O longo processo negocial do Orçamento deixou marcas na liderança de Pedro Nuno Santos, depois de uma ofensiva directa, com o “praticamente impossível”, que acabou na negociação falhada deixando tudo no limbo, a começar pelos próprios socialistas. Na passada quinta-feira, quando o líder marcou uma declaração para as oito da noite, membros da sua própria direção foram apanhados de surpresa. E só muito poucos sabiam o que dali iria sair. Pedro Nuno é um líder que decide isolado, aconselha-se num circuito muito reduzido (quase sem os habituais pesos pesados do partido), tenta controlar tudo (até os críticos) e irrita-se com fugas.
Nestes dois meses de negociações intensas, o líder do PS foi-se aconselhando com um núcleo curto, bem menor do que a direção do partido que já não se reunia desde julho. Só no dia antes do anúncio, ao fim da tarde, é que o líder chamou o secretariado nacional do PS e nem nessa altura foi absolutamente claro sobre o que faria quanto ao dilema do ano: viabilizar ou não o Orçamento? Só na reta final, Pedro Nuno ouviu presidentes de federação, deputados e direção, quis sempre evitar o risco de uma fuga de informação durante boa parte do processo, testou lealdades, mas acabou por deixar o partido muito tempo sem discurso, entregue a si mesmo.
Na última semana, o Observador ouviu várias queixas, entre os socialistas mais chamados aos comentários na comunicação social, sobre a dificuldade em defender a posição do partido quando não se percebia exatamente qual era. Ainda esta semana um socialista comentava que normalmente “são enviadas [pelo Largo do Rato] algumas notas, principalmente dados”, para articular a mensagem, “mas há 15 dias que não há nada“. Entre dirigentes nacionais evitava-se até dar entrevistas, com o argumento de estarem “fora” do circuito da decisão.
Durante o fim de semana passado, dos congressos federativos do partido que se realizaram nos vários distritos, saíram relatos de militantes “perdidos”. “Ninguém sabe o que dizer”, comentou fonte socialista com o Observador depois desses dias. O líder passou por quatro deles (Braga, Coimbra, Porto e Lisboa), mas sem ter ainda uma posição fechada dedicou-se sobretudo a tentar conter uma eventual onda de críticas e questões sobre a sua liderança.
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Um partido “em sofrimento” que se “embrulhou” em ziguezagues
À margem da discussão — já de si divisiva — sobre o conteúdo da posição final do PS no Orçamento, alguns socialistas foram-se mostrando desconfortáveis com a própria condução do processo. Pedro Nuno Santos começou por ter a porta totalmente fechada, com um “praticamente impossível” à viabilização do OE dito logo na noite das legislativas, recusando sequer que existissem linhas vermelhas (era o que se garantia ainda em julho, nas jornadas parlamentares do partido). E passou, um mês e meio depois, para uma negociação com duas linhas vermelhas muito claras, os famosos IRS Jovem e o IRC.
Chegou a ter a líder parlamentar Alexandra Leitão a garantir, num dia, que o PS não fazia exigências sobre o formato das reuniões com o Governo, numa altura em que Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro nunca tinham tido um encontro a dois com este assunto em cima da mesa. E logo no dia seguinte o próprio líder veio exigir que a próxima reunião fosse ao mais alto nível, ou seja, queria que Montenegro o chamasse.
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Numa sexta-feira a noite, há cerca de 15 dias, o líder dizia que o PS estava “no caminho da viabilização” e louvava a transparência do processo, com reuniões públicas, logo na terça-feira seguinte rompia negociações com o primeiro-ministro, por telefone. Os representantes do partido no Parlamento encontraram-se com ele nessa mesma noite e aproveitaram o espaço deixado em aberto até então para começarem a fazer pressão. “Ao deixar-se as opiniões em aberto, expôs-se a divisão na bancada”, refere um dirigente sobre esse capítulo do processo.
Sérgio Sousa Pinto, José Luís Carneiro, Fernando Medina, Mariana Vieira da Silva, Marcos Perestrello (estes dois últimos membros da direção, mas não do núcleo de decisão) foram alguns dos nomes que falaram para pedirem a viabilização da proposta do Governo. E só passado um tempo da reunião surgiram elementos mais próximos do líder a defender abertamente o voto contra, caso de Marina Gonçalves, João Torres ou Tiago Barbosa Ribeiro. Na reunião há quem tivesse visto aí uma estratégia para evitar que daquele encontro saísse uma pressão sobre Pedro Nuno para viabilizar quando, nessa fase, a ideia era manter as duas opções em aberto. A verdade é que foram alguns dos elementos do círculo mais próximo que falaram no voto contra.
Mas nestas semanas também houve muitas críticas ao processo, não só nessa reunião, como depois, destacando-se as que se referem ao tempo que o PS levou para chegar onde chegou. “Saturou as pessoas”, referiu um deputado socialista. Outro, menos alinhado com o pedronunismo, ironiza sobre as duas razões evocadas por Pedro Nuno, ao fim de sete meses, para viabilizar o Orçamento, a proximidade com as últimas eleições e incerteza sobre um cenário político mais estável: “São surpreendentes!”. “Talvez tivesse sido positivo viabilizar sem conhecer o Orçamento”, analisa também a posteriori um dirigente que reconhece que a decisão era “complexa”, mas que o partido se “embrulhou”.
“O PS está em sofrimento, saiu do poder” e “esta passagem pela oposição pode ser longa”. O diagnóstico vem de um antigo dirigente para explicar o momento mais atribulado no partido. Quanto a Pedro Nuno Santos, vaticina: “Ou muda ou é mudado”, apontando para um passado de líderes com aparelho controlado que nem por isso foram poupados.
Ainda assim, não há conversa no PS neste momento em que não se aponte a falta de alternativa a Pedro Nuno Santos. E sobretudo a fala de oportunidade para desafiar um líder que tem apenas um ano em funções. Há críticas que começaram a fazer agora caminho mais público, mas não há vontade de desafiar um líder que mesmo esses críticos consideram ter de ser aquele que vai voltar a ir a votos em legislativas — e anteveem que aconteçam bem antes do tempo regulamentar (2028). O próprio atirou, no final da reunião da bancada parlamentar de há duas semanas, que só sai da liderança depois de ser primeiro-ministro.
De qualquer forma, a decisão da última quinta-feira acaba por serenar ânimos já que a pressão interna maior estava a surgir precisamente de quem defendia a abstenção do PS no Orçamento. O próprio já só quer passar à frente, focar-se nas autárquicas, que quer lançar até ao final do ano (tendo de molho várias figuras do partido à espera do seu timing de decisão) e que sabe que serão um teste importante à sua liderança. Isso ao mesmo tempo que procura uma plataforma “renovada” e com “sociedade civil” para preparar as tais legislativas que podem chegar antes do tempo.
Quem são os mais próximos e a diluição dos “jovens turcos”
Um dos problemas que alguns socialistas apontam a Pedro Nuno é a equipa curta de conselheiros que tem à sua volta. A direção que compôs com elementos do costismo numa prova de “continuidade com um novo impulso” (o lema que articulou com Costa na passagem de pasta), tem contado pouco, já que semanalmente junta um grupo mais restrito, numa reunião de coordenação política para ir organizando cada semana.
Desse grupo que é mais ouvido fazem parte o presidente Carlos César, a líder parlamentar Alexandra Leitão, a deputada Marina Gonçalves, os deputados António Mendonça Mendes, Pedro Delgado Alves, Francisco César e Pedro Vaz (que é também o secretário nacional para a organização) e ainda o chefe de gabinete Hernâni Loureiro — que nos últimos oito anos fez parte de gabinetes dos governos PS e foi adjunto de Pedro Nuno no Ministério das Infraestruturas e da Habitação, tendo ficado depois da saída do ministro com Marina Gonçalves na Habitação.
Na equipa que auxilia o líder trabalha também o secretário de Estado que esteve no centro da polémica indemnização a Alexandra Reis. Hugo Mendes sempre foi um elemento próximo de Pedro Nuno Santos e continua a surgir sempre na sombra do atual líder do PS. É sobretudo responsável pela preparação da argumentação do líder.
No grupo de influência mantém-se um elemento de peso da anterior direção, Carlos César — sendo a única figura com uma experiência mais aprofundada no partido (pelo número de anos em altas funções). O presidente do partido já era central na direção de António Costa e mantém uma influência importante sobre o atual líder. Nos últimos dias do processo orçamental, os carneiristas (apoiantes de José Luís Carneiro no PS) depositavam mesmo nele a esperança de poder influenciar o líder a favor da viabilização — o que é certo é que o presidente veio dos Açores à última hora para marcar presença na reunião da bancada na semana passada, quando nada o obrigava a estar presente.
César é um moderado e não só já tinha aconselhado publicamente “paciência” ao partido durante a campanha das Europeias, como na iniciativa de rentrée, a Academia Socialista, avisou que este Orçamento “nunca será” o do PS, mas o “sentido de Estado obriga” o partido a “ponderar medidas e soluções, sejam fiscais ou sociais, que tornem o Orçamento menos mau e o Governo menos perigoso”. O impulso para a negociação numa altura em que ia alta a chama do “praticamente impossível”.
Do costismo mantém também influência António Mendonça Mendes, que foi secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro Costa e que, neste processo orçamental, foi um dos elementos mais ouvidos. Já Alexandra Leitão era um crítica da liderança anterior (tinha rompido com Costa quando o anterior primeiro-ministro a preferiu ter no Parlamento, como líder da bancada, do que no Governo). É vista no partido como uma possível futura concorrente à liderança — a própria assumiu recentemente que é “uma das mulheres do PS com condições” para ser primeira-ministra. Marina Gonçalves, Francisco César, Pedro Vaz e Delgado Alves (ler mais abaixo) são os três membros da coordenação que fazem parte do grupo de Pedro Nuno Santos há anos.
Já Duarte Cordeiro, que sempre foi considerado um dos elementos mais próximos de Pedro Nuno, não está no centro da decisão. O envolvimento do seu nome em casos de justiça — foi um dos membros do anterior Governo que teve buscas em casa no âmbito da operação Influencer e também no Ministério que liderava, o do Ambiente — levou-o a afastar-se de cargos políticos. Mas tem também estado mais longe do núcleo de aconselhamento, o que tem sido notado por dirigentes mais próximos do antigo ministro. Dentro do partido a ausência da coordenação é justificada com o argumento de que nesse grupo ter de estar quem está na linha da frente no terreno para articular posições e agenda.
Cordeiro fazia parte do famoso grupo dos “jovens turcos do PS”, que minou a direção de António José Seguro. Desse grupo de Pedro Nuno para o círculo mais restrito de agora já só sobra mesmo Pedro Delgado Alves, que faz parte da coordenação e da direção da bancada (sendo mesmo visto como uma reserva para o cargo de Alexandra Leitão, caso a líder parlamentar saia do Parlamento para a corrida autárquica). João Galamba não só está fora, desde o caso Alexandra Reis, como é um recorrente crítico da liderança.
Ainda na última semana, na CNN Portugal, veio falar das “contradições do discurso do secretário-geral do PS” e como “são um bom resumo do novelo em que ele se deixou enredar nos últimos meses. Não faz grande sentido passar este tempo todo a falar de linhas vermelhas com uma dramatização que depois se torna inconsequente porque as razões invocadas para a viabilização do Orçamento podiam ter sido feitas há dois meses”, apontou. Para Galamba, Pedro Nuno “não liderou este processo e foi obrigado a improvisar e foi colocado numa situação que não era a que desejava” — o ex-ministro é da larga corrente dentro do partido que defende que o PS devia ter anunciado a abstenção na generalidade logo à cabeça, negociando depois, na especialidade.
Longe vai o tempo em que Pedro Nuno liderava o grupo de jovens turcos do PS que, no Parlamento — e também nos manifestos de apoio à reestruturação da dívida, ao lado de Francisco Louçã –, desafiavam António José Seguro. Nesse tempo, o agora líder deixou o então secretário-geral a ter de garantir que o seu partido assumia os compromissos internacionais e não alinhava pela via mais radical que chegava às páginas dos jornais pela voz dos jovens turcos. Pedro Nuno saiu mesmo da direção da bancada por divergências com “o posicionamento e a estratégia do PS”.
A gota de água foi o voto a favor do Tratado Orçamental da União Europeia, que impôs regras de disciplina financeira aos Estados-membros, na dívida e no défice, com que discordava. Mas também já tinha sido contra a famosa “abstenção violenta” que Seguro tinha aplicado ao Orçamento para 2012. Pedro Nuno queria o voto contra. Era absolutamente contra o “frentismo de centro”, como lhe chamou na abertura do congresso do partido em abril de 2013 — ainda que tenha agora anunciado a abstenção, garante que continua nesta linha de então.
PS deixa passar Orçamento, mas não volta a negociar com AD e prepara legislativas
Crispado com os críticos e irritado com fugas
Entre os seus críticos faz-se agora o paralelismo com a liderança de António José Seguro, mas não tanto pela ironia de ter um dos opositores a esse líder preso a uma abstenção no Orçamento que demonizou no passado. A razão para se apontarem semelhanças tem sobretudo a ver com a gestão interna, a sua entrega a um grupo de leais e a relação difícil com o que se diz e escreve sobre a sua liderança.
Um dos socialistas que não apoiou a sua candidatura a líder fala em “propensão autoritária“, sobretudo quando lembra a forma como o líder reagiu às posições públicas de alguns socialistas sobre o Orçamento, quando o partido ainda não tinha uma. “É preciso personalidades menos reativas” na frente política, nota outra fonte do partido estendendo também esta crítica a Luís Montenegro, na gestão do processo orçamental.
Depois da reunião da bancada parlamentar onde foi mais notória a divisão interna sobre o Orçamento, o Observador ouviu relatos de socialistas que notaram o líder muito crispado, sobretudo em relação às notícias que iam surgindo na comunicação social enquanto decorria a reunião. Pedro Nuno fez várias referências, durante o encontro com os deputados, ao que estava a sair lá para fora o que foi entendido por alguns socialistas como uma forma de constranger quem estava dentro da sala.
No seu círculo, no entanto, a descrição é outra e garante-se que a única vez em que o líder levantou o tom foi mesmo na resposta a Sérgio Sousa Pinto que tinha feito, logo a abrir, uma intervenção muito dura sobre a orientação de voto. O deputado foi um dos mais audíveis na crítica a um voto contra, pelo perigo de deixar o Chega a ser o partido que resolve a governação. O líder discorda em absoluto do argumento — e explicou-o até na declaração ao país onde anunciou o sentido de voto –, mas o que o irritou mais foi o tom usado pelo deputado (que até os menos alinhados com Pedro Nuno dizem ter sido excessivo). E, claro, que tudo tivesse saído para fora da reunião de uma bancada de que fazem parte 78 deputados.
A desconfiança tornou-se tão grande que acabou por surpreender todos — até a sua própria direção — com uma declaração ao país marcada apenas com duas horas de antecedência, para anunciar a decisão mais esperada (e menos conhecida) por todos. Não quis deixar para o início da reunião da Comissão Política Nacional desta segunda-feira, onde a decisão será votada por este órgão. E, desta vez, nem sequer ao primeiro-ministro ligou antes da declaração que fez — ao contrário do que tinha feito, neste mesmo processo, quando deu por terminada a negociação por falta de acordo entre as partes na semana anterior.