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É um caminho difícil para chegar a Paiporta. As estradas estão cortadas, a polícia impede a passagem. É preciso escolher ruas secundárias e avançar sobre terreno incerto até chegar a um dos epicentros do fenómeno meteorológico que atingiu o sul e leste de Espanha.
Uma vez atravessada a ponte que liga a cidade de Valência ao município, o telemóvel perde o sinal. Não há eletricidade nem água corrente. As luzes da rua são cada vez mais escassas até que deixam de existir por completo. O chão cobre-se de lama, os carros amontoam-se como legos empilhados. É um mundo à parte a meros quilómetros de distância.
No centro urbano, o cenário na noite desta quarta-feira é devastador. A população, cujo desespero tem sido retratado pela imprensa espanhola nas últimas horas, está agora recolhida. As ruas estão desertas e silenciosas. Os carros da polícia local vão passando, em conjunto, sem alarido.
Dos 95 mortos registados no país, 40 foram contados neste município que fica a quatro quilómetros de Valência. E ninguém sabe quando essa contagem vai acabar, há ainda dezenas de desaparecidos.
Foi um ano de chuva em oito horas, de acordo com os meteorologistas. A água trazida pela DANA (uma Depressão Isolada de Altos Níveis) deixou um rasto de destruição, especialmente aqui, uma povoação com 25.000 habitantes. Mas, nas povoações à volta, o cenário não é menos dramático. Pelo contrário: além de tudo o que a água e a lama levaram, o apoio à população parece demorar a chegar às localidades mais pequenas. É aí que se ouvem lamentos pela falta de aviso para o que ia acontecer e críticas à falta de ajuda.
Uma povoação-fantasma perdida no meio do desastre
Picanya, uma pequena povoação entre Valência e Paiporta, é uma povoação fantasma, um terreno árido que tem fugido à cobertura noticiosa. Pelas ruas não se vê ninguém, só destruição. O chão enlameado fez desaparecer objetos pessoais, sugou carros, arrastou árvores. As poucas luzes que restam ameaçam falhar. Já é noite cerrada quando a voz de um homem rompe o silêncio e uma silhueta descobre-se no telhado. Acaba de falar ao telefone e puxa de um cigarro.
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“As pessoas estão muito cansadas, andaram a limpar, precisam de dormir. Mas eu não consigo pregar olho”, diz Ximo, 44 anos. Recorda como passava pouco das seis e meia da tarde desta terça-feira quando o telefone tocou. Era uma vizinha a avisá-lo do que aí vinha. Estava em casa tranquilamente com a mulher e estranhou o que ouviu: “Não estava a chover sequer. Nunca nos passou pela cabeça. Achávamos que tínhamos tempo.” Correram a tirar uma mota e os dois carros da garagem (um deles comprado há sete meses) e rumaram a casa da mãe de Ximo, a algumas centenas de metros dali. “Viemos os três para o telhado e ali ficámos.” “Sempre estamos mais longe do barranco”, diz, referindo-se à ribanceira que se encheu com as cheias repentinas.
Ximo vive há 23 anos na pequena povoação de Picanya (graceja por se pronunciar exatamente como “picanha”). “Estamos a cinco minutos do centro de Valência e vive-se de forma muito tranquila. É um bairro muito bom. Agora parece um campo de refugiados”, compara.
Atravessa as ruas de lama com cuidado, a ver onde põe os pés, para mostrar a casa que abandonou um dia antes. “Esta é a minha casa”, aponta. “Está aí o muro, está intacto, menos mal. O pior é lá dentro.” Comprou a moradia em 2008 e está a pagá-la ao banco. O prejuízo da habitação e dos danos nos dois veículos, estima, pode chegar aos 100 mil euros. “Viver ao lado de um barranco coloca-nos sempre essa dúvida, mas como o barranco é tão grande, com tanto caudal, nunca imaginei isto. Nunca vi isto assim.” Ximo tem 1,98cm e a água que lhe levou quase tudo chegou-lhe até ao peito.
A força das cheias rebentou com muros, esventrou garagens e galgou pelo piso térreo das casas. “É um lamaçal. A casa está um lamaçal”, diz. Nas ruas não se distingue o chão. Cada passo é uma surpresa, entre lama sólida e caminhável e um mergulho profundo. “Aqui não choveu muito. Choveu no interior de Valência. Só que tudo veio até aqui… A água tem disto.”
“Não se pode evitar o desastre, mas podia-se evitar as vítimas”
Ximo não poupa críticas à falta de resposta do governo espanhol. “Tenho informação de amigos que trabalham em organismos e havia quem soubesse desde de manhã [de terça-feira]. Sabiam que isto ia acontecer. Concretamente aqui, pelo menos, as autoridades sabiam que ia acontecer, pelo menos, meia hora antes. Mas deixaram-nos na mão de Deus. Espanha, a nível político, está muito mal. Estamos completamente desamparados. Não nos ajudaram em nada.”
Desde terça-feira que as críticas se alastram nas redes sociais sobre a falta de aviso das autoridades quanto à violência do temporal. Ximo corrobora: “Agora que se produziu a catástrofe não param de nos enviar mensagens de alerta para não sair de casa. Bem, se nos tivessem avisado antes, muitas vidas se tinham salvado. Não se pode evitar o desastre, mas podia-se evitar as vítimas.”
O primeiro aviso emitido pela Proteção Civil da Comunidade Valenciana sobre as chuvas surgiu só pelas 20h30 locais de terça-feira (19h30 em Portugal Continental). Nessa altura, já a televisão espanhola reportara estradas cortadas e localidades inundadas.
As ditas mensagens, relata Ximo, só as começou a receber há umas horas. Chegaram quando voltou a ter eletricidade e bateria no telemóvel, quase 24 horas depois. “Água ainda não temos. Isso é o pior. Porque água só a temos para beber. Aqui não há condições de salubridade para viver”, constata. Tem umas conservas e algumas garrafas de água com as quais sobreviverá nos próximos dias.
Minutos antes, o espanhol tinha reagido com surpresa ao ver jornalistas. “Não vem cá ninguém”, dizia, notando a ausência da polícia. “Agora estão a começar a passar aí alguns com umas luzitas, suponho que por causa dos roubos”, que entretanto terão começado a despontar no meio do desastre.
“Olhem como está esta casa, como ficou. Há um ano que as pessoas se mudaram para aí. Gastaram aqui pelo menos um milhão e meio de euros. É uma casa belíssima, enorme”, afirma, perante uma casa com uma arquitetura distinta das demais, despida de paredes, despida de gente. “Não está aí ninguém. Está tudo rebentado”, lamenta.
Ximo suspira. “Sinto que neste país os meus impostos não servem para proteger a minha vida. É só isso que têm de fazer os políticos. É só isso que se lhes exige.” Critica que “nestas situações de risco não atuem, não façam previsões, não digam nada”. “Agora que tudo isto aconteceu, continuam sem prestar nenhum tipo de ajuda. Pelo menos que nos dessem água, comida, algum tipo de apoio”, lança. “Suponho que as autoridades estejam muito entretidas a tratar de coisas urgentes. Mas acho que a população merece mais atenção.”
Espanha. Buscas por desaparecidos retomadas. Sánchez e Feijóo viajam para Valência
A ministra da Defesa de Espanha, Margarita Robles, disse, esta quarta-feira, aos jornalistas, em Madrid, que a região viveu nas últimas horas “um fenómeno sem precedentes”. Carlos Mazón, presidente da Comunidade Valenciana, reforçou o apelo aos cidadãos para que evitem qualquer tipo viagem por estrada e continuem a acompanhar as informações das autoridades. O governo espanhol decretou três dias de luto nacional.