentava outro fator. “Ter dinheiro vivo em caixa implica a necessidade de o contar e depositar, sendo que acarreta riscos para os funcionários e empresa, como um assalto por exemplo”, explicava-se, apelando à “sensibilidade” dos clientes numa altura em que “os pagamentos por multibanco estão cada vez mais democratizados”.
Embora destaque, também, as questões higiénicas e sanitárias, fonte oficial do Time Out Market Lisboa afirma que “existem outras razões que se prendem com segurança nas lojas, assaltos, fiscalidade, transporte do dinheiro para o banco no final dos turnos e falsificação de notas“.
“A pandemia está hoje numa fase controlada, o que são ótimas notícias para todos, mas não faria sentido descontinuar uma política que protege a saúde numa altura em que devemos ainda permanecer atentos”, refere a mesma fonte, destacando também a questão da fiscalidade e o combate à evasão fiscal: “todas as operações são, assim, registadas, como é justo que aconteça“.
Em alternativa, quem entrar no Time Out Market Lisboa sem cartão bancário, apenas com notas e moedas, há um cartão que se pode comprar numa loja que fica na entrada. “O valor a carregar não é fixo: uma pessoa pode carregar exatamente o valor que vai gastar. Há quem olhe primeiro para o menu, faça as contas e depois, sim, carregue o seu cartão”, diz fonte oficial.
Todavia, o cartão não é gratuito: custa 1,50 euros e os valores lá carregados não podem ser devolvidos se não forem usados – têm um prazo de um ano para serem gastos. “A nossa experiência diz-nos que a esmagadora maioria das pessoas já tem noção do valor que quer usar na refeição principal e deixa o que sobra” para um café ou uma sobremesa. “Os estrangeiros, porque não voltam tão cedo a Portugal, optam por vezes por comprar uma pequena recordação” nas lojas que existem no espaço, acrescenta fonte oficial.
A Time Out Market Lisboa acrescenta, também, que “a decisão encontra-se plenamente justificada pelo senso comum e, claro, tem o devido respaldo jurídico“. “A desmaterialização do dinheiro é uma tendência global que oferece mais vantagens do que riscos, estando a privacidade totalmente assegurada quando se usa, por exemplo”, o tal cartão que custa 1,50 euros e que, segundo a mesma fonte, é usado apenas por um número “residual” de clientes: “A grande maioria das transações no mercado é feita com cartões de débito/crédito ou MBway”.
A gestora do espaço comercial garante ter o “devido respaldo jurídico” mas essa visão não coincide com os advogados ouvidos pelo Observador. Avaliar situações específicas como o Time Out Market ou os festivais de música teria se ser analisado caso a caso, mais em rigor, mas “tendo em conta os termos da recomendação (‘a aceitação de notas e moedas em euros como meio de pagamento deve ser a regra nas transações no comércio retalhista’) essas práticas parecem ser proibidas à luz da mesma“, diz Bruno Sampaio Santos, associado coordenador da Miranda.
O mesmo advogado acrescenta, também, que “atualmente não existem riscos sanitários que justifiquem tais práticas“. E os advogados da SRS concordam: “A invocação de ‘riscos sanitários’ para recusa de recebimento em numerário apenas me pareceria possível caso a mesma estivesse concretamente prevista em medidas de emergência ou outras aprovadas para o efeito”.
O lóbi “anti-cash“, a liberdade e a proteção dos mais vulneráveis
Esta tendência surge numa altura em que o BCE se esforça por garantir que as notas e moedas não têm os dias contados na zona euro, mesmo tendo em conta que está a ser estudada a possibilidade de ser lançado um “euro digital” – à semelhança do que foi criado na China e que também está a ser estudado nos EUA.
O numerário não vai desaparecer “num futuro previsível”, garante o BCE, desvalorizando até os riscos relacionados com a transmissão do novo coronavírus pelo manuseio de notas e moedas. “A quantidade de vírus que pode ser transferida é tão pequena que o risco de infeção é insignificante em comparação com o de outras superfícies que as pessoas tocam no dia a dia”, diz o banco central, garantindo que tem vindo a “trabalhar em estreita cooperação com laboratórios europeus para avaliar o comportamento do coronavírus em diferentes superfícies, com vista a assegurar que o manuseamento de numerário permanece o mais seguro possível”.
Vem aí o euro digital. O vírus vai matar as moedas e notas (e ameaçar os bancos)?
Mas o tema tem vindo a aquecer na Europa, nos últimos anos, até mesmo antes da pandemia – em 2016 o prestigiado economista norte-americano Kenneth Rogoff chegou a receber ameaças de morte devido ao seu livro sobre a “maldição” que considerava serem as notas e as moedas e pelos vários textos que escreveu sobre os argumentos a favor de uma sociedade sem cash.
Além dos argumentos ligados à privacidade e à liberdade, do outro lado desta barricada está um poderoso lóbi contra o dinheiro vivo, que é dinamizado pelas empresas privadas dos pagamentos, empresas que têm interesse em que as sociedades deem cada vez mais primazia às transações digitais e com cartões. A gigante norte-americana Visa, por exemplo, lançou uma espécie de concurso em que pequenos negócios, como restaurantes, foram incentivados a recusar pagamentos em dinheiro vivo – o “Cashless Challenge”.
Mas a ideia tem enfrentado resistência em alguns países europeus. Nos Países Baixos, duas grandes cadeias de distribuição – a Marqt e a Vlaamse Broodhuis – já tinham adotado uma política de pagamentos apenas em cartão a tendência alastrou-se no país, a outros operadores, quando surgiu a Covid-19. Chegou-se ao ponto de o ministro das Finanças, Wopke Hoekstra, ter feito um alerta público de que as pessoas devem ter o direito de escolher como pagar, por uma questão de liberdade e para proteger os mais vulneráveis, que podem não ter o mesmo acesso à banca ou às novas tecnologias.
O país onde as regras são mais apertadas e o discurso é mais duro, porém, é França – um dos países onde, no limite, se podem multar as empresas que não aceitem pagamentos em dinheiro. O Banco de França sublinha que, nos termos do código penal do país, “a recusa da aceitação de notas e moedas que têm curso legal em França, ao valor a que estão a circulação, é punível com coima“.