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AFP/Getty Images

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O cineasta que passou dois séculos a filmar

Hoje, Manoel de Oliveira será pela segunda vez um cineasta de consenso. O maior cineasta português merece um olhar objetivo e desapaixonado da sua obra, "sentida, sincera e significativa".

Em finais de 1963, Manoel de Oliveira esteve dez dias preso pela PIDE, por causa de alguns diálogos do seu documentário “Acto da Primavera”, sobre a encenação da Paixão de Cristo visto na aldeia transmontana da Curalha, e considerados subversivos pela polícia política do antigo regime. Rapidamente, o pequeno mundo do cinema português e da cultura se mobilizou para pedir a libertação do cineasta, e não apenas os nomes ligados à oposição.

Em dois abaixo-assinados, dirigidos, respetivamente, ao Presidente da República e ao Presidente do Conselho, gente do cinema ligada à oposição e à situação intercedeu por Oliveira, chamando-lhe “o maior cineasta português” e “um dos mais seguros valores da cultura portuguesa contemporânea”. Entre os subscritores das petições, à esquerda, estavam nomes como Paulo Rocha, Baptista Bastos, Fernando Lopes, Fernando Matos Silva, Manuel Guimarães, Nuno de Bragança, Roberto Nobre, Ernesto de Sousa, Rogério Paulo ou José Vaz Pereira. E à direita, António Lopes Ribeiro, Manuel Maria Múrias, Baptista Rosa, Fernando Guedes, Jorge Brum do Canto, Aquilino Mendes ou António Manuel Couto Viana.

Manoel de Oliveira originava assim, em seu redor, e embora por uma razão lamentável, um raríssimo consenso entre esquerdas e direitas culturais e cinematográficas. Hoje, na hora da sua morte, com 106 anos (era o mais velho realizador em atividade), Oliveira será, mais uma vez, um cineasta de consenso, mesmo para aqueles que, elogiando-o ou denegrindo-o, nunca se preocuparam muito em ver os seus filmes.

A verdade é que não é preciso babarmos na gravata pelo cinema de Manoel de Oliveira, plebiscitarmos cega, acriticamente e em bloco os seus filmes, incensarmos sem limites o realizador que nunca foi profeta no seu país, para assinalarmos a especificidade e o individualismo da sua sensibilidade estética, para reconhecermos a posição única e pessoal, inconfundível e independente – e porque não também saudavelmente controversa? -, que o autor de “Douro, Faina Fluvial”, ocupa na história do cinema português, e por extensão, no cada vez mais raquítico panorama da cultura nacional. Ele, que começou a fazer filmes no tempo do mudo, noutro milénio e noutro século, que é um pioneiro e um “primitivo” mas que não se esqueceu trilhar caminhos de vanguarda quando isso se justificava, e nunca para estar na moda.

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Algures entre o culto zelota de Oliveira e a execração fácil de Oliveira, está o ponto de equilíbrio que nos permite olhar de forma objetiva e desapaixonada para a sua obra. A obra “sentida, sincera e significativa”, como lhe chamou Alves Costa, é a de um criador que se tornou, como diziam os abaixo-assinados acima citados, “o maior cineasta português” e “um dos mais seguros valores da cultura portuguesa contemporânea.”

O jovem Oliveira

Foi com o pseudónimo de Rudy Oliver que Manoel de Oliveira, um jovem de uma família da alta burguesia do Porto, cujo pai teve a primeira fábrica de lâmpadas em Portugal, conhecido pelas suas proezas desportivas, começou a frequentar, em finais dos anos 20 do século passado, a escola de actores que o realizador italiano Rino Lupo tinha aberto no Porto.

Oliveira e o seu irmão Casimiro eram atletas destacados do Sport Club do Porto, onde praticavam atletismo e ginástica. O primeiro chegou a ser vice-campeão de salto à vara durante 3 anos, tendo servido de modelo para a estátua O Atleta, do escultor Henrique Moreira, feita para o Vilanovense Futebol Clube.

A obra "sentida, sincera e significativa", como lhe chamou Alves Costa, é a de um criador que se tornou, como diziam os abaixo-assinados acima citados, "o maior cineasta português" e "um dos mais seguros valores da cultura portuguesa contemporânea.”

O jovem Manoel de Oliveira era ainda apaixonado por carros, tendo corrido em Portugal e no Brasil, e tiraria também o brevet, no Aeroclube do Porto. Era mau aluno (frequentou um colégio de Jesuítas na Galiza) e boémio. Tinha uma tertúlia no Café Diana, na Póvoa do Varzim, frequentada por José Régio e Agustina Bessa-Luís, entre outros amigos. Gostava de cinema desde que o pai o tinha levado a ver o primeiro filme aos 5 anos, e em 1928 interpretou um dos papéis de “Fátima Milagrosa”, de Rino Lupo. Adivinhava-se uma carreira de actor. E a comédia atraia-o.

Em 1930, a revista “Imagem” publica fotos suas, considerando-o “um dos mais fotogénicos cinéfilos portugueses. Um ano antes, entusiasmado pelo filme “Berlim, Sinfonia de uma Cidade”, de Walter Ruttman, pela estética do russo Dziga Vertov e usando uma máquina de 35 mm oferecido pelo pai e com a colaboração de António Mendes, um guarda-livros seu amigo que gostava de fotografia, Oliveira já tinha começado a rodar “Douro, Faina Fluvial”, que montou depois em cima da mesa de bilhar de casa dos pais. A versão muda do filme estrear-se-ia no V Congresso Internacional da Crítica, realizado em Lisboa, em setembro de 1931, e foi mal acolhida pelos portugueses e elogiada pelos estrangeiros. Seria como que o mote para a receção de toda a sua futura obra. Em 1934, a versão sonorizada de “Douro, Faina Fluvial”, sonorizada e com música de Luís de Freitas Branco, seria exibida comercialmente, em complemento de “Gado Bravo”, de António Lopes Ribeiro.

Em 1933, Manoel de Oliveira entra em “A Canção de Lisboa”, de Cotinelli Telmo, no papel de um colega de faculdade rico da personagem de Vasco Santana, um galã que tenta ajudar o amigo cábula e boémio. Almeja também interpretar Dorian Gray numa versão do clássico de Oscar Wilde “O Retrato de Dorian Gray”, que o francês Marcel L’Herbier ia realizar em Paris (um dos seus projectos não concretizados, muito mais tarde, seria uma adaptação da mesma obra, com John Malkovich). O jovem desportista e actor e realizador envia a L’Herbier, por um amigo, fotografias e um excerto de um filme em que aparece, mas este responde com desinteresse, desencorajando o que poderia ter sido uma carreira internacional de galã.

Após vários projetos frustrados, Oliveira roda em 1937 duas curtas-metragens, “Miramar, Praia das Rosas”, e “Em Portugal já se Fabricam Automóveis”, e “Famalicão”, em 1941, este saborosamente narrado por Vasco Santana. Um ano antes, havia conhecido Maria Isabel Brandão Carvalhais. Abandona as competições desportivas e casa-se em dezembro de 1940. O casal terá dois filhos e uma filha.

O estilo

Em 1941, estreia a primeira longa-metragem, “Aniki-Bobó”, que namora o neo-realismo e é produzida por António Lopes Ribeiro, que não tem êxito comercial, e não consegue apoios oficiais para filmar. Vai dedicar-se durante 14 anos aos negócios da família e à agricultura, na quinta que a mulher tem no Douro, só voltando ao cinema em 1956 com “O Pintor e a Cidade”, fruto de um estágio feito um ano antes, na Alemanha, para estudar a cor no cinema e comprar aparelhagem.

Seguem-se “O Pão” (1959), “Acto da Primavera” (1963) e “As Pinturas do Meu Irmão Júlio” (1965). Em 1972, estreia “O Passado e o Presente”, graças ao apoio da Fundação Gulbenkian e do Centro Português de Cinema, a cooperativa de cinema que tinha fundado com outros realizadores. Um ano antes, a Filmoteca Espanhola tinha-lhe dedicado uma retrospetiva. É em “O Passado e o Presente” que o estilo “teatral” do cinema de Oliveira começa a afirmar-se, bastante influenciado por escritos de defensores do seu cinema, como Eduardo Prado Coelho, que assina um texto em que elogia e defende “o prazer do texto” e o primado do verbo naquela obra. O filme é também promovido em França, onde Prado Coelho consegue o “Le Monde” lhe dê atenção e espaço.

Em 1974, começa a rodar “Benilde ou a Virgem Mãe”, segundo José Régio, e totalmente a contrapelo do cinema “revolucionário e de massas” que predomina em Portugal após o 25 de Abril, e que se estreia em 1975.

É em “O Passado e o Presente” que o estilo "teatral" do cinema de Oliveira começa a afirmar-se, bastante influenciado por escritos de defensores do seu cinema, como Eduardo Prado Coelho

Os velhos do Restelo. E Agustina

O PREC traz a ocupação selvagem da sua fábrica de passamanaria, herdada do pai, que fecha em 1976, após 72 anos de laboração. Endividado, Manoel de Oliveira tem de vender a sua casa e vira-se para o cinema, com uma adaptação de “Amor de Perdição”, de Camilo Castelo Branco, em seis episódios para a RTP (1978), estreada no ano seguinte em versão para cinema e primeiro título da sua tetralogia dos amores frustrados.

De novo, o filme é muito mal acolhido em Portugal, devido à anticonvencionalidade da linguagem cinematográfica de Oliveira, muito ligada à palavra, à teatralidade da encenação, à duração do plano fixo e ao debitar neutro dos actores, mas bem recebido no estrangeiro, especialmente em França. Nasce a matriz do Oliveira “chato”, impopular e incompreendido no seu país, do autor “intelectual” de costas viradas para os espetadores, sendo decifrado e elogiado apenas por um círculo restrito e bem-pensante, e celebrado e premiado no estrangeiro, sobretudo na Europa.

Oliveira começa, também, a filmar com uma regularidade que nunca cessará até hoje, e para a qual é fundamental o encontro com o produtor Paulo Branco em “Francisca” (1981), filme que marca igualmente o início da sua colaboração com Agustina Bessa-Luís (Oliveira e Branco, só separarão os seus caminhos em 2005, após “Espelho Mágico”). As décadas de 80 e 90 são as da definitiva consagração crítica e internacional do realizador.

Um mundo aos seus pés

Além das retrospetivas, e das homenagens fora de portas, os filmes de Manoel de Oliveira começam também a aparecer com assiduidade nos principais festivais de cinema internacionais. Entre muitos outros, “A Carta” teve o Prémio do Júri, em Cannes, em 1999. Manoel de Oliveira recebeu também o Leão de Ouro de Carreira no Festival de Veneza de 2004, e uma Palma de Ouro de Carreira pelos seus 100 anos, no Festival de Cannes de 2008.

Em “O Convento” (1995), John Malkovich e Catherine Deneuve surgem no elenco, e os filmes de Oliveira passam a contar, regularmente, com a sua presença, bem como de outros intérpretes de renome mundial, como Irene Papas, Michel Piccoli, Stefania Sandrelli ou Marcello Mastroianni. Este faz com ele o seu derradeiro filme, o autobiográfico “Viagem ao Princípio do Mundo”, em 1997.

Em “O Convento” (1995), John Malkovich e Catherine Deneuve surgem no elenco, e os filmes de Oliveira passam a contar, regularmente, com a sua presença, bem como de outros intérpretes de renome mundial.

Entretanto, Oliveira multiplica-se em registos, formatos e autores adaptados e experiências várias, de uma grande produção histórica sobre grandes derrotas portuguesas (“Non, ou a Vã Glória de Mandar”, 1990) a uma comédia burlesca filmada na Mouraria (“A Caixa”, 1994), passando pelos últimos tempos da vida de Camilo, um dos seus autores favoritos (“O Dia do Desespero”, 1992), pela evocação da sua infância e juventude, e do Porto dessa época (“Porto da Minha Infância”, 2002). E filma Agustina, Régio, Vieira, Claudel (o longuíssimo e elaboradíssimo “O Sapato de Cetim”, 1985, que teve uma histórica sessão na Cinemateca), escritores menos conhecidos como Álvaro Carvalhal, algumas curtas e até um teledisco para Pedro Abrunhosa, “Momento, em 2002”.

Entre os seus filmes mais recentes contam-se “Belle Toujours” (2006), uma continuação de “Bela de Dia”, de Buñuel, “Singularidades de uma Rapariga Loura” (2009), sobre o conto de Eça de Queiroz, “O Gebo e a Sombra” (2012), adaptando a peça de Raul Brandão, e que á a sua última longa-metragem, e curtas como “Painés de São Vicente de Fora-Uma Visão Poética” (2010),  “O Velho do Restelo” (2014) e “Chafariz das Virtudes” (2014), o “trailer” desse ano da Viennale-Festival Internacional de Cinema de Viena.

O realizador deixa acabado, mas inédito, o documentário “Visita, ou Memórias e Confissões” (1982), com base num texto de Agustina, que só será visto após a sua morte. É um filme sobre a casa do Porto onde Manoel de Oliveira  viveu e constituiu família, e que teve que vender depois do 25 de Abril, para pagar ao banco a dívida da empresa fundada pelo pai, e ocupada pelos operários.  Como dizia Oliveira: “A grande diferença entre a arquitectura e o cinema é que a arquitectura não mexe e o cinema, por vezes, mexe demasiado”.  O filme que deixou para vermos após o seu desaparecimento junta ambas as artes.

(Este texto revê, completa e actualiza um texto biográfico publicado no ‘Diário de Notícias’ quando dos 100 anos de Manoel de Oliveira)

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