Discurso de tomada de posse do PGR
Ao ser investido no cargo de procurador-geral da República, dirijo-me a Vossa Excelência para agradecer a confiança que em mim depositou. Esta nomeação honra-me muito (…) pelo que quero aqui deixar o meu compromisso de que tudo farei – como aconteceu em cargos anteriores – para exercer esta função com elevado sentido de serviço público, dignificar a função e corresponder às expetativas que estiveram na base da minha nomeação. Recordo aqui, com especial gratidão e apreço, as visitas realizadas por Vossa Excelência ao DCIAP, em tempos difíceis, com objetivo de nos incentivar.”
As primeiras palavras de Amadeu Guerra, o oitavo procurador-geral da República do regime democrático, foram dirigidas ao Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que o nomeou por indicação do Governo, e foram um pouco além do mero cumprimento protocolar. O novo líder do Ministério Público fez questão de recordar as duas visitas que Marcelo fez ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal, então dirigido por si. A primeira ocorreu a 6 de setembro de 2016, quando Joana Marques Vidal era a procuradora-geral da República e quando o DCIAP estava a ser criticado por demorar na conclusão da Operação Marquês — que viria a ser alvo de acusação em outubro de 2017. E a segunda verificou-se a 25 de outubro de 2018 — poucos dias após Lucília Gago ter tomado posse como sucessora de Joan Marques Vidal e num contexto em que havia o receio de que o poder político quisesse controlar a investigação criminal. Curiosamente, o Observador publicava uma entrevista com Amadeu Guerra em que o então diretor do DCIAP dizia que “não é possível um retrocesso no combate à corrupção”.
O meu reconhecimento ao senhor primeiro-ministro pela sua perseverança e determinação para obter a aceitação deste cargo. Estando eu na minha “zona de conforto”, foi a sua persistência e firmeza que me convenceram a aceitar mais um desafio na minha carreira. O repto que assumo é um compromisso de prestação de um serviço público que vou, de novo, abraçar, nos próximos seis anos, com o mesmo entusiasmo dos anteriores.”
O novo procurador-geral da República deixa claro que cumprirá o seu mandato de forma integral, matando assim à nascença rumores que começaram a surgir de que apenas cumpriria uma parte do mandato. E deixa implícito que recusou a primeira abordagem de Luís Montenegro para liderar o Ministério Público, como o Observador já tinha noticiado. O primeiro-ministro sempre teve Amadeu Guerra como primeira opção para substituir Lucília Gago e, após recolher o seu “sim”, foi o único nome que levou ao Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
Uma palavra final para a senhora conselheira procuradora-geral cessante, que não teve a sorte do seu lado, no decurso do seu mandato, em que ocorreu uma pandemia (…) Mesmo assim, considero que exerceu o cargo – como sempre fez na sua carreira – com honestidade intelectual e de forma dedicada.”
Os elogios protocolares de quem toma posse ao seu antecessor ou antecessora são habituais. Foi assim com Joana Marques Vidal (em relação ao polémico Fernando Pinto Monteiro), foi assim com Lucília Gago (em relação a Marques Vidal) e foi assim com Amadeu Guerra (em relação a Gago). Seja como for, Amadeu Guerra não deu uma palavra de apoio ao mandato de Lucília Gago. Refere apenas a falta de sorte, a honestidade intelectual e a dedicação da agora ex-procuradora-geral, que se jubilou esta semana.
É enganador comparar ‘a ratio de magistrados por número de habitantes’, sem ter em conta as competências exercidas pelo Ministério Público em cada país. (…) a situação atual da Justiça em Portugal está condicionada pela falta de meios humanos. Quem trabalha ou acompanha a realização da Justiça está consciente de que a falta de oficiais de justiça é preocupante no Ministério Público. Assim, apelo ao Governo que dê prioridade à revisão do Estatuto dos Funcionários de Justiça e que estabeleça mecanismos que permitam tornar a carreira mais aliciante. Não queria também deixar de fazer uma referência breve à morosidade nos tribunais administrativos e fiscais, apelando ao Governo para a tomada de medidas que
assegurem – num curto prazo – a resolução do problema das pendências.”
Amadeu Guerra começa por definir as prioridades do seu mandato, referindo uma velha crítica do Ministério Público (MP) e também da magistratura judicial: a falta de investimento do poder político na Justiça, da qual resulta a falta de meios humanos. Apesar de referir mais à frente que o quadro do MP aumentou em 105 magistrados de 2017 para 2023, certo é que o novo procurador-geral considera tal aumento “insuficiente”. Contudo, preferiu apelar ao Governo para investir na carreira dos oficiais de justiça e nos tribunais administrativos e fiscais — que têm dos piores tempos de resolução da União Europeia.
Impõe-se, também, um novo impulso no processo de transição digital na Justiça. A utilização das tecnologias contribui para melhorar o acesso à Justiça. A falta de investimento dos sucessivos Governos em meios tecnológicos avançados, em aplicações informáticas de gestão processual ou sistemas de gestão e tratamento da prova recolhida limita, em muito, a eficiência do sistema de Justiça.”
A área tecnológica marca um segundo apelo de investimento dirigido ao Governo — até porque essa foi uma área em que Guerra apostou fortemente enquanto diretor do DCIAP. O Ministério da Justiça, liderado por Rita Alarcão Júdice, aprovou recentemente uma portaria que vai permitir a tramitação eletrónica do processo penal em todas as instâncias de forma faseada — uma medida que terá certamente o apoio de Amadeu Guerra porque irá permitir ao MP e aos tribunais um ganho de eficiência significativo na gestão dos processos. A tramitação eletrónica já era possível há anos na jurisdição cível, mas só agora vai ser alargada à jurisdição penal.
Não podemos continuar a lamentar-nos com a falta de meios e esmorecer. Devemos, pelo contrário, mobilizar-nos e estar motivados, trabalhar em equipa, ser muito pragmáticos na nossa função e diminuir a morosidade.”
Apesar de lamentar a falta de meios e de investimento, Amadeu Guerra recusa utilizar tal questão como desculpa. É um discurso diferente do que costuma ser feito pelos magistrados do Ministério Público, e até pelos magistrados judiciais.
O prestígio do Ministério Público não se concretiza com meros ‘processos de intenções’ ou com discursos de autoelogio. Consegue-se quando a comunidade que servimos sentir que há resultados efetivos, que ocorreu uma mudança de mentalidades e que foi desencadeada uma mobilização para fazer cada vez melhor. Penso que isso está ao nosso alcance! E foi por isso que aceitei.”
Além de recusar persistir na lamúria da falta de meios, Amadeu Guerra quer implementar uma “mudança de mentalidades” — uma das maiores reivindicações do poder político em relação ao Ministério Público. E, acima de tudo, a apresentação de resultados efetivos da sua atividade enquanto titular da ação penal. O novo procurador-geral mostra assim que está perfeitamente sintonizado com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. que lhe tinha pedido antes, no discurso que antecedeu o de Amadeu Guerra,”unidade”, “pacificação” e mudança”. Dito de outra forma: Marcelo (e o restante poder político) quer uma rutura com o legado de Lucília Gago e Amadeu Guerra promete fazer isso mesmo.
O crime de homicídio em contexto de violência doméstica e o crime de violência doméstica são alarmantes devido ao número de ocorrências. Por isso, considero que (…) deve ser feita uma reflexão com o objetivo de encontrar mecanismos específicos no sentido de evitar que ocorra o crime de homicídio, através de uma análise de risco atempada e tecnicamente oportuna.”
Além de ter começado por enunciar as áreas (que não apenas a área penal) em que o Ministério Público atua — a representação do Estado na jurisdição administrativa e cível, o exercício de responsabilidades parentais, a defesa dos interesses da criança, jovens, idosos e adultos com capacidades diminuídas, a representação dos trabalhadores na jurisdição laboral, entre outras —, Amadeu Guerra definiu como primeira prioridade o combate ao crime de violência doméstica. A par da cibercriminalidade — que também mereceu uma referência do procurador-geral —, é o crime que mais inquéritos gera anualmente no Ministério Público desde há mais de 10 anos. Só em 2023 foram 36.532 inquéritos contra 41.752 processos abertos pelo MP na área da cibercriminalidade. Amadeu Guerra quer avançar com propostas concretas de prevenção para evitar os homicídios em contexto de violência doméstica, que têm subido de forma significativa nos últimos anos.
Nos crimes de corrupção e crimes conexos, bem como na criminalidade económico financeira, é minha intenção acompanhar de perto, através dos Diretores dos DIAP Regionais e do DCIAP, as razões dos atrasos. Ao mesmo tempo, devemos envolver a Polícia Judiciária de forma efetiva, face ao aumento recente dos seus meios humanos: inspetores, peritos e meios tecnológicos.”
O combate à criminalidade económico-financeira, nomeadamente à corrupção, é a segunda prioridade de Amadeu Guerra. É uma área que conhece muito bem e, tal como aconteceu enquanto foi diretor do DCIAP entre 2013 e 2019, o novo procurador-geral da República promete proximidade no acompanhamento dos processos de corrupção. Não só faz questão de referir que vai “acompanhar de perto”, como especifica que o fará junto do diretor do DCIAP — que lhe responde diretamente, por aquele departamento fazer parte da Procuradoria-Geral da República — e dos diretores dos departamentos de investigação e ação penal regionais de Lisboa, Porto, Coimbra e Évora. Além disso, o novo procurador-geral volta a insistir na celeridade como bem fundamental orientador da ação do Ministério Público, ao referir que vai querer saber as “razões dos atrasos” dos inquéritos — mais um sinal de mudança que Amadeu Guerra dá para o interior e para o exterior. Mais à frente no seu discurso, Amadeu Guerra fez ainda uma nova referência à questão da celeridade na fase de investigação quando referiu os crimes contra idosos (que também terão uma atenção próxima, seguindo assim uma política de Lucília Gago) para garantir que as investigações “devem ser céleres, com emissão de despacho final em prazo muito curto”. “A celeridade do processo é, por si só, um fator relevante de prevenção especial.”
Os cidadãos consideram que as políticas anticorrupção e as medidas tomadas na luta contra a corrupção são ineficazes. Interessa sublinhar que, neste tipo de criminalidade, é tão ou mais eficaz assegurar a perda de bens do que uma condenação em prisão. Por isso, é uma prioridade dinamizar e concretizar a recuperação de ativos. Será criada uma estrutura ágil – à qual será dada a formação necessária – que fica encarregada de realizar ou apoiar o titular do inquérito na inventariação dos ativos e na apresentação dos requerimentos necessários à decisão de arresto preventivo.”
Na área da luta contra a corrupção, Amadeu Guerra revelou que vai dar prioridade à criação de uma nova estrutura para promover um incremento da recuperação de ativos. Essa é uma área que tem legislação desde o final da década de 2000, mas que nunca funcionou na sua plenitude, quer em termos de recuperação, quer em termos de gestão desses mesmos ativos — e que, em determinadas circunstâncias, podem mesmo levar à venda antecipada dos bens antes de uma condenação com trânsito em julgado. Apesar de nada ter dito de forma explícita, a prioridade que Amadeu Guerra quer dar a esta área pode levar o novo procurador-geral a olhar com atenção para os novos mecanismos de perda alargada que o Governo quer implementar com a sua Agenda Anticorrupção, que vai começar a ser discutida em breve na Assembleia da República no âmbito da Comissão Eventual criada para o efeito no passado dia 20 de setembro.
O Ministério Público precisa e quer desenvolver o seu trabalho – de forma empenhada e ao serviço da comunidade – sem o alarde mediático e discussão pública da sua atividade em processos concretos. O Ministério Público ouve sempre as críticas justas e fundamentadas, aceitando-as quando contribuam para melhorar o seu desempenho, para alterar procedimentos e torná-los mais adequados para assegurar a celeridade e a eficiência, ou quando contribuam para facilitar o cumprimento mais efetivo do serviço público que lhe incumbe prosseguir.”
Foi mais um dos sinais de rutura com o mandado de Lucília Gago — porventura o mais significativo de todos pelo carácter simbólico. Em vez de se fechar no seu gabinete e virar o Ministério Público para dentro de uma bolha não escrutinável, Amadeu Guerra quer que os procuradores oiçam outras profissões jurídicas e a sociedade civil e, quando houver fundamento para tal, corrijam e melhorem o seu desempenho.
O procurador-geral da República, após um período inicial de contacto com a realidade nos tribunais, está sempre disponível para prestar contas no Parlamento.”
Lucília Gago foi quatro vezes ao Parlamento durante o seu mandato, mas a forma como resistiu ir à Assembleia da República na sua última audição, no auge das críticas da Operação Influencer, deixou a imagem de que a então procuradora-geral da República recusava o escrutínio da Assembleia da República. Amadeu Guerra mostra que pensa de forma muito diferente. Não só diz que estará sempre disponível para falar com os deputados, como implicitamente aceita a prestação de contas que é devida ao Parlamento, nomeadamente aos deputados da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
O procurador-geral da República irá revisitar as questões relativas ao segredo de justiça, através da análise das medidas estabelecidas no Relatório elaborado em 2014, no estudo do regime de segredo de justiça em alguns países e nas boas práticas seguidas por alguns magistrados. As soluções – se é que é possível alcançá-las – têm de passar pela abordagem das questões criminais, dos direitos, liberdades e garantias e, necessariamente, pelo equilíbrio entre estes aspetos e o direito à informação.”
Amadeu Guerra refere-se a uma auditoria que foi ordenada pela procuradora-geral Joana Marques Vidal aos processos que investigaram o crime de violação de segredo de justiça entre 2011 e 2012. Os resultados foram apresentados em novembro de 2014 numa conferência realizada na Procuradoria-Geral da República e as conclusões eram simples: houve 83 inquéritos abertos, um chegou a julgamento e o arguido foi absolvido. O número de inquéritos abertos diz tudo sobre o facto de se tratar de um crime muito residual. Amadeu Guerra promete revisitar essa auditoria, estudar os regimes que existem noutros países europeus e tentar encontrar soluções. Contudo, admite as mesmas só podem ser encontradas se existir um equilíbrio entre os direitos, liberdades e garantias dos arguidos e o direito à informação — sendo que esta última questão costuma ser ignorada pela comunidade jurídica portuguesa, mas é muito valorizada na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
Sou desfavorável, em termos gerais, a alterações legislativas levadas a cabo na decorrência de processos concretos, de forma precipitada, por vezes, sem justificação e sem ponderação, designadamente, dos efeitos e consequências que, no futuro, podem ocorrer.”
A parte final do discurso do novo procurador-geral ficou reservada para as chamadas linha vermelhas que Amadeu Guerra considera inegociáveis. A primeira passa por uma reforma da Justiça com um pensamento em processos concretos. Numa alusão indireta à reforma penal promovida pelo Governo de José Sócrates, que tomou várias medidas legislativas com o processo Casa Pia bem presente na memória dos socialistas, o novo procurador-geral da República deixa no ar que recusará uma ideia que tem sido veiculada, nomeadamente pelo Expresso, como sendo do Grupo Parlamentar do PS: a ideia de impor prazos de inquéritos perentórios para o Ministério Público realizar a fase de inquérito criminal, sob pena de ser obrigatório o arquivamento do respetivo processo.
Há, igualmente, “linhas vermelhas” que não aceito, nomeadamente, a alteração do Estatuto do Ministério Público em violação da Constituição e da sua autonomia e independência.”
A segunda linha vermelha é um ponto de contacto claro com Lucília Gago (o outro foi a continuidade da prioridade dada aos crimes contra idosos). Amadeu Guerra recusa qualquer alteração ao contexto atual da autonomia do MP face ao poder político e faz mesmo questão de acrescentar “independência” à sua linha vermelha. Do ponto de vista formal, os juízes são independentes, mas o Ministério Público é apenas autónomo face ao poder político. A referência à independência é claramente um discurso para consumo interno e uma aproximação calculada ao influente Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. Essa ideia é reforçada com outra igualmente clara: o Governo de Luís Montenegro não quer mexer no atual enquadramento legislativo da autonomia do MP, como a ministra Rita Alarcão Júdice garantiu em entrevista ao Observador.