Um dia antes do jogo do Sporting com o Boavista, que lhe valeu o título de campeão nacional, o diretor nacional da PSP fez uma última tentativa junto do Governo para travar a vontade do clube de celebrar. Magina da Silva desaconselhava por completo o terceiro dos três cenários traçados para os festejos previstos para a noite de 11 de maio: o cortejo com a equipa na via pública. Mas a resposta do ministro da Administração Interna foi clara. “As três alternativas referidas foram analisadas na reunião de sexta-feira passada. A Câmara de Lisboa e o SCP acordaram com a terceira alternativa”, escreveu Eduardo Cabrita.
Magina da Silva tinha enviado o e-mail no dia 10, dirigido ao secretário de Estado Adjunto da Administração Interna, Antero Luís, clarificando os três cenários que a PSP tinha apresentado numa reunião prévia no próprio MAI — onde também tinham estado representantes da autarquia, do Sporting e até da Direção Geral da Saúde — com as respetivas vantagens e desvantagens. A preferência era pela solução dos festejos dentro do estádio com acesso restrito e limitado de pessoas, numa segunda hipótese podia montar-se um recinto improvisado no Marquês de Pombal, e só a última previa o desfile na via pública — um cenário que a PSP desaconselhou mesmo e que acabou por ser o validado.
Antero Luís reencaminhou a Magina da Silva a resposta de Cabrita, acrescentando que, considerados “os argumentos apresentados por todas as entidades envolvidas na reunião de sexta-feira, dia 7 de maio, considerando as recomendações da DGS, deve a PSP articular-se com a com a CML e o SCP”. Para a Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI) este contacto do diretor nacional revelou mesmo ser um “momento-chave” e foi “vital” para analisar a atuação da PSP nos festejos do Sporting, porque foi “a última tentativa da PSP, para evitar a realização dos festejos nos moldes propostos pelo SCP”.
No entanto, esta tarde de sexta-feira, Eduardo Cabrita, que nada fez em relação a este pedido da PSP, nem sequer o referiu quando apresentou as conclusões do relatório da IGAI — um documento que avaliou a atuação policial nos festejos do Sporting e que foi tornado público pouco depois, embora ocultando os nomes de todos os titulares de altos cargos públicos envolvidos no planeamento da festa.
Sporting já tinha contactado Secretário de Estado Adjunto dois meses antes
Ainda o país estava em estado de emergência com restrições apertadas para combater a pandemia, com elevado número de contágios, internamentos e mortes, e já o Sporting estava a contactar o gabinete do secretário de Estado Adjunto da Administração Interna, Antero Luís, para pedir uma reunião preparatória para os festejos do SCP. Faltavam dois meses para a 32.ª jornada do Campeonato Nacional de Futebol.
O responsável do Sporting, cujo nome foi omitido por causa da Lei de Proteção de Dados, contactou aquele elemento do Governo, também de nome ocultado, porque ambos já se tinham cruzado em serviço. E assim poderia ser mais fácil passar as barreiras das limitações impostas pela pandemia. Mas a resposta foi que era prematuro atender à questão, porque ainda se estava longe do campeonato e a situação pandémica não permitia um planeamento a tanto tempo.
Câmara de Lisboa contactou PSP para começarem a planear festejos
No entanto, depreende a IGAI depois de todos os documentos e testemunhos analisados, já havia também contactos entre o Sporting e a Câmara Municipal de Lisboa. E, em abril, foi a própria autarquia que contactou o Comando da PSP de Lisboa para uma reunião preparatória para os festejos. A PSP acabaria por recusar, argumentando ser um período incerto na saúde pública para tal definição, até porque o evento podia ser proibido. Aliás, como têm sido proibidas ou limitadas tantas outras atividades.
A 3 de maio a Câmara voltava a contactar o comandante do Comando da PSP de Lisboa numa espécie de lembrete, mostrando-se completamente na disponibilidade para juntos prepararem o evento. A IGAI insiste que tal demonstra que Sporting e autarquia andavam a estabelecer contactos. Três dias depois a autarquia presidia a uma reunião nos Paços do Concelho onde estão representantes do Sporting, do Cometlis e da Polícia Municipal.
Sporting. Parecer da PSP tinha três cenários alternativos para a festa, nenhum foi acolhido pelo MAI
O Sporting propôs festejos na via pública com um cortejo do autocarro com a equipa pela cidade, passando pela Praça do Marquês de Pombal e a receção da equipa nos Paços do Concelho, como o Observador então noticiou. Mas a PSP deixou logo o aviso: em plena pandemia não pode haver festejos na rua. O próprio Fernando Medina, segundo uma testemunha, reconheceu que “era uma equação difícil”. No entanto, estavam de acordo que mais valia organizar algo, do que haver uma organização espontânea — que certamente iria haver, visto o Sporting não ser campeão nacional há 19 anos.
A IGAI reconhece que neste encontro a PSP foi “pouco assertiva” e que acabou a dizer que adequava o dispositivo policial ao que fosse decidido.
Além dos festejos, o pedido da manifestação
A 7 de maio, paralelamente ao planeamento dos festejos, chegava o pedido de manifestação da Juve Leo e do Diretivo Ultra XXI à Câmara de Lisboa. Segundo a IGAI, que entre as recomendações que agora faz é que seja revista a lei das manifestações, a autarquia, “sem qualquer análise crítica”, limitou-se a encaminhar o pedido para a PSP e para o MAI.
Perante aquele pedido, a PSP ainda advertiu a autarquia que percebesse qual era o objetivo concreto da manifestação e lembrou que no pedido se falava na presença de ecrãs gigantes — o que potencia a aglomeração incontrolável de adeptos. A Câmara voltou a responder com essa clarificação, depois de contactar os promotores. A PSP de Lisboa decidiu, então, contactar o delegado de saúde que deu um parecer contrário à realização do evento e comunicou também essa informação à Câmara. Mas nunca obteve qualquer resposta. A Câmara diz que nunca chegou a saber desta posição.
A IGAI concluiu que, ao acatar a manifestação, a “Câmara condicionou a atuação da PSP”, que teve que tratar o evento como tal.
A reunião do MAI que acabou inconclusiva, mas que afinal Cabrita diz que teve conclusões
Nesse dia 7 de maio, pelas 17h00, houve uma reunião do MAI, em Lisboa. Participaram a PSP, o Sporting, a Câmara, a DGS, o MAI, e o secretário de Estado Adjunto da Administração Interna (que desconheciam ainda o pedido da manifestação). Esta reunião acabou por revelar-se inconclusiva, depois de o Sporting insistir no cortejo da equipa de Alvalade até ao Marquês
A IGAI refere que a PSP, quer através da Direção Nacional da PSP, quer através do Comando de Lisboa, opôs-se sempre ao modelo dos festejos, preferindo sempre a solução dentro do estádio — como aliás tinha acontecido um ano antes no Porto. Mas “o Sporting seria irredutível na decisão de promover o desfile”, mesmo após as intervenções da PSP e da Direção Geral da Saúde, contrária ao evento. Aliás, o representante da DGS disse mesmo que, do seu ponto de vista, a “equipa devia desaparecer” logo após o jogo. E nunca misturar-se na multidão.
Nesta reunião um elemento da Direção Nacional da PSP alertou mesmo para as experiências negativas com o trio elétrico / cortejo, sobretudo em ruas estreitas com prédios, dizendo ser preferível optar por festejos e espaços controlados, como o interior do estádio. Por outro lado, era incongruente fazer festejos quando diariamente a PSP tentava dispersar pessoas do miradouro de Santa Luzia. Era preciso pensar na mensagem que tal iria passar.
Quando começou o jogo, já a situação estava descontrolada
A manifestação das claques do Sporting estava prevista para as 14h00 e, duas horas antes do evento, a própria PSP contactou o promotor da manifestação a dizer que não podiam usar veículos de transmissão de som e imagem e que seria colocado um gradeamento à volta para controlar as entradas e saídas. Mas à hora do evento não havia gradeamento e às 16h00 continuavam no local os carros que acabariam a transmitir o jogo.
O Comando da PSP de Lisboa diz que estava à espera da resposta da câmara para agir, mas o ministro da Administração Interna quer, mesmo assim, que agora seja aberto um processo autónomo para apurar porque é que as ordens policiais não foram seguidas.
PSP sem mãos a medir. Até um colégio foi forçado a fechar por causa dos petardos
A partir daqui, segundo todo o material que a IGAI recolheu, a PSP não teve mãos a medir. Na zona do Lumiar foi detetado um grupo de adeptos a retirar paralelepípedos de pedra do passeio e a guardá-los para uso futuro e começaram a ouvir-se rebentamentos de petardos. Os adeptos estavam já a multiplicar-se.
Pelas 16h19, a PSP teve mesmo que dar ordens à gerência de um externato nas proximidades para telefonar aos encarregados de educação para que fossem buscar as crianças o mais rapidamente possível, devido ao rebentamento de petardos. Houve rebentamento de material pirotécnico em várias ruas de Lisboa, levando ao corte do trânsito em diversos locais por precaução. Pelas 18h35 foi mesmo lançado um petardo para dentro de uma farmácia.
Festejos do Sporting. Clube não respondeu à IGAI para apurar responsabilidades da PSP
A equipa do Boavista chegou ao estádio e foi recebida com petardos e tochas. Junto ao edifício da NOS deflagrou um pequeno foco de incêndio. Pouco depois, a PSP teve de chamar os serviços de limpeza da autarquia dada a quantidade de lixo no chão — entre o qual garrafas que mais tarde podiam servir de arma de arremesso. E o centro comercial Alvaláxia foi encerrado por excesso de lotação.
As coisas só começaram a acalmar quando o jogo principiou, pelas 20h30. No intervalo voltaram a intensificar-se e depois a escalada de agressividade por parte dos adeptos deu-se no final, com a vitória.
Entre as 21h00 e as 24h00, a PSP efetuou 178 disparos de arma de munição de menor letalidade junto ao estádio. Entre as 24h00 e as 4h20 foram 439 junto ao Marquês de Pombal, onde os adeptos arrancaram gradeamentos, a PSP resgatou um adepto com uma camisola do Benfica e o INEM atendeu 70 feridos, quatro deles polícias.
Atuação policial não merece “censura disciplinar”
Segundo a IGAI, que considerou que a atuação global da PSP não é digna de “censura disciplinar”, todos “os circunstancialismos” em que a PSP teve que intervir colocariam, porém, sempre esta “entidade sob alçada de um olhar sindicante de legalidade da opção tomada”.
Na sequência da intervenção policial, foram feitas duas queixas-crime e uma delas deu origem a um inquérito na IGAI. Há um outro processo disciplinar por causa dos ferimentos causados a um menor. A IGAI propõe que estes processos sejam todos concentrados num só.
O Ministério da Administração concordou. Também concordou com a necessidade de rever a lei da manifestação, sugerindo à IGAI que faça um pedido de parecer à Procuradoria Geral da República, para depois propor uma alteração à lei.
Nestes 60 dias que a IGAI teve para analisar a atuação da PSP, segundo o relatório, o Sporting foi das únicas entidades contactadas que não respondeu ao pedido de atas, relatórios de reuniões, planos, correspondência trocada e outras informações que a IGAI fez. “Nenhuma das informações solicitadas ao SCP foram remetidas aos autos de inquérito, até ao seu encerramento”, lê-se no relatório.
Um fator referido na tarde desta sexta-feira por Eduardo Cabrita e que mereceu uma reação do Sporting, a dizer que colaborou em tudo. A IGAI diz mesmo que convocou um elemento do departamento jurídico do Sporting para testemunhar, mas ele não compareceu, nem justificou a sua ausência.