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O esquema do Barça, os treinos na mata e os raspanetes: como era o Felgueiras onde Jesus apontou o caminho a Sérgio

Jesus estreou-se como sénior em 1974, ano em que nasceu Conceição. Hoje são amigos e comandam Sporting e FC Porto. Pelo meio, em 1996, tiveram um ano comum em Felgueiras... com algumas pegas.

O tempo passa depressa e, agora que olhamos para o Cartão de Cidadão e seu chip (onde é que já vai essa coisa do Bilhete de Identidade e da impressão digital que nos esborratava o dedo), percebemos que já tem 52 anos. José Leal mantém a mesma discrição como pessoa que tinha como jogador, mas sente-se reconhecido quando alguém o aborda, ainda para mais falando de futebol. Empolga-se. Dá entoação ao que diz. Ele é assim e também gosta desse tipo de jogadores e treinadores: aguerridos, que vibram, que gesticulam, que vivem o que fazem. É por isso que, a meio da conversa, junta duas pessoas com quem se cruzou em 1995/96: “Sempre disse aos meus amigos que, quando o Jesus fosse campeão pelo Sporting e saísse para outro clube, ia logo buscar o Sérgio”.

Internacional A por 15 ocasiões, começou a jogar no Repesenses, estreou-se como sénior no Viseu e Benfica, foi para o AC. Viseu e esteve cinco temporadas no Sporting, entre 1989 e 1994, antes de passar por Belenenses, E. Amadora e Santa Clara. Era central, alto e rijo, mas também jogava como lateral esquerdo. Ou era lateral esquerdo, alto e rijo, mas também jogava como central. Nunca se percebeu ao certo qual era a sua posição original, mas cumpria bem nas duas. Ou nas três: no Felgueiras, em 1995/96, era o central da esquerda num esquema de três defesas que tinha como criador Jorge Jesus e como um dos intérpretes Sérgio Conceição. Foi há mais de 20 anos que, pela única vez, os atuais técnicos de Sporting e FC Porto se cruzaram nas longas carreiras que levam no futebol.

“Lembro-me bem desse ano, muito bem mesmo”, destaca em conversa com o Observador. “Já nessa altura se falava muito do Jesus, com a diferença que, à exceção de nós, pouca gente o conhecia. Tive grandes treinadores ao longo da minha carreira, no Sporting por exemplo, mas era diferente trabalhar com ele. Tantos anos depois de me ter estreado como sénior, nunca tinha feito o aquecimento antes do jogo como fazíamos com o Jesus”, recorda, admitindo que poderia haver ali influência vinda de Barcelona, onde o treinador estagiara um mês em 1993.

Antigos jogadores elogiam a paixão e a mentalidade à frente no tempo de Jesus no Felgueiras

AFP/Getty Images

Amaral era outro dos “consagrados” da equipa. Campeão mundial Sub-20 em Riade (marcou o golo decisivo na meia-final com o Brasil), fez a primeira temporada como sénior em 1988/89 no Ac. Viseu e regressou ao clube de formação, o Sporting, antes de trocar os leões pelo rival Benfica em 1994. Após uma época na Luz, chegou com 26 anos ao Felgueiras. “Para mim foi uma temporada que me correu muito bem a nível pessoal. Em termos de Felgueiras também foi muito falada, mas a verdade é que, no final, não conseguimos o que queríamos”, resume.

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“Já vi isso escrito há pouco tempo, que era o Koeman de lá por jogar na posição dele no Barcelona. Éramos uma equipa que jogava bem, dava gosto. Mas havia outra coisa mais importante que nos prendia e que ainda hoje acho que nos puxava a todos nós, jogadores, para seguirmos a carreira de treinador: a paixão e a entrega que tinha aos treinos e aos jogos. Às vezes o Jesus podia ser até agressivo, da mesma forma como, quando estávamos mais cansados, podíamos responder. E isso aconteceu-me uma vez, que até fez com que saísse dos convocados”, explica o antigo defesa, prosseguindo: “Mas isso não nos afastava, pelo contrário: unia-nos mais. Porque aquilo que o Jesus queria de nós era concentração e entrega no trabalho. Podíamos falhar um golo de baliza aberta que não nos dizia nada, são coisas que acontecem; mas se nos distraíssemos num posicionamento que tivéssemos treinado e falhássemos numa marcação que desequilibrasse toda a equipa, aí dava raspanete…”.

“Nunca tinha feito o aquecimento antes do jogo como fazíamos com o Jesus. Podia até ser agressivo, da mesma forma como, quando estávamos cansados, podíamos responder. Isso aconteceu-me uma vez, que até fez com que saíasse dos convocados (...) Tinham uma boa relação, o Jesus gosta de jogadores como o Sérgio”, recorda Leal

“Jogávamos um futebol bonito, positivo e tínhamos uma tática arrojada para aquele tempo porque nenhum clube com a dimensão do Felgueiras arriscava jogar em 3x4x3. Para mim, e também para o Sérgio Conceição que jogava pela direita como eu, foi um desafio e todos tivemos de nos adaptar a esse estilo de jogo. Treinos? Os treinos eram bons, mas tenho de admitir que era exagerado: muito longos, com muita informação, muita carga. Lembro-me que já tínhamos a nossa posição mais ou menos definida e ainda íamos para a mata. Era demais… Mas também no caso de Jesus é normal, porque estava a fazer a sua primeira época na Primeira Liga. Acredito que tenha mudado e evoluído, ganhando mais experiência e melhorando alguns pontos como treinador”, defende Amaral.

Aos 20 anos, Sérgio Conceição, que nos anos anteriores tinha rodado no Penafiel e no Leça, foi um dos reforços do Felgueiras nessa temporada. Tinha tanto de raçudo como de talentoso e a sua personalidade forte e rebelde não passava ao lado dos mais velhos, como Leal. Nem do próprio Jorge Jesus, que recordou há uns anos uma história engraçada que teve com o então extremo que colocou a fazer todo o corredor direito. “Estava a dar uma ordem ao Sérgio, ele respondeu qualquer coisa que não me lembro, respondi-lhe depois outra coisa que não gostou. Mandou um pontapé numa garrafa de água em frente ao banco e acertou no presidente”, disse o técnico leonino.

Sérgio Conceição esteve cedido a Penafiel e Leça antes de passar pelo Felgueiras e voltar ao FC Porto

Mike Hewitt/Allsport/Getty Images

Não foi a única pega que tiveram. Uma vez o plantel estava a analisar o vídeo de um jogo anterior e Sérgio Conceição respondeu torto às críticas de Jesus num golo sofrido, o que gerou um momento de tensão na sala. Outra vez, o ala colocou mesmo em causa a forma como a equipa estava montada, porque nesse encontro se via em constante desvantagem numérica no lado direito, e acabou a treinar uns dias nos juniores. “Mas tinham uma boa relação. O Jesus gostava e gosta desse tipo de jogadores, da mesma forma como esses jogadores gostam de aprender com um Jesus. O Sérgio passou por vários clubes europeus e teve grandes escolas, mas acredito que algo do que ele é hoje como treinador foi beber a esses tempos em que passou pela nossa equipa com o Jesus. E são dois treinadores que vibram no campo, são intérpretes do espetáculo”, salienta Leal.

“Desde que o conheci que ficámos amigos, gosto muito do Sérgio. Tinha estado na época anterior com o Joaquim Teixeira no Leça e, mesmo sendo muito jovem, era um jogador muito empenhado, lutador, guerreiro, sofrido da vida mas amigo do próximo. Demo-nos muito bem, até por jogarmos em posições que nos ligavam em campo. Via-se que tinha muita qualidade. Versão treinador? Naquela altura e com a idade que tinha era impossível perceber, aos 20 anos o que queremos é aprender para sermos melhor como jogadores”, frisa Amaral.

“Jogávamos um futebol bonito, positivo e tínhamos uma tática arrojada para aquele tempo. Os treinos eram bons, mas muito longos. Lembro-me que já tínhamos a nossa posição definida e ainda íamos para a mata. Era demais, mas acredito que tenha evoluído (...) Desde que o conheci que ficámos amigos, gosto muito do Sérgio. Era um jogador muito empenhado, lutador, guerreiro, sofrida da vida mas amigo do próximo. Via-se que tinha muita qualidade”, diz Amaral

Em resumo, a paixão pelo jogo, a dedicação ao trabalho e a vontade constante de inovar são características comuns a ambos. Mas o futebol evoluiu e hoje procuram o mesmo objetivo (a vitória no Campeonato) com enfoques distintos. Exemplo: enquanto Jesus continua a trabalhar mais a vertente tática da equipa para capacitar os jogadores de conhecimentos para mudar de esquemas durante a partida face às necessidades, Sérgio dá maior enfoque na construção de um grupo unido e que esteja comprometido com a mensagem. O que não quer dizer que um e outro não liguem às outras vertentes não mencionadas, entenda-se.

Mas vamos regressar ao Felgueiras de 1995/96, a equipa meteorito que subiu à Primeira Liga nesse ano mas voltou a descer no final da temporada. Havia um guarda-redes brasileiro consagrado em Portugal (Zé Carlos), uma defesa batida (Leal, Abel Silva e Rui Gregório, entre outros), um meio-campo e um ataque que misturava juventude e experiência (Costa, Amaral, Sérgio Conceição, Clint e Lewis) e um avançado de 1,66 metros que jogava basquetebol em Trinidad e Tobago e que apareceu que nem uma flecha em clubes nacionais secundários (Earl). Foram o destaque da primeira volta, ocupavam o sétimo lugar à 13.ª jornada, começaram a perder e acabaram na 16.ª e antepenúltima posição, apenas a um ponto de Leça e Desp. Chaves, que se conseguiram “safar” in extremis.

“Na primeira volta estávamos quase a lutar pela Europa, sem que esse fosse o objetivo, mas depois começámos a perder com o passar dos jogos que havia muita coisa e se calhar quando o Felgueiras abriu os olhos e reclamou com o que se passava era tarde. Jogávamos bem, fazíamos bons resultados, mas de repente parece que deixámos de conseguir ganhar”, diz Leal. “Para mim houve outros dois pontos que contribuíram para a segunda volta desastrosa: por um lado, e também devido às cargas que tínhamos levado, quebrámos em termos físicos; por outro, acabámos por claudicar por alguma inexperiência nessas andanças que havia”, acrescenta Amaral.

No ano seguinte, o clube ficou a uma posição de nova subida; depois, foi-se mantendo a meio da tabela da Divisão de Honra; por fim, começou a cair de vez e acabou por deixar de existir em 2005, dando lugar ao atual Felgueiras 1932, que atua no Campeonato de Portugal (o terceiro escalão nacional) e se mantém na Taça de Portugal. Mas ainda hoje se fala dessa temporada de 1995/96, a única no primeiro escalão. Que mais não seja, por ter sido também a única em que Jorge Jesus e Sérgio Conceição estiveram no outro lado da barricada.

Olhanense de Conceição arrancou um nulo ao Benfica de Jesus no primeiro confronto como treinadores

AFP/Getty Images

No primeiro duelo como técnicos, em março de 2012, o Olhanense de Conceição impôs um nulo ao Benfica de Jesus no Algarve. E o treinador dos encarnados elogiou-o. “Tenho a certeza que todos os jogadores que trabalharam comigo e que têm vocação vão ser treinadores. A universidade dos treinadores são os anos que tiveram como jogadores, é aí que se define a qualidade. Não são os cinco anos de faculdade, ou seja lá onde aprendem. Isso é só teoria. Os treinadores formam-se onde o Sérgio e eu aprendemos; depois é preciso vocação. E posso estar enganado, mas penso que o Sérgio vai dar treinador”, referiu. Deu mesmo. Mas em novembro desse ano o Benfica ganhou na Luz ao Olhanense por 2-0. “O menino está chateado? Pensava que vinha logo aqui à Luz ganhar?”, atirou Jesus a rir-se para o antigo jogador quando se cumprimentaram no final.

Agora, este Sporting-FC Porto será o 11.º duelo entre ambos. E Conceição, o atual líder invicto da Primeira Liga, tentará atenuar o registo de duas vitórias, dois empates e seis derrotas.

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