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"As Mulheres de Maria Lamas" exibe as fotografias feitas pela artista na reportagem etnográfica e sociológica que deu origem ao livro "As Mulheres do Meu País" (1950)
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"As Mulheres de Maria Lamas" exibe as fotografias feitas pela artista na reportagem etnográfica e sociológica que deu origem ao livro "As Mulheres do Meu País" (1950)

"As Mulheres de Maria Lamas" exibe as fotografias feitas pela artista na reportagem etnográfica e sociológica que deu origem ao livro "As Mulheres do Meu País" (1950)

O esplendor e a miséria das mulheres portuguesas pela objetiva de Maria Lamas

Maria Lamas percorreu Portugal no final dos anos 40 e captou imagens da vida, da pobreza e do trabalho das mulheres. Fotografias perenes de vidas aprisionadas à terra para ver na Fundação Gulbenkian.

Caminha entre pedregulhos, tem a cabeça coberta por um longo lenço negro, equilibra sobre si própria um cântaro de água. Segue na paisagem serrana como se andasse à beira do Nilo, há milhares de anos, caminha menina ainda, como se fosse Lianor cantada por Camões, no século XVI. É um vulto sem tempo porque é de todos os tempos e de todas as geografias onde a condição da mulher está atavicamente ligada à terra, ao trabalho, à miséria, à servidão.

Essa imagem, colhida por Maria Lamas, escritora, repórter, poeta, ativista política, é apenas uma entre as 150 que fez, ao longo de dois anos, entre 1949 e 1950, percorrendo todo o país para dar conta de como viviam as mulheres portuguesas de todas as classes sociais. Este trabalho, que foi inicialmente publicado em fascículos, deu origem ao livro As Mulheres do Meu País, um documento singular e corajoso sem o qual a condição feminina, num país católico, ditatorial, pobre e onde as mulheres estavam atadas a tradições milenares, teria ficado parcialmente obscurecida.

O livro que resultou desse trabalho foi efetivamente publicado, em 1950, mas foi totalmente obnubilado pelo regime salazarista. A segunda edição só sairia em 2002 e, agora, 67 das fotografias recolhidas para esse projeto são, pela primeira vez, mostradas ao público, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, numa exibição intitulada As Mulheres de Maria Lamas que tem a curadoria de Jorge Calado que, quis deixar bem claro às dezenas de jornalistas presentes na visita de imprensa: “Maria Lamas não era feminista, nem ativista, nem woke“.

Menina de 15 anos, que nunca saiu das serranias minhotas. Uma imagem que transcende tempos, geografias e culturas. Desde sempre a mulher é aquela que carrega a água, no corpo prenhe ou na cabeça

Não sabemos o que pensaria hoje, Maria Lamas, que chegou a fazer parte do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas e dedicou a vida a militar politicamente para denunciar as condições infames em que viviam as mulheres, na cidade e no campo, na família e nas ruas, no centro e nas margens. Sabemos que as gerações de mulheres e homens que irão ver esta exposição vão dizer que ela foi uma feminista sim, no sentido em que o feminismo é uma luta pela igualdade, e que pior do que lhe chamar feminista é querer à partida mostrar o trabalho de uma mulher rebelde impondo-lhe as fronteiras do olhar de um homem que insistiu antes em dizer que “Maria Lamas era uma mulher que amava muito as filhas e a família”. Um curador no Portugal dos anos 40 não diria melhor.

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A grandeza de Lamas, uma mulher cujo olhar transcendeu as fronteiras do país, do neo-realismo vigente, e que percebeu nas mulheres uma gramática de gestos corpóreos que as ligam à pré-histórica Vénus de Wilendorf, com o seu corpo fértil e nutridor, até à jovem Primavera, pintada pelo renascentista Sandro Boticelli, dispensa certamente qualquer tipo de fronteiras.

Nas imagens de Maria Lamas, o preto e branco é eloquente e aqueles corpos femininos fundem-se com a paisagem, com a casa, com os instrumentos de trabalho, com os animais. Os seus braços estão sempre ocupados carregando crianças, puxando animais, carregando canastras, cestas, bilhas à cabeça.

“Sou irmã das multidões que passaram, em tropel, espezinhadas e pediram justiça e pediram amor”, escreveu Maria Lamas na sua autobiografia. Sobre este projeto, onde ela juntou a repórter, a investigadora, a antropóloga, a fotografa e a poeta que havia em si, escreveu “fui ao encontro das minhas irmãs portuguesas” e, de facto, ela fez sempre questão de se incluir neste retrato, embora nunca surja uma foto dela, apenas junto a uma menina já com a cabeça coberta por um lenço. Note-se que no interior, praticamente até aos anos 70, as mulheres deveriam cobrir a cabeça com um lenço, como sinal de pudor.

Sozinha, com uma máquina fotográfica não muito sofisticada, esta jornalista e escritora atravessou o país, andando muito a pé, em carros de bois, carroças, autocarros. Nunca tinha fotografado antes e não voltou a fazê-lo depois. Contudo, o seu olhar era o de uma virtuosa, não tanto por talento, mas “pela empatia que estabelecia entre o seu olhar e os corpos, os rostos, fotografados”, diz Jorge Calado.

Mulheres a trabalharem numa mina de carvão

O curador reforça que embora haja pouca probabilidade de ela ter conhecido o trabalho dos fotógrafos americanos que retrataram as consequências da crise de 1929, o registo realista da reportagem nunca cai numa estetização da pobreza — antes, cada uma daquelas mulheres, nas suas múltiplas idades, surge elevada, dir-se-ia mesmo, sublevada. Ou, pelo menos, era isso que a fotografa lhes queria dar a ver: a sua imensa dignidade como potência para se elevarem da sua condição milenarmente subalterna. A sua potencia de sublevação evidenciada nos braços tantas vezes levantados.

Nas imagens mostradas em formato de prova de contacto, deixa-se o desafio ao espectador, o de olhar para o pequeno, o que exige tempo para um encontro e para uma decifração, tudo tão contrário à arte monumental que vigora por estes dias. Nas imagens de Maria Lamas, o preto e branco é eloquente e aqueles corpos femininos fundem-se com a paisagem, com a casa, com os instrumentos de trabalho, com os animais. Os seus braços estão sempre ocupados carregando crianças, puxando animais, carregando canastras, cestas, bilhas à cabeça.

Rapariga de 21 anos com o seu primeiro filho, na Serra da Estrela

São mulheres belas e precocemente envelhecidas, cobertas de negro dos pés à cabeça, descalças, fugidias entre as casas de pedra, vergadas nos campos vigiadas por homens. Arrancadas ao movimento perpétuo da vida elas nunca estão quietas, e raramente estão sozinhas. Nos seus rostos não há tristeza, nem resignação, nem cansaço, há uma espécie de graça, uma infinita doçura que é uma forma sábia de vencer a vida. Como escreve Jorge Calado no catálogo da exposição: “Nas imagens de Maria Lamas, decisivo não é o instante, mas a pessoa — a mulher em ação, dona do seu corpo e dominando o seu instrumento de trabalho”.

Sendo ela uma figura intelectual ligada ao Neo-realismo, que  militou na esquerda com o MUD, fez campanha pelo general Norton de Matos até se exilar em Paris, em 1962, depois de já ter sido presa três vezes, nunca a revolta ou a agressividade transparecem no seu trabalho, nem nas mulheres do seu país. Mostrando-as a suportar cargas, a manusear objetos de trabalho, mas nunca em procissões, atos religiosos ou mesmo domésticos, Maria Lamas quis mostrar como, longe de serem “as fadas do lar” que a propaganda do regime difundia, estas mulheres faziam parte da força de trabalho que ajudava a mover o país, mesmo que fossem da história dele apagadas. Neste sentido o livro de onde nasce esta exposição, As Mulheres do Meu País, publicado há quase 75 anos,  é mais do que uma denúncia: é um laboratório da experiência feminina, a experiência da repórter e a experiência das retratadas.

No momento em que o mundo coloca os holofotes sobre as mulheres artistas, trazer à luz o trabalho de Maria Lamas é ainda recordar a todas as gerações que o caminho de muitas mulheres, artistas ou camponesas foi árduo e está longe de está terminado. Por outro lado, esta mostra põe em relevo a importância da reportagem jornalística.

Considerado um marco dos direitos humanos em Portugal, este livro também tornou a escritora alvo de uma apertada vigilância por parte da polícia política o que a obrigou a fugir, primeiro para a ilha da Madeira e depois para Paris, onde conheceu Marguerite Yourcenar e viveu o Maio de 68. Regressou na Primavera Marcelista e, depois do 25 de Abril, aderiu ao PCP.

Nascida em Torres Novas, em 1893, educada num colégio de freiras, os pais impuseram-lhe cedo uma figura feminina modelo, Jeanne D’Arc, e ela cresceu melancólica, demasiado atenta às injustiças do mundo. Foi amante do escritor Ferreira de Castro, autor de A Selva, casou duas vezes e duas vezes se divorciou. Começou a trabalhar como jornalista, escreveu sob pseudónimos vários, e dirigiu durante anos a insuspeita revista Modas e Bordados. O seu caminho de emancipação da figura masculina culmina, de certa forma, neste trabalho, onde ela se identifica com estas mulheres num mundo sem homens (de todas as fotografias mostradas só numa aparece a figura de um rapazinho perdido na paisagem).

Retrato de Maria Lamas pintado por Júlio Pomar

No final dos anos 40, apenas três anos antes de Ingmar Bergman filmar, na Suécia, o corpo nu de Harriet Andersson, em Mónica e o Desejo (1953), em Portugal as mulheres ainda se cobriam de negro, usavam lenços compridos como véus com os quais escondiam o rosto do frio e do calor. Olhamos as imagens desta mostra como quem olha hoje para imagens do Irão ou do Afeganistão, mas é no Algarve, no Minho, na Serra da Estrela, o que nos mostra como neste país o tempo estava fechado, adormecido numa servidão medieval, onde as mulheres e as crianças eram as principais vítimas, porque desapossadas de qualquer poder monetário ou simbólico.

No momento em que o mundo coloca os holofotes sobre as mulheres artistas, trazer à luz o trabalho de Maria Lamas é ainda recordar a todas as gerações que o caminho de muitas mulheres, artistas ou camponesas foi árduo e está longe de está terminado. Por outro lado, esta mostra põe em relevo a importância da reportagem jornalística, numa altura em que o género, que melhor serviu para denunciar as injustiças do mundo, está cada vez mais secundarizado e disperso.

Para lá das fotografias, são exibidos ainda objetos pessoais da artista, algumas da primeiras edições dos seus livros e traduções, o retratado que dela pintou Júlio Pomar e o seu busto em gesso da autoria Júlio de Sousa. Estão ainda expostas obras de outros fotógrafos contemporâneos de Lamas, como Artur Pastor, Lyon de castro, Domingos Alvão, entre outros.

A exposição “As Mulheres de Maria Lamas” fica patente até dia 28 de Maio, no átrio da biblioteca de arte da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

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