A bicicleta, como chamava Jean Monnet à Europa, precisa que se pedale para que não caia. Mas a bicicleta tem custos de manutenção. Até agora não se ultrapassou a barreira dos 1% de Rendimento Nacional Bruto (RNB) de contribuição por cada Estado-membro, mas com a saída do Reino Unido — um contribuinte líquido do orçamento comunitário — o valor tem de aumentar para que não se reduzam os apoios essenciais para novos desafios (como o combate às alterações climáticas) e para o apoio às regiões mais pobres, incluindo portuguesas, com a quebra da dotação dos fundos de coesão. Irá a União Europeia começar a fechar a torneira no orçamento 2021-2027?
A guerra de números já começou: a posição do Parlamento Europeu (onde socialistas, PPE, liberais e verdes estão unidos) propôs que a contribuição seja de 1,3% por Estado-membro, a Comissão Europeia defende 1,1%, o governo Português considera que o mínimo aceitável é 1,16% e a presidência finlandesa, a 2 de dezembro, apresentou uma proposta ainda mais conservadora: de 1,07%. Com este último valor — longe de ser consensual — o mais provável era Portugal perder apoios nos fundos. Boa notícia: dificilmente passará. O governo português vai ser um dos países a enfrentar a proposta da Finlândia já no próximo Conselho Europeu de 12 e 13 de dezembro e conta ter o apoio de, pelo menos, mais 17 Estados-membros.
Antes da análise aos números, a política. Embora o governo finlandês seja da família política do PS (do grupo dos S&D), António Costa protestou de imediato contra a proposta finlandesa. No próprio dia 2 de dezembro, quando foi conhecida a “negobox” finlandesa, António Costa definiu mesmo a proposta como “o que a União Europeia não precisava” e disse que “deve ser claramente rejeitada“.
É uma proposta de confronto com a maioria no Conselho e de conflito institucional com o Parlamento Europeu. Em suma, tudo o que a UE não precisava. Deve, por isso, ser claramente rejeitada.
— António Costa (@antoniocostapm) December 2, 2019
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, no dia seguinte (3 de dezembro) veio apoiar a posição do primeiro-ministro: “O que disse o primeiro-ministro é o que pensa o Presidente . Aquela proposta é inaceitável. É inaceitável na ótica de Portugal, pois defendemos exatamente o oposto daquilo: o reforço da capacidade orçamental da Europa”.
Eurodeputados do PSD e do PS “unidos” contra proposta finlandesa
Dois dos quatro relatores da equipa negocial do Parlamento Europeu para o próximo quadro europeu são portugueses: José Manuel Fernandes, pelo Partido Popular Europeu (PPE), e Margarida Marques, pelos Socialistas & Democratas (S&D). Ambos estão frontalmente contra a proposta finlandesa.
Em declarações ao Observador, a eurodeputada socialista e relatora do grupo dos S&D no Parlamento Europeu para o Quadro Financeiro Plurianual (QFP) 2021-2027, Margarida Marques, concorda que a proposta finlandesa está “completamente aquém do que é a ambição do Parlamento Europeu” e, portanto, “manifestamente insuficiente“.
O eurodeputado do PSD e relator indicado pelo PPE para o QFP, José Manuel Fernandes, diz ao Observador que é “contra a proposta”, uma vez que “não leva em conta as prioridades na comissão” e ainda “agravam o corte” que se previa com a proposta da Comissão Europeia. Ambos os eurodeputados revelam que as duas famílias políticas, bem como os liberais (Renew Europe) e os Verdes estão “unidos” a bater-se pela posição do Parlamento Europeu.
O Parlamento Europeu, como explica José Manuel Fernandes, fez um sistema “bottom up“, de baixo para cima, em que os eurodeputados perguntaram a cada comité, quanto precisariam para cada programa. Margarida Marques também destaca que os 1,3% propostos pelo Parlamento Europeu “não é um número fetiche” e que após essas questões feitas aos comités chegou-se ao valor global.
Já a presidência finlandesa, terá feito o contrário, o que não é propriamente uma surpresa. Já em outubro o governo finlandês, que está com a presidência rotativa da UE, tinha anunciado que ira propor um intervalo entre os 1,03 e os 1,08%, o que vários Estados-membros (incluindo Portugal) rejeitaram desde logo. Como rejeitam agora os 1,07%.
Mas não é só o número global que incomoda na proposta finlandesa. É também a forma como o “bolo” está a ser distribuído. A Política de Coesão, área que tem particular interesse para Portugal (dos fundos comunitários), leva obviamente um corte (apesar de um aumento no segundo pilar da Política Agrícola Comum).
Na parte onde estão incluídos os fundos de coesão há uma quebra, como se vê na tabela acima, de 54.916 milhões de euros na proposta finlandesa face à posição do Parlamento Europeu (de 404.718 milhões para 346.582).
Neste particular, Margarida Marques e José Manuel Fernandes contestam ainda outras propostas que estão na “negobox” finlandesa, desde logo as mexidas no co-financiamento de programas nas zonas mais pobres da União Europeia. Atualmente, a UE co-financia projetos dos fundos de coesão de 85% nas regiões mais pobres e, de acordo com a proposta finlandesa, o co-financiamento não pode exceder os 70%. Ora, os eurodeputados portugueses estão contra esta alteração, já que isso pode aumentar o número de projetos financiados, mas poderá comprometer alguns projetos por haver pouca disponibilidade financeira para investir nas zonas mais desfavorecidas do espaço comunitário. E, claro, afetará as regiões mais pobres em Portugal.
A Finlândia o “polícia mau” (outra vez). E Costa, o senhor 1,16%
A Finlândia está, mais uma vez, a ser o “polícia mau”. Já em 2011, em plena crise, a Finlândia foi o último país a aprovar o resgate a Portugal, o que até motivou um movimento social e a produção de um vídeo (apoiado pelo então comentador Marcelo Rebelo de Sousa) a explicar aos finlandeses algumas conquistas do povo português e também lembrar que em 1940 Portugal ajudou um país pobre chamado Finlândia.
A Finlândia acabou por aprovar o apoio a Portugal, que conseguiu a ajuda financeira da UE. Agora, não dirigido especificamente a Portugal, mas em algo que está a ser visto como um ataque aos países da coesão (e aos que mais recebem da UE), a Finlândia volta a defender uma posição mais conservadora.
Os países que têm sido mais intransigentes na ideia de não ultrapassar os 1% são a Áustria, a Holanda, a Dinamarca e a Suécia. A Alemanha também tem em regra uma posição conservadora de não ultrapassar o número mágico de 1%. Em contrapartida há 18 países (um deles é Portugal) que são contra a proposta da presidência finlandesa e depois há quatro numa posição mais neutral. Foi assim no último Conselho Europeu, quando a presidência finlandesa ainda só tinha falado do intervalo (1,03% a 1,08%). Agora, com os 1,07% em cima da mesa, será igual. E, na prática, os 1,07% são 1,04%, uma vez que, para estas contas, passa a valer o fundo de ajuda a África (que estava fora das contas e que representa 0,03%).
Já António Costa propôs, no seu papel de negociador, que fosse 1,16%. A eurodeputada Margarida Marques garante que o primeiro-ministro português até estaria disponível para aceitar os 1,3% (que Portugal também teria de pagar) propostos pelo Parlamento, mas opta por defender um valor que fosse conciliador. Mas porquê 1,16%? “O número não é por acaso. É aquilo que os Estados-membros têm de contribuir para manter o mesmo nível de contribuição tendo em conta a saída do Reino Unido”, explica Margarida Marques.
A eurodeputada socialista destaca que António Costa lidera — dentro do grupo de primeiros-ministros dos S&D — a contestação a esta proposta. E vai contra um membro da sua família política. O chefe de governo finlandês, Antti Rinne, faz parte dos S&D, num governo de coligação. O mesmo Antti Rinne que, no dia seguinte a anunciar a proposta, se demitiu. Ou seja: a meio da presidência finlandesa da UE, a Finlândia ficou sem primeiro-ministro.
O eurodeputado do PSD, José Manuel Fernandes, fala de um “mau serviço” prestado pelo governo finlandês, mas deixa a hipótese desta proposta fraca ser uma espécie de isco. Isto para depois os chefes de governo virem dizer que conseguiram subir o valor e o Conselho poder justificar o facto de dar um valor abaixo do Parlamento Europeu.