Passaram mais de dois meses desde que a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a Europa como o centro da pandemia (13 de Março) e os países têm vindo a levantar as medidas restritivas conforme a diminuição da expansão da doença. Em Portugal, o Estado de Emergência acabou no dia 2 de Maio e a partir dessa data iniciou-se a fase de desconfinamento. À semelhança de vários países, Portugal tem um desconfinamento faseado. Agora que já passaram mais de 15 dias desde o seu início surge a dúvida: porque é que Portugal continua a ter um crescimento superior a vários países, apontados pelas suas boas práticas e sucesso no desconfinamento, como por exemplo a Áustria, Dinamarca, Noruega e República Checa?
O objetivo deste estudo é enquadrar a situação atual das medidas e dados epidemiológicos num grupo de países da Europa, comparar a posição de Portugal com outros países e discutir fatores que podem influenciar as diferenças observadas.
Deste modo, optámos por utilizar vários indicadores habitualmente usados para comparar a situação de Portugal com outros países. Um destes indicadores é o aumento diário percentual de casos. A figura 1 mostra o crescimento médio diário de casos desde o dia 1 de Abril para os vários países (O número de casos a 1 de Abril encontra-se entre parêntesis à frente do nome do país na figura 1). Na primeira semana de Abril percebe-se que Portugal era o país com o maior crescimento médio de casos, seguido da Dinamarca, Suécia, Bélgica, República Checa e Alemanha. A Áustria, a Noruega e Itália eram os países com menor crescimento diário. Avançando no tempo, entre 20 a 26 de Maio, Portugal continua a ser um dos países com um elevado crescimento diário médio, sendo apenas inferior ao da Suécia. A Áustria, a Noruega e Itália continuam a ser os países com menor crescimento médio diário. No entanto, analisando a diferença no crescimento na primeira semana de Abril e na semana de 20 a 26 de Maio, Portugal é o país que teve a maior redução no crescimento diário médio de casos, juntamente com a Dinamarca, a Bélgica e a Suécia. A Áustria, a Noruega e Itália tiveram uma redução menor, o que é esperado, visto que o crescimento médio já era menor.
Esta figura serve para ilustrar a importância de se distinguir entre o que denominamos de tempo cronológico e tempo epidemiológico. O tempo cronológico refere-se às datas reais, enquanto o tempo epidemiológico corresponde ao tempo na curva epidémica, ou seja quando o vírus Sars-COV-2 começou a ser transmitido no país e como foi a sua evolução. A figura 1 apresenta dados em tempo cronológico, sugerindo que países como Espanha e Itália têm um desempenho melhor que Portugal. No entanto, estes países já tinham mais de 100.000 casos a 1 de Abril, logo, em tempo epidemiológico, estes países estão “piores” que Portugal, que tinha 7.000 casos, o que inviabiliza a comparação direta entre tendências numa data fixa, dado que ignora onde se encontra o país na curva epidémica.
Além disso, quando se atingem níveis avançados da pandemia (como em Espanha e Itália), o crescimento diário percentual diminui, por estarmos a falar de um número grande. Por exemplo, no dia 1 de Abril existiam 7.443 casos em Portugal e 119.263 em Espanha. No dia 2 de Abril, Portugal reportou 808 casos novos e Espanha 7.583 casos novos. Embora Espanha tenha um número novo de casos muito superior a Portugal, em termos percentuais o aumento foi menor em Espanha, uma vez que são dimensões diferentes.
De seguida, apresentamos um resumo de vários indicadores usados quando se comparam países. A tabela 1 indica:
- as datas de início e fim das medidas e sua duração;
- o número de casos e de mortes que o país tinha à data de implementação e levantamento das medidas;
- a média do aumento diário no número de casos (em %) dos sete dias que antecedem o início e fim da medida;
- quantos dias passaram desde o levantamento da medida até 25 de maio;
- e a taxa de casos por 100.000 habitantes a 25 de maio.
Estes valores estão codificados para facilitar a comparação com Portugal: cor de rosa indica que os valores eram maiores e verde indica que eram menores em relação a Portugal.
Através destes dados podemos verificar que a implementação das medidas restritivas em todos os países aconteceram num curto intervalo de dias. Itália foi o país que adotou medidas mais cedo em termos de tempo cronológico, porém mais tarde em tempo epidemiológico, já que apresentava o maior número de casos e mortes entre os países analisados. Mais uma vez observamos a importância de distinguir entre tempo cronológico e epidemiológico: em quase todos os casos, as medidas foram implementadas entre 10 e 20 de março, no entanto existia uma grande disparidade nos países em relação aos números absolutos e relativos — 2.000 casos é diferente em Portugal e na Alemanha, uma vez que estamos a falar de populações com tamanhos diferentes.
Já em relação ao levantamento das medidas verifica-se uma grande variedade na forma como as restrições são levantadas, isto é, os países estão a adoptar um processo gradual e a ordem em que são levantadas não é a mesma. A restrição ao movimento de cidadãos está entre as primeiras medidas levantadas nos países analisados; enquanto o cancelamento de eventos públicos ainda está em vigor na maior parte dos casos.
À data de implementação das medidas, Portugal tinha menos casos e menos mortes do que todos os países incluídos na análise, com exceção da República Checa; no entanto, este país possuía um crescimento diário percentual elevado, indicando que estava em fase de crescimento acelerado da pandemia. Como já referido em análises anteriores, as autoridades portuguesas atuaram cedo ao implementar medidas de contenção e mitigação, quando a situação epidemiológica da COVID-19 era ainda recente, e quando comparada com a de Espanha, Itália e Reino Unido em níveis epidemiológicos. O timing de implementação das medidas e a adesão da população teve um impacto importante na redução da progressão do COVID-19 em Portugal.
Quanto às características na altura do levantamento das medidas, de um modo geral, Portugal possuía menos casos e mortes do que outros países da Europa Ocidental (Alemanha, Bélgica, Espanha e Itália) e o crescimento diário de novos casos é semelhante ao de Espanha e Itália, que foram os países mais afetados do continente no início da pandemia. Portugal possuía mais casos e mortes que os países nórdicos (Noruega e Dinamarca), porém com taxas de crescimento menores que a Dinamarca e semelhantes às da Noruega.
Na comparação entre os países deve também ter-se em conta que estes têm diferentes populações, o que reflecte diferentes proporções dos casos e mortes em relação ao total do país. À data de 25 de Maio, Portugal apresentava uma taxa de casos maior que Alemanha, Áustria, Dinamarca, Noruega e República Checa. Levando-se em conta a evolução de casos e a tomada de medidas, nota-se que os países se encontram em diferentes fases em tempo epidemiológico, o que tem de ser considerado na comparação.
Apresentamos uma análise geral, no entanto muitas vezes deseja-se analisar o efeito do levantamento de uma medida especifica. Desta forma, vamos analisar individualmente o levantamento de restrições de duas medidas – abertura de pequenos negócios e ensino – para comparar Portugal e outros países e mencionar alguns problemas adicionais.
A figura 2 mostra a média semanal de novos casos por 100.000 habitantes, antes e depois de os países terem permitido a abertura de pequenos negócios. Passados 14 dias desde a reabertura, Portugal tem um número médio de novos casos semelhante à Bélgica e inferior à Alemanha, Espanha e Itália. Nesta análise de uma só medida é importante salientar que outras medidas foram levantadas durante o mesmo período, sendo difícil analisar o efeito individual da reabertura de pequenos negócios.
Existe outro ponto importante a realçar nesta análise. Quando se compara a adopção da reabertura de pequenos negócios em vários países, é necessário ter em conta que nem todos os países definiram a medida da mesma forma. Alguns países, como Portugal, reabriram lojas até 200 metros quadrados, enquanto outros reabriram pequenos negócios até 400 metros quadrados. Adicionalmente, alguns países reabriram restaurantes e bares, enquanto outros, incluindo Portugal, apenas o fizeram posteriormente.
A figura 3 apresenta uma análise semelhante: a média semanal de novos casos por 100.000 habitantes antes e depois da reabertura das escolas. Para os países que reabriram as escolas há mais de 7 dias (Portugal, Alemanha, Áustria, Dinamarca e Noruega), Portugal apresenta uma tendência semelhante a Bélgica e Dinamarca; apresenta também menos casos novos do que a Alemanha apresentava na segunda semana depois de reabrir as suas escolas. O fecho e reabertura pode ter sido diferente por nível de ensino: por exemplo, a Noruega começou com a abertura de creches a 20 de Abril, escolas primárias na semana seguinte e o restante das escolas em Maio; na Alemanha as escolas primárias foram abertas primeiro e as creches permanecem fechadas; na Bélgica cada região decidiu como iria reabrir as suas escolas. Estas figuras mostram as dificuldades em comparar medidas individuais entre países.
Para além dos problemas discutidos, existem outras considerações que devem ser feitas quando se procura interpretar os resultados, o que dificulta e limita a comparabilidade de experiências tanto no contexto europeu quanto mundial.
A começar com os dados da COVID-19, o número de casos reportados ao ECDC depende da cobertura de testagem no país. Dos países analisados, Portugal é o quarto país com mais testes efectuados por milhão de habitantes (Figura 4). Olhando para os países com menor crescimento, Áustria, Noruega e Itália efectuaram menos testes por habitante. Curiosamente, a Suécia, que tomou uma posição diferente ao não entrar em lockdown, é o país actualmente com maior crescimento diário médio de casos e tem a menor proporção de testes efectuados por habitante entre os países considerados, o que sugere que a incidência deste país poderá ser ainda superior à observada actualmente, uma vez que existe um grande número de indivíduos assintomáticos. Chamamos também à atenção para a República Checa, que apresenta menor incidência acumulada em 25 de Maio, mas é o segundo país com menor proporção de testes efectuados por milhão de habitantes.
Quanto às medidas, e para efeitos de análise, é necessário realçar que, apesar de estas utilizarem denominações semelhantes, na prática, muitas vezes, estas variam entre países, como foi apresentado no caso da reabertura de pequenos negócios e ensino. Para o cancelamento de eventos públicos, por exemplo, em alguns países os eventos são permitidos se respeitada uma capacidade máxima de pessoas previamente definida.
Conforme referido, todos os países analisados levantaram as restrições aos movimentos dos cidadãos. Isto é importante porque nem todos os países tiveram o mesmo lockdown. Em Portugal, passeios higiénicos eram permitidos, enquanto noutros países apenas era possível sair de casa com um propósito bem definido e outros aplicavam multas no caso de a pessoa ser encontrada fora de casa. Podemos assumir que o levantamento desta restrição poderá ter levado mais pessoas a sair de casa em alguns países e menos pessoas noutros países, por razões culturais ou outras.
As medidas têm abrangências e timings diferentes, e a distinção entre tempo cronológico e epidemiológico nem sempre é levada em conta nas análises. Os diferentes níveis de cumprimento das medidas nos países não são conhecidos e o efeito acumulador destas medidas é difícil de medir. Um aspecto importante a considerar quando se comparam países e medidas de confinamento/desconfinamento é que não existe uma “receita” que os países adoptam e o desconfinamento é feito principalmente na base de trial and error, com avaliações semanais ou quinzenais, no caso de ser necessário voltar atrás.
É discutido que o impacto das medidas pode ser avaliado passadas duas semanas desde o seu levantamento, já que este é o período de contágio estimado da COVID-19 ou, usando outro racional, o tempo médio de contágio mais o tempo de notificação. Porém, é expectavel que este período não seja suficiente para identificar novos internamentos e mortes que possam estar associadas ao levantamento de medidas, já que pode levar um tempo superior para um agravamento de casos, para ser necessário o internamento, a transferência para cuidados intensivos e mortes decorrentes de COVID-19. A monitorização do desempenho no combate à COVID-19 tem de assentar num conjunto de indicadores complementares, obviamente incluindo o número de casos novos, mas também a análise das mortes, a proporção de casos internados e recuperados, pela caracterização dos perfis dos doentes, da taxa de ocupação de unidades de cuidados intensivos, pela análise do R(t), etc. Por esta razão, não se infere nesta análise uma causalidade ou qual o país que está a ser mais bem sucedido na gestão da pandemia. Não é uma resposta única, depende da perspectiva.
Como se pode observar nas figuras 2 e 3, Portugal levantou a restrição de algumas medidas antes de alguns países, os chamados países “bons” – Áustria, Noruega, Rep. Checa e Dinamarca, e depois de outros países – Espanha, Itália e Alemanha. No entanto, entre os países “bons”, a Áustria, Noruega e República Checa têm uma cobertura de testagem pelo menos 33% menor que Portugal, o que pode corresponder a um menor número de casos reportados nestes países e uma subestimação da incidência real no país.
Tendo em conta estes resultados, verificamos que, apesar de Portugal apresentar neste momento – tempo cronológico – um elevado número de casos, se analisarmos o tempo epidemiológico ainda é cedo para tirar conclusões. Ainda não passou tempo suficiente para avaliar o impacto do levantamento das restrições no número de internamentos e mortes por COVID-19. Em relação ao Rt, sabemos que se mantém próximo de 1, com oscilações regionais. Desta forma, precisamos de continuar a cumprir as recomendações da DGS e manter a distância física. Ultimamente, muito se tem falado na comunicação social do aumento de casos em Lisboa. Embora o aumento de casos numa região com elevada densidade populacional onde as pessoas voltaram ao trabalho, a usar transportes públicos e a sair de casa seja esperado, não deixa de ser preocupante. Nesse sentido, é necessário continuar a acompanhar de perto a evolução da situação no nosso país, investindo em estratégias locais e sistemas de vigilância mais activos, tendo em conta todos os factores acima mencionados, para identificarmos rapidamente situações de risco.