Reportagem em Berlim
Os clientes entram e saem do restaurante Azzam com a mesma cadência com que o naco de kebab gira no espeto. A sala está a abarrotar, é um vai e vem de de árabes e hipsters alemães agarrados a pratos de falafel e húmus. O chá é por conta da casa e as doses são muito generosas, pois claro, ou não ditasse a tradição árabe que a comida deve ser partilhada por todos os que tiverem um farrapo de pão para a agarrar. O Azzam é um dos pontos de encontro mais usados para a interacção entre árabes e alemães no bairro multiétnico de Neukölln, no sudeste do coração de Berlim, onde mais de 40% dos habitantes têm raízes no Médio Oriente. “Era a ‘pequena Palestina’; no último ano, com a chegada dos sírios, passou a ser a ‘pequena Damasco”, diz o palestiniano Raouf, um dos empregados. A conversa mais habitual por ali é comida. Mas não hoje: “Há clientes tão chocados com o ataque terrorista que até deixam mais comida no prato”.
O libanês Abbas, de 25 anos, de malas feitas para umas férias na Grécia — “os imigrantes também fazem férias”, atira –, discute com um amigo iraniano os contornos do atentado que na segunda-feira matou 12 pessoas no mercado de Natal de Breitscheidplatz. “Não pensem que nós não sentimos a mesma tristeza que vocês”, começa por avisar o estudante de património cultural que, há dois anos, trocou Baalbek, no norte do Líbano, pela Alemanha. “Lembrei-me logo do atentado do Estado Islâmico em Beirute, no ano passado, que matou 40 pessoas, e senti a mesma raiva e frustração que sinto agora”.
Não obstante, a comunidade árabe reconhece que há uma diferença entre os muitos atentados que sofrem em casa e este, ocorrido no seu país de acolhimento; lá, são apenas vítimas, aqui são tidos por muitos alemães como responsáveis, apenas por partilharem a mesma proveniência que os terroristas. “Os alemães? Vamos ter calma, porque se eu não gosto de generalizações sobre o meu povo, também não gosto de usar o termo ‘alemães’. Eu confio que as pessoas aqui são educadas e não misturam as coisas. Quem fez isto foram criminosos, cobardes, gente que usa o Islão para a matança. Não a comunidade árabe, que trabalha aqui no duro há muitos anos com o reconhecimento e admiração dos berlinenses”.
Estamos a meio da tarde de quarta-feira e Ralph Jäger, ministro do Interior da região de Renânia do Norte-Vestfália, anuncia oficialmente que o tunisino Anis Amri, de 24 anos, é procurado como principal suspeito da autoria do atentado, depois de ter deixado o seu cartão de identidade debaixo do banco do camião que, ao que tudo indica, conduziu para a carnificina. Mais: divulga que o homem mais procurado da Europa já estava debaixo do radar dos serviços nacionais de contra-terrorismo e que tinha, inclusivé, uma ordem suspensa de deportação.
Para o palestiniano Waed Adlah, de 31 anos, é o pior dos pesadelos. No intervalo de tempo entre a libertação do primeiro suspeito, um requerente de asilo paquistanês, e a incriminação de Amri, acalentou esperanças de que nenhum muçulmano estivesse envolvido. Agora, teme o que o espera. “Eu estava em França na altura do ataque ao Bataclan e, por causa do mau ambiente que se gerou em relação aos árabes, decidi vir para aqui”, diz o professor de árabe, entre uma baforada e outra num narguilé do café Salam. “Sei que em Berlim há mais tolerância, mas tenho a certeza de que nos próximos tempos as coisas vão azedar. E se aqui for mau, na Alemanha Oriental vai ser pior. Os ataques racistas vão crescer ainda mais”.
Abbas e Waed são ateus, daqueles que toleram a existência de Deus nas almas mas o querem ver longe da política. Mas Taner Cevdet não. Já a noite está gelada em Berlim quando o turco, incondicional apoiante de Recep Erdogan, abandona a mesquita Sehitlik, nos limites de Neukölln. Sensivelmente à mesma hora, a polícia anunciava a recompensa de 100 mil euros para quem fornecesse informações decisivas para a captura de Anis Amri, a extrema-direita alemã organizava protestos nas imediações do local do atentado e outros grupos faziam contra-manifestações denunciando simultaneamente a xenofobia e o radicalismo islâmico. “Eu acredito que alguns ensinamentos do Corão possam ser úteis ao funcionamento de uma sociedade, como o vestuário ou a punição exemplar de criminosos”, diz Cevdet, de 48 anos, proprietário de um supermercado turco em Berlim desde 2003. “Mas isso não faz com que acredite no terror. Aliás, o Corão explica bem o que fazer a quem mata inocentes. Acredito que as pessoas se devam entregar a Alá por convicção, não pela força, e que o Estado Islâmico é neste momento o maior inimigo dos fiéis”.
Um dia antes, Hekmat, um engenheiro jordano, explicava-me peremptoriamente a relação dos muçulmanos com o Estado Islâmico: “Todos os ateus no Médio Oriente odeiam o Estado Islâmico. E todos os religiosos, inclusive salafistas não-jihadistas, também. Entre estes, alguns abrem uma excepção quando falam da luta do Estado Islâmico no Iraque… dizem que a sua presença é importante como último reduto da resistência sunita contra a investida xiita. Sobram os jihadistas, os seus únicos apoiantes, que são radicalizados através de propaganda na net e dos sermões de imãs obstinados pelo poder”.
Ainda não é clara a forma como o tunisino Anis Amri se radicalizou. Natural de Tataouine, no empobrecido sul do país, rumou a Itália em 2011, pouco depois da primeira revolução da Primavera Árabe ter derrubado o ditador Ben Ali. Antes do êxodo, foi detido várias vezes por abuso de drogas. Segundo informações dadas pelos investigadores aos media alemães, terá permanecido em Itália três anos até chegar à Alemanha em julho de 2015, tendo requerido asilo somente em abril desde ano. Tudo aponta para que a sua aproximação ao jihadismo tenha acontecido em território germânico. Em janeiro, começou a ser vigiado pelo Centro Alemão de Contra-Terrorismo — uma plataforma que une os esforços da polícia e dos serviços secretos — por ameaçar a segurança pública devido às suas ligações ao islão radical e aparente disponibilidade para cometer atentados.
Os indícios de um crime iminente foram agora conhecidos, mas estavam na posse das autoridades há vários meses: no início do ano, terá mostrado interesse na compra de uma pistola; em julho, envolveu-se numa briga com facas por causa de droga; e um dos investigadores disse até que, com base em escutas telefónicas, havia suspeitas da intenção de praticar um ataque terrorista. Sem que tenha havido uma confirmação oficial, correm rumores que chegou mesmo a estar detido no verão, na localidade de Friedrichafen, por documentação falsa (usou mesmo seis identidades diferentes, com naturalidades da Tunísia, do Egipto e do Líbano).
Certo é que o seu pedido de asilo foi recusado em junho, mas a sua deportação ficou suspensa porque as autoridades tunisinas nunca enviaram (até esta quarta-feira) à Alemanha a documentação necessária. Ralph Jäger, ministro do Interior da região de Renânia do Norte-Vestfália, revelou que o nome do suspeito surgiu no início de dezembro no seio da unidade anti-terrorismo, mas o seu rasto já estava perdido. Apesar de ter morada registada na sua região, “era muito móvel”, afirmou o político. Com todas estas falhas, ainda não justificadas pela polícia, chegou o tunisino ao camião que assombrou o Natal de Berlim.
Como se não bastasse, os serviços de inteligência tinham conhecimento da sua proximidade com imãs radicais, como Abou Walaa, conhecido como “o imã sem rosto”, um apoiante iraquiano do Estado Islâmico, de 32 anos, que está preso desde novembro, com o fundamentalista turco Hasan C, funcionário de uma agência de viagens em Duisburgo, e com Boban S, propagador da jihad em Dortmund.
Não é de agora que a Alemanha é terreno fértil para o aparecimento de pregadores radicais: células salafistas distribuíram às claras exemplares do Corão com adendas de apelo à guerra santa, o cristão convertido Pierre Vogel disseminou o radicalismo com alargada cobertura mediática e Sven Lau comandou os seus discípulos da “Polícia da Sharia” em patrulhas urbanas com o objectivo de persuadir os árabes a comportarem-se em conformidade com a lei islâmica.
Se os alemães, mesmo os mais tolerantes, expressam hoje incredulidade pela inoperância policial, os árabes vão ainda mais longe: “Na minha região, qualquer imã que surja com um discurso radical e criminoso é considerado um pecador e é corrido a pontapé pelos próprios fiéis”, diz o libanês Abbas. Waed confessa não entender a inércia da polícia diante das denúncias de radicalismo. “Tanto em França como aqui, muitos árabes queixam-se à polícia de que, em determinadas mesquitas, o discurso dos eclesiásticos está a tornar-se ameaçador. Em Wuppertal, dezenas de muçulmanos denunciaram as práticas de Sven Lau. A policia demorou dois anos a detê-lo. Sabe quantos jovens pode ele ter convencido a combater na Síria durante esse período de tempo?”. E até Cevdet não mostra contemplações: “O imã da nossa mesquita é um homem de paz. Aliás, vários cristãos visitam-nos aqui, sem problemas. Nem podia ser de outra forma… No dia em que ele sugerisse o terror, ia porta fora”.
O libanês, o palestiniano e o turco têm mais medo pelos outros do que por eles próprios; afinal, estão blindados por vistos de residência e de estudante e o seu estatuto de imigração não vai ser colocado em causa. O mesmo não podem dizer os refugiados. No centro de acolhimento de Templehof, ainda dentro do perímetro do bairro, localizado no antigo hangar do aeroporto edificado pelos nazis, impera um blackout desde que na terça-feira jornalistas de todo o mundo apareceram para investigar a vida do residente Nevad B, o primeiro suspeito do atentado, entretanto libertado. Ammar Wazzaz, um sírio de meia-idade, vem fumar um cigarro à porta e fura o silêncio com um sussurro num inglês básico: “Nós não somos o problema. Eles são monstros”.
Nas ruas de Neukölln, os refugiados também são os mais fragilizados. Entre cabeleireiros com letreiros em árabe, talhos halal e o fumo aromático dos cachimbos de água, este é o único bairro de influência árabe em que é possível ver mulheres com o cabelo pintado de verde a beber café no mesmo local que homens árabes de bigode a jogar gamão. A síria Jumana H., 24 anos, estudante de arquitectura, tem um estilo que chama a atenção: combina um hijab com um grosso piercing no nariz. “Eu vim para a Alemanha só com o meu irmão mais novo, portanto uso o que me apetece”, diz. “Foi em Berlim que me emancipei, que percebi que posso ser quem quero e não o que os outros desejam que eu seja. O terror é contra essa liberdade. E eu não vou tolerar que ma tirem”.
O curdo Abdul, de 25 anos, ainda não recuperou do choque. No ano passado, abandonou a martirizada cidade síria de Qamishli e fixou-se em Istambul, onde a vida não é muito fácil para os curdos, especialmente para os que vêm da Síria. Através da internet e de relatos de amigos, soube que a Alemanha estava a abrir os braços aos refugiados e fez-se à estrada. Em dez dias, atravessou a fronteira terrestre para a Grécia, enfrentou a ira dos macedónios e dos húngaros, alternou largas caminhadas com viagens de comboio, até chegar ao sonho prometido de tirar um mestrado em engenharia mecânica em Berlim. Na segunda-feira, o refugiado saiu de casa às 19h para comprar bolachas para oferecer à família. Recomendaram-lhe três mercados de Natal: o de Alexanderplatz, o de Alt-Rixdorfer e o de Breitscheidplatz. Abdul escolheu o do meio. Se tivesse optado pelo último, podia ter sido atropelado pelo camião de Anis Amri. Quando chegou a casa, pousou as bolachas e viu o massacre na TV: “Nem dá para acreditar que o terror de que fugi fez a mesma viagem que eu”.