Os mais de mil casos de infeção pelo novo coronavírus registados esta quinta-feira pela Direção-Geral da Saúde (DGS) não surpreenderam os especialistas portugueses ouvidos pelo Observador. “De facto, trata-se da segunda vaga, mas não é alarmante”, diz Francisco Antunes, infecciologista do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. “Se ela vai ser mais grave do que a primeira, isso não se sabe. Mas o crescimento está a ser mais acentuado que o da vaga anterior.”
Esta foi a terceira vez que Portugal ultrapassou os mil casos/dia desde que a epidemia entrou no nosso país (os primeiros casos foram registados a 3 de março) e foi também o segundo pior dia em número de casos diários: 1.278, menos 238 que a 10 de abril e mais 243 que a 31 de março. Mas isso não significa que a situação portuguesa esteja tão crítica como no pico da primeira vaga, alerta Jaime Nina, infecciologista do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT): “Depende dos números para que olhar”, explica.
“Os números relevantes são as mortes. Ainda que possa haver alguns falsos positivos ou alguns falsos negativos, isso é muito raro em Portugal e, por isso, o número de mortes é muito fidedigno. O número de casos varia muito de acordo com o número de testes que se faz. Em março ou abril faziam-se menos testes e eram testadas as pessoas em estado mais grave, por isso os números eram mais pequenos. Agora, felizmente, fazem-se mais testes e, por isso, apanham-se mais casos ligeiros”, explica o especialista.
Os números confirmam-no. A 31 de março, na primeira vez que o país ultrapassou os mil casos diários, detetava-se um caso positivo a cada 10 testes para o vírus SARS-CoV-2; a 10 de abril, dia recorde de casos em Portugal, a média tinha subido ligeiramente para 12 testes por cada caso positivo. Passados seis meses, os últimos dados reportados pelas autoridades de saúde portuguesas ao Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) dizem que se faz 30 testes por cada caso de infeção pelo novo coronavírus. Em resumo, passou-se de 10/12 para mais do dobro agora, 30.
Mesmo em números absolutos, os gráficos mostram que se está a testar mais: na terça-feira, Portugal realizou pouco menos de 19,5 mil testes num só dia. A 10 de abril, o dia dos 1.516 novos casos, fizeram-se menos de metade, apenas 9,9 mil testes; e a 31 de março, dia em que se registaram 1.035 novos casos, fizeram-se ainda menos: 7.288. É por causa destes valores que Jaime Nina relativiza os 1.278 casos desta quinta-feira: “Só se encontra aquilo que se procura. E nós andamos a procurar mais”.
É também “só por isto” que a “a taxa de letalidade parece estar a baixar”, prossegue o especialista. Neste momento, com os 82.534 casos de infeção registados desde o início da pandemia e as 2.050 mortes por Covid-19 contabilizadas até esta quinta-feira desde 3 de março, a taxa de letalidade está nos 2,48% — ou seja, três em cada 100 pessoas infetadas pelo SARS-CoV-2 morreram da doença. São menos 0,33 pontos percentuais que no pior dia da epidemia em Portugal. Mas, segundo Jaime Nina, a leitura destes valores requer cuidado: “A taxa de letalidade não está realmente a baixar porque o vírus se tornou menos letal. Nós é que encontramos mais casos e isso faz baixar os números”.
Então, o que realmente mudou? Além da capacidade de testagem, outros dois aspetos. O primeiro é a idade: se nas últimas duas vezes em que o país ultrapassou a marca dos mil casos diários os jovens na faixa etária dos 20 aos 29 anos representavam cerca de 10% do total dos contágios, esta quinta-feira a percentagem passou para os 16%. É um fenómeno de crescimento que se verifica em todas as faixas etárias até aos 49 anos e que contraria o que se observa nas pessoas com 50 ou mais anos, que representam cada vez menos casos de Covid-19.
O segundo aspeto tem a ver com a pressão que a Covid-19 está a exercer no sistema nacional de Saúde. A 31 de março, o relatório de situação da DGS sinalizava 627 pessoas internadas em enfermarias e 188 nos cuidados intensivos. A 10 de abril, o número era ainda maior: 1.179 doentes internados e 226 nos cuidados intensivos. Esta quinta-feira, os números são incomparavelmente menores do que os valores de há seis meses: 801 internamentos em enfermaria, 115 nos cuidados intensivos.
Jaime Nina acredita que estes números “são mais fiáveis do que o número de casos para se perceber a evolução da epidemia”. “Para se ser internado não basta testar positivo, é preciso que tenha alguma gravidade. E esses eram os casos que já eram diagnosticados em abril ou maio. Embora o número de internamentos tenha vindo a subir, está longe dos números do pico da epidemia”, prossegue.
Mesmo que o critério de internamento tenha mudado em abril, quando a maioria dos casos eram internados, passando desde aí a dar-se prioridade ao tratamento em casa, com o devido isolamento, há ainda muitos riscos, segundo os especialistas. Riscos que vêm dos lares, das pessoas vulneráveis e da necessidade de ainda maior testagem.
É um sinal positivo, mas que deve ser interpretado com cautela, avisa contudo Francisco Antunes. Os números de internamentos e de doentes nos cuidados intensivos têm subido nos últimos dias e, para o infecciologista, só há um modo de os travar: “Só vamos evitar grandes subidas se protegermos as pessoas vulneráveis. E tenho alguma dificuldade em perceber como é que não foram tomadas mais medidas sanitárias em relação a todos os lares. Continuam sem apoio sanitário, por isso a situação corre o risco de comprometer a capacidade do SNS”.
Celso Cunha, virologista do IHMT, concorda: “Nem o número de mortes, nem o número de internados está perto dos valores do pico da epidemia. Estamos longe disso”. Mas, apesar do otimismo em relação quanto a estes parâmetros, o especialista também sublinha que, “se o número de novos casos continuar a subir, é provável que esses números também subam até valores próximos aos do pico da epidemia”. Francisco Antunes também é perentório: “Vai piorar antes de melhorar”.
Francisco Antunes considera que a população deve estar mais atenta aos sintomas precoces da Covid-19 para que comece a ser tratada mais cedo: “As pessoas têm de ser alertadas para a perda do sentido do cheiro e do sabor. São sintomas precoces da doença que não podem ser desvalorizados”. Além disso, “precisamos de testar cada vez mais e de diagnosticar o mais cedo possível”. “Só isto e o comportamento das pessoas é que podem mudar o curso da epidemia”, aponta o infecciologista.
Jaime Nina também afirma que “devíamos estar a testar mais”: “Mas muito mais. Não é o dobro ou o triplo: é 50 ou 100 vezes mais”. Para o infecciologista, “testar só não chega”: “É preciso um bom rastreio de casos e um isolamento eficaz”. Fazer mais testes, como Singapura, Hong Kong, Taiwan, tem significado menos letalidade, conclui o infecciologista: “Estes países têm um número de casos semelhante ao nosso, mas, se olharmos para o número de mortes, Singapura tem 27 mortes. Conseguem descobrir os casos muito precocemente”.
O fenómeno registado esta quinta-feira em Portugal é semelhante ao que se tem verificado noutros países da União Europeia — mesmo naqueles que tinham passado incólumes na primeira vaga. A República Checa, por exemplo, registou 4.457 novas infeções na quarta-feira quando, durante a primavera, nunca ultrapassou as 500. A Roménia está a passar pela mesma tendência: 2.958 casos em 24 horas, de acordo com os dados de quarta-feira.
Portugal está, portanto, numa situação mais estável no que toca ao número de novos casos. A 31 de março, Portugal era o quarto país com mais casos diários por milhão de habitantes, ultrapassado por Espanha, Bélgica e França. A 10 de abril, o pior dia para Portugal, o país só era ultrapassado pela Bélgica. Na quarta-feira, os países com mais casos diários por milhão de habitantes eram a República Checa, os Países Baixos e França. Portugal estava em décimo lugar.