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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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O domingo de votos (e de desfecho adiado) com uma família de uma favela e outra de um bairro de classe média alta

Leonardo e Karina vivem no Complexo da Maré, conjunto de comunidades pobres. Paulo e Mónica na Barra da Tijuca, próximo da casa de Bolsonaro. O Observador acompanhou o domingo destas duas famílias.

Carlos Diogo Santos e João Porfírio, enviados especiais do Observador ao Rio de Janeiro, Brasil

O complexo da Maré é uma favela cercada por três eixos rodoviários importantes do Rio de Janeiro: Avenida Brasil, Linha Amarela e Linha Vermelha. Dentro dessas três linhas não há polícia, quem manda é a fação TCP (Terceiro Comando Puro). Encontrar um caveirão (carro blindado) da Polícia Militar encostado a uma das comunidades que compõem aquele aglomerado tem sempre uma razão — a deste domingo eram as eleições.

Lá dentro, Leandro Gomes e a mulher Karina nem estranharam os três polícias fardados à porta da escola Municipal Professor Paulo Freire, onde foram votar às 10h30. É a primeira vez que ali vão: mudaram-se há cerca de um mês, com o filho Arthur, de seis anos, para uma casa com dois quartos na Vila do Pinheiro — uma das muitas comunidades da Maré. Leandro e Karina nasceram na favela, cresceram na favela e cruzaram-se na Assembleia de Deus. 13 anos após se terem encontrado, este domingo estavam desencontrados: ele votou em Bolsonaro, ela em Simone Tebet.

Dez horas depois, os resultados que viriam a aparecer no plasma de Paulo Duarte, 57 anos, e Mónica Duarte, 52 anos, no condomínio Santa Mónica, Prédio San Diego, na Barra da Tijuca, não eram os que Leonardo esperava: Lula começava a ganhar vantagem em relação ao atual presidente. Ali, numa torre de classe média-alta da zona Oeste do Rio, a dez minutos do condomínio da família Bolsonaro, Paulo também estava dececionado — o seu candidato, Ciro Gomes, ficara abaixo de Simone Tebet. Só Karina e Sónia tinham razões para um sorriso.

O Observador passou o domingo com estas duas famílias cariocas de mundos distintos, com aspirações diferentes, que tentaram fugir ao clima da bipolarização e que partem agora para mais um mês campanha com muito receio do que aí vem. Mónica nem sabe sequer se vai votar a 30 de outubro: “Nenhum me representa”.

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A manhã na casa nova da Vila do Pinheiro, onde Arthur já tem um quarto

“No meu caso, eu não quero votar nem em Lula, nem em Bolsonaro. Ele já é mais para lado do Bolsonaro, entendeu? Então, para quem está na minha situação é ainda mais complicado, porque o candidato que eu queria votar, eu sei que não ganhará nunca”. Karina pensou em tudo antes de tomar a sua decisão: até vivia melhor na era Lula, mas há algo que não tolera: “Para mim, roubo é roubo. Fez? Fez, sim. A gente não pode tirar esse mérito dele, o salário mínimo aumentou, fez muita coisa, mas tem esse envolvimento [com processos]. E, por outro lado, o Bolsonaro pegou o país durante uma pandemia e não teve que fazer”.

Mas também nunca ponderou votar em Bolsonaro. Aliás, já pediu até ao marido para não ver vídeos do Presidente perto de si: “Acho que o Bolsonaro fala muita besteira. Incomoda-me a forma como ele fala das mulheres. Quando o Leonardo está assistindo um vídeo de Bolsonaro me incomoda, entendeu? Aí quando eu quero assistir de outro candidato, como foi o debate da Simone, ele ficava falando que ela não ia fazer nada. A gente acabou brigando e eu disse-lhe: ‘Olha só, então, a partir de hoje, para não ter esse choque, você não assiste mais teu Bolsonaro, porque eu não estou conseguindo ver as propostas de outro candidato’”.

Pouco antes das 10h estavam os dois na sala, com os olhos fixados na televisão que tanto gera discussão lá em casa, já vestidos para irem votar — o filho Arthur, que agora já tem um quarto e está lá a brincar, não os deixou dormir para além das 7h. Leonardo está com menos esperança no olhar do que Arthur, tem um jeito reservado de quem teve tudo menos uma vida facilitada durante os últimos anos.

“Eu fiquei desempregado logo no início da pandemia, em 2020, e só consegui voltar ao mercado depois da Karina — que também ficou desempregada na mesma altura. Foi em março deste ano que voltei a trabalhar, mas antes disso eu fui fazendo biscates aqui e ali”, conta Leonardo Gomes, de 31 anos.

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O sufoco de uma pandemia e o que Bolsonaro não fez

Sem rendimentos — tirando seguro de desemprego — e sem direito a uma das bandeiras de Bolsonaro, o Auxílio Brasil (por terem o tal seguro), o casal conta ter vivido um verdadeiro teste na relação — teve inclusive de pedir ajuda para comer. A dada altura, começaram a vender lanches para fora: Karina fazia as marmitas e Leonardo entregava de mota — e quando chegava desinfetava-se da cabeça aos pés, até porque ali, na Maré, nunca ninguém conseguiu conter ajuntamentos, nem sequer chegavam máscaras apropriadas.

Leandro não concorda com tudo o que Bolsonaro fez durante a pandemia — até porque conhecem pessoas que sofreram muito com a pandemia, que morreram –, mas vai tentando sempre arranjar uma forma de desvalorizar alguns erros, quem o conta é a mulher, lembrando que nisso tanto os apoiantes de Lula como de Bolsonaro são iguais.

Mas o passado e todos os erros do governo na pandemia já estão lá atrás — Karina tem um trabalho novo, como assistente de escritório, a 2 horas e meia de distância de transportes e Leonardo também já se safou — conseguem agora levar, no total, para casa 3500 reais por mês, a renda da nova casa é 800. Por volta, das 10h15 já tinham organizado tudo para não haver enganos. “A gente já separou nossa identidade. O papelzinho com os candidatos, né? Para não chegar lá na hora e falar ‘Caraca, não é esse número’”, explicava Karina, enquanto Leonardo aproveitava os últimos momentos para ir ao terraço da construção em tijolo onde vivem por a roupa a secar: “Essa é a tarefa dele”.

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A casa da família fica entre duas bocas de fumo — locais onde os que mandam na favela estão em permanência e fortemente armados. Numa dessas bocas, logo após saírem de casa, um homem está de pé com um fuzil 556 e ao seu lado vê-se um emaranhado de fones dos ‘rádios’ que usam para se comunicar. É o dia-a-dia da família.

Por entre as ruas a abarrotar de gente, vão falando com quem aparece, a caminhar sobre um chão colorido, forrado com milhares e milhares de pequenos cartões alusivos aos muitos candidatos — se fora da favela é proibido fazer campanha no dia da votação, ali as regras são outras. Há pessoas, maioria mulheres, a entregar cartões, há bicicletas a passar com bandeiras e até o carrinho da senhora que vende pipocas está forrado com cartazes do candidato “Felipe Brasileiro”.

A família sobe ao segundo piso da escola para enfrentar filas como nunca tinha visto e por lá ficou mais de uma hora. Cá fora, havia até quem tentasse negociar a passagem à frente na fila com um voto num candidato. “Você vai à sua escola, procura um fiscal e fala que quer votar no Miguel, candidato a deputado federal”, aconselhava uma delegada daquela escola a quem se queixava de ter de enfrentar filas ainda maior no seu local de voto.

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Os evangélicos “não são só evangélicos” e “são críticos”

Ainda que neste momento estejam afastados da igreja evangélica que frequentavam, a Assembleia de Deus, “por causa de pessoas”, o caso de Leonardo e Karina encaixa em parte na análise que Magali Cunha, investigadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e fundadora do Coletivo Bereia, projeto de fact checking de conteúdos religiosos, faz ao Observador sobre o apoio da ala evangélica a Jair Bolsonaro nestas eleições.

“A população conta muito e as pessoas não são só evangélicas. Elas têm uma identidade religiosa, mas são muito mais coisas na vida para além da religião. O perfil dos evangélicos no Brasil é fortemente um perfil de mulheres. Na casa de 60% de moradores de periferia, pessoas negras ou pobres, com renda até um salário mínimo e meio”, começa por contextualizar, para explicar como não há uma ligação direta entre ser evangélico e votar em Bolsonaro.

Num dos vários locais de votação no Complexo da Maré o chão foi invadido por papeis de apelo ao voto às mais diversas campanhas
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A entrada do local de voto devia ser um local sem "contaminação" de qualquer tipo de campanha política mas os eleitores até entrarem eram abordados para que votassem num determinado candidato
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Havia distribuição de panfletos políticos e houve quem aproveitasse para fazer negócio
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Karina e Leonardo saem de casa com o seu filho para votar
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Leonardo tem a responsabilidade em casa de estender e apanhar roupa
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Grandes eram os ajuntamentos junto à entrada da escola onde estava a decorrer a votação
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A votação decorreu sem qualquer incidente de maior
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As esperas para votar naquele local ultrapassavam as duas horas
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As esperas para votar naquele local ultrapassavam as duas horas
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“O perfil de que falo é o das pessoas que mais sofreram com a redução de direitos, com a desestruturação da vida, especialmente durante a Covid. Famílias inteiras desapareceram, sofreram muito os efeitos da doença. Então, essas pessoas são evangélicas, mas elas avaliam a vida. E há um movimento crítico, em primeiro lugar de mulheres — quando nós vemos as sondagens, desde 2018, as mulheres foram as que menos votaram por Bolsonaro. Se mulheres são a maioria evangélica, isso acompanha o movimento da sociedade”. Karina enquadra-se nesta descrição.

A especialista vai ainda mais longe, para se referir também à idade: “Os jovens também não votam maioritariamente em Bolsonaro e entre os evangélicos, a maioria está entre 20 e 40 anos. Temos, por isso, um perfil de população que faz a crítica que, como no passado votou em Lula pensando em projetos, volta a pensar em projetos também. E sabe avaliar que perderam com Bolsonaro, que até podem ter apostado antes nele e ele não correspondeu àquilo que se imaginava”.

Na Barra da Tijuca, Paulo foi de camisa preta votar

Na hora em que o casal vota na Maré, Paulo e Mónica ainda não tinham chegado à escola onde exercem o direito de voto, na Barra da Tijuca. E às 11h, quando lá entraram, desistiram, contam ao Observador sentados no sofá da sua casa, pouco passava das 20h, enquanto assistiam à divulgação dos resultados eleitorais. Depois voltaram às 16h e mesmo assim a fila era grande, mas o ambiente não era pesado como receavam. “A gente sentiu que lá o clima, a energia do pessoal na fila, era bem legal, assim, leve, sem pressão”, conta Paulo, lembrando que lá em casa ninguém seguiu os pedidos dos candidatos de irem vestidos com determinadas cores, como se fossem exércitos. Ele foi de preto em protesto: acha Lula um arrogante mais disfarçado e Bolsonaro um arrogante que não disfarça.

“Eram duas forças muito intensas, de lados opostos e todo mundo pedindo para as pessoas irem de camisa ou vermelha ou amarela. Eu fui de preto e tinha muita gente de preto. E isso era um voto de protesto”.

Lá em casa também há dois extremos: Paulo gosta de votar, Mónica nem por isso. “Eu voto porque eu sou obrigada, ele gosta da energia de ir lá”. Tudo se complica quando, por volta das 20h30, se confirma que o país vai mesmo à segunda volta. Na televisão,  sintonizada na Globo News, surge a informação de que já estão contabilizados 88,55% dos votos: Lula (PT) tinha 46,93%, Bolsonaro (PL) 44,48%, Simone Tebet (MDB) 4,32% e Ciro Gomes (PDT) 3,08%.

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Paulo e Mónica no sofá, na noite de todas as dúvidas

“A minha dúvida vai ser entre nulo ou branco”, reagiu Mónica de imediato, soltando um sorriso e bebendo um gole de Guaraná. Paulo também diz não saber o que fazer agora: “Nenhum dos dois me representa. Eu achava que o Ciro, em quem eu votei, tivesse uma expressão maior, mas ele é muito técnico”.

Bolsonaro incomoda muito ali, num apartamento a poucos quilómetros da sua casa, também na Barra da Tijuca: a última frase que deixou a família perplexa foi quando disse ao lado da mulher e de Marcelo Rebelo de Sousa ser “imbrochável”. “Disse isso do lado da mulher e a mulher acha isso bonito. Ele se supera”, continua Mónica, sendo interrompida pelo marido: “E o que ele fez agora, lá em Londres… No velório da rainha, isso nos envergonha”.

Uma opinião muito diferente da das centenas de pessoas que por esta hora ainda estão à porta de Bolsonaro a fazer uma grande festa, que acabaria por esmorecer quando Lula se começa a distanciar nos números — muito potenciado pela contabilização dos votos do Nordeste do país, um reduto do PT.

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“Vivia-se melhor, eu próprio tinha mais renda, mas vivia-se do crédito nesse período do PT, o país não crescia”, diz o engenheiro civil de 57 anos, enquanto na televisão se confirma que o governador do Rio de Janeiro será Cláudio Castro, o candidato apoiado por Jair Bolsonaro: “No caso do Rio, o Castro é melhor [do que o Freixo, apoiado por Lula]. Uma opinião que provavelmente não terá o apoio dos filhos de ambos, que votaram no PT, contra Bolsonaro, tal como já haviam feito na eleição passada.

Às 21h14, Ciro começa uma curta conferência de imprensa, com tom sério e todos se calam para ouvir: “Estou profundamente preocupado, pelo que eu estou assistindo acontecer no Brasil. Como vocês sabem, eu vou fazer 65 anos de vida e tenho 42 deles dedicados ao amor, à minha paixão Brasil. Eu nunca vi uma situação tão complexa, tão potencialmente ameaçadora sobre a nossa sorte como nação. Por isso, eu peço a vocês que me deem mais algumas horas para conversar com os meus amigos, conversar com meu partido, para achar o melhor caminho, o melhor equilíbrio”.

“Uhm… vai decidir para que lado vai, eu tinha visto no Instagram que se estava pedindo para ele parar de bater no Bolsonaro, porque o presidente do partido estava se aproximando do Bolsonaro. De repente o partido vai apoiar o Bolsonaro. Pela maneira como ele falou ali, não parece muito satisfeito..”, rematou Mónica, insistindo que ele não está confortável. Também a sua candidata, Simone Tebet não oficializou este domingo quem vai apoiar, mas ao contrário de Mónica fez saber que tem um posicionamento: ” Eu já tenho um lado, não esperem de mim omissão”.

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