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A chegada do inverno é sinónima de frio, chuva e temperaturas baixas. É nesta fase do ano que o aconchego do lar ganha outra importância e o conforto das esplanadas passa para o sofá de casa. O desporto não é exceção. É certo que um desporto como o futebol é alheio à estação do ano e pratica-se praticamente durante todo o ano, mas parte das modalidades é interrompida nesta fase precisamente por causa das condições. Falamos, por exemplo, do ciclismo de estrada, do MotoGP ou da Fórmula 1, desportos que só regressam a partir de fevereiro e março do próximo ano.
E é, também, nesta altura do ano que o foco dos amantes de desporto se volta para outra vertente, que tem ganho muitos adeptos nos últimos anos: os desportos de inverno. Embora Portugal e os países do sudoeste europeu sejam uma exceção à regra, esta modalidade tem crescido e é o desporto-rei em alguns países da Europa. Uma das vertentes com maior acompanhamento, seja presencial e televisivo que, em Portugal, é possível através dos canais Eurosport, é o esqui alpino – composto pelas disciplinas de downhill, super-G, slalom gigante e slalom. A nova temporada tem início já no próximo fim de semana, em Sölden, na Áustria, e até 27 de março, em Sun Valley, nos EUA, os atletas competirão em 38 provas, mais os Campeonatos do Mundo, que acontecerão em fevereiro.
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Lara Gut-Behrami and Marco Odermatt took home the overall globe last year, but can they do it again? ???????? Or will someone else rise to the top?
The countdown is on, and the challenge is set! ????❄️
Share your thoughts in the comments! ????#fisalpine… pic.twitter.com/UopS0obIp8
— FIS Alpine (@fisalpine) October 16, 2024
Foi nessa ótica que o Observador esteve à conversa com Viktoria Rebensburg, antiga profissional de esqui alpino e campeã olímpica em Vancouver-2010 no slalom gigante. Para além disso, a alemã conquistou 19 vitórias em provas da Taça do Mundo e esteve em mais duas edições dos Jogos Olímpicos de inverno, em Sochi-2014 e Pyeongchang-2018. Olhando para a atualidade da modalidade, Rebensburg começou por apontar os favoritos para a nova temporada: Federica Brignone, que esteve “muito forte” na temporada passada e “é muito experiente”, Lara Gut-Behrami, “que ganhou [o ranking global] no ano passado”, e Mikaela Shiffrin, que se “concentra” nas disciplinas técnicas, o que lhe dá um pouco de vantagem”.
Quanto ao lado masculino, os principais intervenientes do último ano deverão continuar na corrida ao título – ou globe, na gíria do esqui alpino. “Marco Odermatt esteve muito forte nas últimas temporadas e, para mim, continua a ser o melhor do ranking global da Taça do Mundo. Vamos ver o que acontece com Christopher Neumayer. Manuel Feller esteve muito rápido no ano passado no slalom e será de certeza um alvo a bater. E, depois, temos a certeza de que Lucas Braathen vai regressar, mas não corre há mais de 500 dias por isso temos de ver como é que volta a entrar no ritmo”, apontou a ex-atleta e agora comentadora de desportos de inverno nos canais do Eurosport em declarações ao Observador.
Para estarem em forma nos próximos meses, o trabalho foi desenvolvido nos últimos tempos e praticamente durante todo o ano, o que obrigou as equipas a deslocarem-se ao longo do planeta para aproveitarem ao máximo as condições. Os treinos incidiram, sobretudo, “na Nova Zelândia, Argentina, China e Chile”, onde esteve a formação feminina da Noruega. Já Itália, França e Alemanha preferiram rumar a Ushuaia, na Argentina, embora tudo dependa de um trabalho conjunto entre o “grupo, o treinador, o manager e o treinador de grupo”, partilhou Rebensburg. “Eles decidem o que vão fazer, quais são os seus planos para estruturar o treino e, de seguida, decidem para onde vão”, acrescentou.
Na Europa, os países onde o esqui alpino e os desportos de inverno têm mais impacto são “Áustria, Alemanha e Suíça”, que pertencem a uma região bastante propícia a esta prática. Ainda assim, também “Eslováquia, Eslovénia e uma parte de França e Itália” são importantes na modalidade, pois são países com “uma grande tradição, onde o esqui alpino é um desporto comum e popular”, perfilando-se como o “desporto número um no centro da Europa”. Como tal, o que mais cativa os adeptos prende-se com a “ação, velocidade e tomada de decisão” que cada corrida tem. “Precisas de ser muito preciso ao fazer uma curva, caso contrário podes ter um acidente. Ou estás dentro ou estás completamente fora. Precisas de ser muito bom em termos de força, deves ter muita força nas pernas e também no corpo. Tens de ser muito bom de visão, porque tudo acontece tão rápido e há tanta coisa a acontecer. As exigências são altas. Quando assistes de fora e alguém está a dominar no slalom gigante, no slalom ou até mesmo no downhill, é incrível de assistir. É tudo perfeito”, sublinhou Viktoria Rebensburg ao Observador.
Quanto ao futuro, Rebensburg sabe que os desportos de inverno poderão sofrer uma grande mudança devido às alterações climáticas, mas está ciente que a modalidade vai conseguir adaptar-se. “Se virmos as condições agora nos glaciares, estão brilhantes. Nos últimos anos foi difícil. Era muito difícil conseguir neve sobre neve e uma boa qualidade de neve. Quando não há neve tem de se encontrar outra área de esqui para realizar os eventos. Para ser mais seguro, acho que seria inteligente pensar-se em estâncias [de esqui] que estão um pouco mais altas em termos de altitude, porque há mais segurança em relação à neve. Isso é algo que se pode prevenir quando se planeia a temporada”, acrescentou, frisando que o desporto iria beneficiar de uma melhoria na “comunicação entre a FIS [Federação Internacional de Esqui e Snowboard] e as outras federações, que atravessam problemas internos”: “Precisam de unir-se, conversar e pensar em como melhorar o desporto”.
O passado e o presente dos desportos de inverno em Portugal
Em Portugal, a Federação de Desportos de Inverno [FDI-Portugal] é a entidade responsável por tutelar os desportos relacionados com a neve e o gelo e encontra-se filiada na FIS. Presentemente, a federação portuguesa coordena 12 disciplinas da modalidades: esqui de fundo, curling, esqui alpino, bobsleigh, hóquei no gelo, luge, snowboard, skeleton, patinagem artística, patinagem de velocidade, esqui freestyle e biatlo. Até 2012, a FDI tinha apenas 19 clubes como membros, no entanto esse valor cresceu significativamente na última década e está agora concentrado nas cinco dezenas, o que, para Pedro Flávio, presidente da FDI, revela um “crescimento exponencial nos últimos anos”.
“Temos perto de 50 clubes e mais de 600 atletas. São números que não se comparam com as modalidades praticadas regularmente em Portugal, mas são números significativos que demonstram uma evolução grande. Queremos chegar aos mil federados num curto espaço de tempo. Há muitos milhares de pessoas que praticam esqui, mas não estão ligados à competição. Nos últimos anos passámos de metade destes clubes para 50, que é um número significativo para a nossa federação”, explicou o dirigente em entrevista ao Observador.
“A federação foi criada em 1992 e nessa altura só tinha desportos de neve. Só mais tarde é que passou a tutelar as modalidades de gelo. Atualmente tutelamos todas as modalidades de neve e gelo, com exceção do esqui de montanhismo, que é da Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal. Antes da constituição da Federação, Portugal tinha um histórico grande de desportos de inverno. Em 2018 comemorámos os 100 anos do esqui em Portugal, porque há registos de esquiadores na Serra da Estrela em 1918. Há um histórico grande de competições de esqui na Serra da Estrela antes da federação. Até 2009 o crescimento foi mais controlado, mas a partir daí foi exponencial devido ao investimento que tem sido realizado e que trouxe mais atletas, clubes e modalidades. Estamos filiados em oito federações internacionais. Durante a nossa época desportiva estão sempre a acontecer provas”, acrescentou.
Presentemente, a FDI organiza diversos “Campeonatos Nacionais de esqui alpino [slalom e slalom gigante], snowboard [cross e slopestyle], hóquei no gelo [3×3] e patinagem artística” em solo português, com especial incidência para a Serra da Estrela, o ponto mais alto de Portugal continental. Para que estas competições sejam possíveis, a entidade inaugurou, em 2021, aquela que é a principal infraestrutura de gelo: a Serra da Estrela Ice Arena. “Temos uma academia de hóquei no gelo e de patinagem artística e é onde fazemos os Campeonatos Nacionais de patinagem artística e de hóquei no gelo 3×3 e alguns eventos de curling”, enalteceu o presidente da federação, acrescentando que esta pista funciona “de novembro a abril” e “não depende das condições atmosférica porque é indoor“. Para além da componente desportiva, a Ice Arena “também está aberta ao turismo” e, na época passada, agregou “mais de 12 mil pessoas, sem contar com as atividades desportivas”, o que revela que “as pessoas têm abertura e vontade de experimentar estas modalidades”.
Quanto às modalidades de neve, estas baseiam-se na estância de esqui da Serra da Estrela. “Sempre que temos as condições ideais, conseguimos realizar as competições. Nem sempre sabemos como vai ser o inverno, mas a estância está equipada com equipamentos de produção de neve artificial e acaba por conseguir produzir neve. O ano passado tivemos Campeonatos Nacionais de esqui alpino e snowboard e planeamos o mesmo para a próxima época [2024/25]. Nas outras modalidades há muita prática fora do país. Estamos agora com um conjunto de atletas de patinagem no gelo em Heerenveen porque na próxima semana vamos ter a realização da Taça de Portugal da modalidade… nos Países Baixos”, partilhou Pedro Álvaro, sublinhando que esta não é a única prova realizada no estrangeiro, juntando-se às “Taças de Portugal de curling [duplas mistas, no Canadá] e esqui alpino [prova FIS que consta no calendário internacional, em Itália]”.
E é aqui que os problemas começam a aparecer. Sem local e condições para competirem em Portugal, “os atletas quando estão num nível mais competitivo passam muito tempo fora” do país, maioritariamente em estágios de preparação para as grandes competições internacionais. “As nossas Seleções viajam muito em estágio para estarem na melhor forma. Quanto mais carga horária de treino os atletas possam ter, mais estarão em forma. Um país que não tem essas condições dentro do território, obriga a que os atletas estejam em constante viagem e esforço porque muitos deles são estudantes e têm de conciliar os estudos com a prática desportiva. No que diz respeito às modalidades de gelo, a construção de uma infraestrutura poderá fazer toda a diferença. Daqui a uns anos poderemos ter resultados muito satisfatórios”, sistematizou.
O plano (de sucesso) do ciclismo como exemplo e o futuro (olímpico) da modalidade
Sem olhar para o futuro, Pedro Flávio partilhou com o Observador que o desenvolvimento dos desportos de inverno tem sido notório e apontou a outro objetivo de crescimento: a construção de “um pavilhão de dimensões olímpicas”, que sirva de “mote para que as modalidades [de gelo] cresçam exponencialmente”. “Com esta arena passamos a ter de viajar menos e a conseguir treinar mais. Os resultados recentes do ciclismo de pista são resultado do investimento que foi feito numa infraestrutura que existe em Portugal há 15 anos [Velódromo de Sangalhos]. Sem essa infraestrutura não podíamos ter dois campeões olímpicos. É isso que queremos fazer”, destacou o dirigente.
Esta arena já está projetada, vai ser construída no Seixal e deverá custar cerca de dez milhões de euros, perspetivando-se que a obra esteja concluída no final de 2027. O contrato de promessa de cedência de terreno vai ser assinado já este sábado. A nova infraestrutura terá capacidade para cerca de 1.000 espectadores e contempla uma pista com 60 metros de comprimento e 30 de largura, o que vai ao encontro das dimensões olímpicas. Para além disso, o pavilhão vai ter quatro pistas de curling e “ainda um conjunto de outras valências que vão complementar a pista de gelo, como um restaurante/bar com esplanada, um ginásio, uma clínica médica”, permitindo à FDI amortizar os gastos resultantes da construção.
“Estamos muito focados em que seja um edifício sustentável, muito focado nas energias renováveis, porque precisamos de produzir energia para tornar este edifício mais autosuficiente. Pretendemos ainda reaproveitar o calor gerado para a produção do gelo, por exemplo para aquecer os balneários e as áreas sociais, aproveitar a água que é utilizada na produção e raspagem de gelo para reinseri-la no sistema. Uma das premissas é o edifício ser sustentável. Este projeto também integra as associações locais e as IPSS, para que possam fazer parte do sistema e puderem participar nas atividades na pista de gelo, desenvolvendo atividades para os jovens. O concelho também tirará partido de uma infraestrutura destas, que é única no país”, acrescentou Flávio, explicando que a arena “terá a componente competitiva e de treino, mas também uma vertente lúdica”.
Com a inauguração prevista para o final de 2027, o início da construção deverá acontecer dentro de ano e meio, embora este prazo dependa dos “investimentos legais e projetos de licenciamento”. O pavilhão vai ficar localizado junto ao Complexo Municipal de atletismo Carla Sacramento, no Seixal, e não conta com financiamento do Governo, com a FDI a avançar com “parte” do capital e o restante “recorrendo a um modelo de financiamento bancário e à possibilidade de nos juntarmos com um fundo de investimento”. O terreno da construção foi “cedido pela Câmara do Seixal” e o Município vai isentar o organismo que tutela os desportos de inverno de pagar as taxas de construção. Com o novo pavilhão, Portugal passa assim a ter um espaço com condições para a prática de curling, hóquei no gelo, patinagem artística e patinagem de velocidade, e poderá “atrair alguns eventos internacionais e equipas para estágios”.
Curiosamente, a primeira participação portuguesa nos Jogos Olímpicos de inverno aconteceu muito antes de a federação ter sido fundada, datando de 1952, em Oslo, quando Duarte Espírito Santo se estreou no downhill com um 69.º lugar. Contudo, a primeira medalha internacional só surgiu 60 anos depois, com Andrea Bugnone a conquistar o ouro na prova de infantis de super-G do esqui alpino. Já este ano, Jéssica Rodrigues conquistou para Portugal o melhor resultado de sempre nos Jogos Olímpicos de inverno da Juventude, ao conseguir o primeiro top 10 da história com o sexto lugar no mass start da patinagem no gelo, e é apontada como uma das promessas da modalidade.
“[A Jéssica] é uma atleta que não tem condições para treinar à porta de casa. Também é atleta de patinagem de rodas, faz o seu treino regular em Portugal com rodas, mas depois para treinar no gelo tem de ir para os Países Baixos ou a Alemanha para estar nas melhores condições. Ela ficou na sexta posição só com duas neerlandesas e três asiáticas à sua frente. Atrás ficaram grandes potências da patinagem mundial. É sinal que o nosso trabalho tem vindo a ter resultados”, destacou o dirigente federativo.
Quando tomou posse como presidente da Federação de Desportos de Inverno, Pedro Flávio apontou como um dos principais objetivos o aumento da participação olímpica, que bateu recordes em Pequim-2022, com três atletas. “Estamos a trabalhar com esse objetivo. O objetivo é tentarmos aumentar este número e, se possível, o número de modalidades. Se conseguirmos levar três modalidades será muito bom. A patinagem de velocidade só teve uma participação olímpica [Nagano-1998] e é uma das modalidades com esse potencial. Temos três atletas com possibilidade de qualificação. Se conseguirmos juntá-la ao esqui alpino e de fundo será excelente”, completou.