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Fugidos da invasão russa, há refugiados ucranianos que chegam a Portugal e são recebidos por russos com ligações ao Kremlin. O caso está a ser denunciado pela embaixada da Ucrânia em Lisboa e pela Associação de Ucranianos em Portugal há algum tempo, mas só quando foi conhecido um caso concreto, o da Câmara de Setúbal, onde um proeminente membro da comunidade russa recebeu refugiados, pedindo-lhes informações sobre os familiares que ficaram no país a combater os russos, é que a polémica ganhou dimensão. Direita e esquerda exigem explicações, enquanto o PCP defende o autarca comunista.
Em 17 perguntas e respostas explicamos-lhe todos os detalhes deste caso.
O que está em causa?
Em Portugal, há refugiados ucranianos a ser recebidos por russos que apoiam Vladimir Putin. A situação estará a acontecer em vários pontos do país, segundo a Associação de Ucranianos em Portugal, com o caso mais mediático a ser o da Câmara Municipal de Setúbal, uma autarquia comunista.
Qual é o problema concreto?
A questão não se prende com a nacionalidade, mas antes com as posições políticas destas pessoas e as suas ligações ao Kremlin que, entre outras coisas, têm acesso a documentação dos ucranianos que chegam a Portugal.
Pavlo Sadhoka, presidente da Associação de Ucranianos em Portugal, refere ao Observador que também há casos de cidadãos com passaporte ucraniano a receber refugiados, mas que são a favor das políticas de Vladimir Putin, o Presidente russo que a 24 de fevereiro ordenou a invasão da Ucrânia. “Não faz sentido um refugiado ser recebido por uma pessoa que é a favor da invasão ou que diz que todos os ucranianos são nazis.”
Por que motivo o caso de Setúbal chamou a atenção?
A Câmara Municipal de Setúbal, autarquia comunista, criou uma linha de atendimento a refugiados ucranianos. Segundo fonte da embaixada de Kiev em Lisboa, as pessoas começaram a sentir-se pouco à vontade quando perceberam que uma das pessoas que as recebia não falava ucraniano, apenas russo, e que desconhecia a geografia do país. “Acharam suspeito e comunicaram-nos a situação”, explicou a mesma fonte ao Observador.
Feitas as devidas diligências, e como noticiou o Expresso, percebeu-se que Igor Khashin, uma das principais figuras da comunidade russa em Portugal, e a sua mulher, Yulia Khashina, funcionária da autarquia, estavam a receber os ucranianos.
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Quem é Igor Khashin?
Igor Khashin já esteve à frente da Casa da Rússia e do Conselho de Coordenação dos Compatriotas Russos. Está envolvido em várias iniciativas da Embaixada Russa, assim como a sua mulher. O russo tem ainda ligações às organizações Ruskyi Mir e Rossotrudnichestvo, ferramentas de propaganda russa em todo o mundo, explica Pavlo Sadhoka ao Observador.
Muitas destas informações foram entretanto apagadas dos sites em questão, mas a associação garante ter provas de tudo, assim como a embaixada.
O que são a fundação Ruskyi Mir e a agência Rossotrudnichestvo?
A Fundação Russkiy Mir foi criada através de decreto, assinado por Vladimir Putin, em 2007, e tem como missão promover a cultura e a língua russas no mundo. A agência Rossotrudnichestvo, sob tutela dos Negócios Estrangeiros, é uma agência do governo russo responsável por intercâmbio cultural. Foi criada também por decreto presidencial, mas, neste caso, a assinatura era, em 2008, de Dmitri Medvedev.
O que é que em Setúbal colocou os ucranianos em alerta?
Além das informações normais, explicou fonte da embaixada, os dois russos pediram informações detalhadas sobre a família e sobre familiares que ficaram na Ucrânia, quase sempre sobre os maridos que se encontram a combater as tropas russas. Passaportes e certidões de nascimento foram fotocopiadas, conta a mesma fonte. Ao Expresso, uma das mulheres atendidas em Setúbal afirmou que lhe perguntaram pelo marido, “onde estava e o que tinha ficado a fazer”.
“Estas organizações pró-russas, que têm ligação direta com a embaixada russa, podem ser fontes de recolha de informação estratégica e até vital. Imagine que uma mulher vai dizer onde luta o marido dela, ou o irmão dela, lá na Ucrânia. Há uma informação muito estratégica e importante que a Rússia está a tentar recolher”, diz Pavlo Sadhoka.
Não havia ucranianos a ajudar?
Não. À Rádio Observador, Valleri Radetchuk, familiar de uma refugiada ucraniana que chegou recentemente a Portugal e foi acolhida nestes moldes na câmara de Setúbal, disse ter conhecimento de “muitas pessoas” em situações semelhantes. “A câmara municipal nunca chamou ucranianos para ajudar, só russos“, disse Radetchuk. “Não percebo.”
Há mais situações destas no país?
Tanto Pavlo Sadhoka, como a Embaixada da Ucrânia, acreditam que sim e lembram que há vários anos que alertam para a existência de agentes pró-russos infiltrados em Portugal. Os avisos foram feitos ao Alto Comissariado das Migrações ao longo de vários anos, desde 2004, intensificaram-se em 2014 (depois da anexação da Crimeia pelos russos), e, com a atual guerra, o assunto ganhou importância redobrada.
“Existem organizações de russos ou pró-russos em Portugal, que o ACM reconhece como ucranianas. Estas organizações não têm ligações com a embaixada ucraniana, não trabalham com a comunidade ucraniana, mas apresentam-se como ucranianas”, diz Sadhoka. “Nós alertamos que isso não pode ser.”
Segundo fonte da embaixada, nas zonas geográficas onde atuam a Associação Mir, a EDINSTVO – Associação dos Imigrantes dos Países de Leste, a AMIZADE e a Associação Apoio ao Imigrante situações semelhantes podem ocorrer. O motivo? São as referidas associações pró-russas, mas que são reconhecidas como ucranianas pelo Alto Comissariado das Migrações (ACM).
Conhecem-se casos concretos?
Sem dar muitos detalhes, Pavlo Sadhoka aponta para a Junta de Freguesia de São Bernardo, que faz parte do município de Aveiro, câmara liderada pelo social-democrata José Ribau Esteves. Já o presidente de São Bernardo foi eleito pelo Movimento Independente Juntos por Aveiro.
Em Lisboa, também diz haver algumas denúncias e, no Porto, conta que a mulher do padre da Igreja Ortodoxa Russa organizou uma escola para crianças ucranianas. “Esta senhora é mulher de um homem que sempre mostrou ser pró-Putin e que demonstra ódio direto pelos ucranianos. Como é que podem estar a receber as nossas crianças, vindas da guerra, completamente vulneráveis?”, questiona o presidente da Associação de Ucranianos. Também em Gondomar, onde está sediada a instituição Amizade, há denúncias.
As autoridades foram avisadas?
A situação não é nova e o Alto Comissariado das Migrações foi alertado várias vezes. O Observador tentou contactar o ACM, mas não obteve qualquer resposta.
“Quando começou esta fase mais grave da agressão russa contra a Ucrânia, no dia 24 de fevereiro deste ano, alertámos o ACM outra vez: estas organizações, que sempre foram claras a apoiar a política de Putin, agora estão a receber refugiados ucranianos que fogem da agressão russa. Tivemos um encontro com a alta-comissária, ela disse que vai tentar fazer alguma coisa”, conta Sadhoka.
Além do Alto Comissariado das Migrações, os ucranianos queixaram-se a mais alguém?
Sim. Logo no início de abril, a associação de Sadhoka denunciou a presença em Portugal de “agentes de influência russos” numa carta enviada à secretária-geral do Sistema de Informações da República, Maria da Graça Mira Gomes. Na carta, acusavam a Rússia de “através das suas redes internacionais da propaganda e desinformação” criarem ONG que, “apesar de serem multiculturais nos seus estatutos, na realidade e estão diretamente ligadas à Embaixada da Federação Rússia”, lê-se na carta, datada de 2 de abril.
“O principal papel político destas organizações e destes agentes de influência russos infiltrados em Portugal é o de influenciar a comunidade ucraniana, desinformar a sociedade portuguesa e ocidental sobre a história da Ucrânia, da realidade social e política na Ucrânia, convencer os países ocidentais de que o território da Ucrânia sempre pertenceu à Rússia”, acusavam. A agravar a situação, apontava a associação, é que estas organizações em Portugal são reconhecidas pelo Alto Comissariado das Migrações.
“A Associação dos Ucranianos em Portugal e a Embaixada da Ucrânia em Portugal por várias vezes alertaram o ACM e os respetivos secretários de Estado da tutela sobre o inaceitável facto de a comunidade ucraniana em Portugal estar representada pelas associações que fazem parte das instituições de propaganda russa.”
Houve respostas às denúncias dos ucranianos?
A única conhecida foi do ACM que, a 24 de março deste ano, e apenas depois de a embaixadora da Ucrânia denunciar a situação na Rádio Renascença, respondeu àquela rádio.
Inna Ohnivets avisava que não só as associações pró-Rússia, com ligações à Embaixada de Moscovo, estavam a acolher refugiados ucranianos em Portugal, como era o próprio ACM a sugeri-las. Por considerar a situação um risco, expressou a sua preocupação ao Governo português, reforçando os seus receios no dia da entrevista junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
O que respondeu o Alto Comissariado?
Sónia Pereira, alta comissária para as Migrações, disse à Renascença que foi feita uma transposição para a secção SOS Ucrânia, do seu site, da lista de associações que já eram reconhecidas. Sobre as ligações políticas ao Kremlin, a resposta foi que aquela entidade não faz avaliações políticas, apenas técnicas.
Se os avisos são feitos há tanto tempo, por que motivo só agora se fala nisto?
“As pessoas precisam de histórias concretas”, diz a fonte da embaixada. E foi isso que aconteceu quando a história de Olga na autarquia de Setúbal foi tornada pública, pelo Expresso desta sexta-feira.
Houve repercussões políticas?
Sim. Em Setúbal, a autarquia comunista pediu a investigação ao Ministério da Administração Interna e afastou a técnica superior de acolhimento a refugiados. Já a secretária de Estado da Igualdade e Migrações, Sara Guerreiro, pediu com “carácter de urgência” ao Alto Comissariado para as Migrações “todas as informações e esclarecimentos” sobre o caso. O ACM está sob a tutela do Ministério dos Assuntos Parlamentares.
O PSD e a Iniciativa Liberal querem ouvir o presidente da Câmara Municipal de Setúbal, André Martins, no Parlamento, enquanto que o Bloco de Esquerda exige respostas de Ana Catarina Mendes, ministra com a tutela do ACM, e o Chega pede a intervenção de António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa.
Já o PCP, pela voz do secretário-geral, Jerónimo de Sousa, defendeu que a primeira questão é saber se “é um caso único” e não entender “o enfoque em relação à câmara” de Setúbal. Sobre se esta situação pode prejudicar o PCP, Jerónimo disse desconfiar que “esse é o objetivo”.
A autarquia avisou o Governo do que se passava?
A Câmara Municipal disse que sim, mas António Costa disse que não. Segundo a autarquia, o pedido foi feito por ofício: pedia-se que o primeiro-ministro se pronunciasse sobre as declarações da embaixadora da Ucrânia e “esclarecesse com a maior brevidade possível se o Alto Comissariado para as Migrações mantinha a confiança nesta associação, não tendo obtido resposta até ao momento”.
O gabinete de Costa, num comunicado de imprensa, afirmou que na referida carta não é solicitada qualquer informação sobre a Associação EDINSTVO, nem sobre o cidadão Igor Khashin. A carta “é um protesto sobre declarações prestadas pela embaixadora da Ucrânia em Lisboa, à CNN, e foi reencaminhada para os efeitos tidos por convenientes”, ou seja, o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Afinal, o que dizia a carta?
Na carta enviada ao primeiro-ministro, a que a Lusa teve acesso, o autarca de Setúbal apelava de fcato a Costa para clarificar as reais intenções e a veracidade das afirmações da embaixadora da Ucrânia numa entrevista à CNN Portugal — mas aquela em que esta revelava já ter tido uma conversa com a secretária de Estado Sara Guerreiro sobre o envolvimento de associações pró-russas no apoio a refugiados ucranianos. E em que dava como exemplo o EDINSTVO, chefiada por Igor Khashin.
“Apelamos, pois, com toda a veemência, que o senhor primeiro-ministro clarifique, com a máxima urgência, com a senhora embaixadora as reais intenções do que foi afirmado, assim como a veracidade das afirmações da diplomata no que respeita à conversa que terá mantido com a senhora secretária de Estado da Igualdade e das Migrações”, lê-se na carta. André Martins diz ainda que “importa saber se o Governo considera aceitável este tipo de ingerências de uma representante de um país estrangeiro e que, para cúmulo, as torne públicas, transmitindo a ideia de que o Estado português está disponível para, acriticamente, acolher tais ingerências”.