O “estado de emergência” decretado no passado dia 18 de Março é a forma menos severa de que se reveste o estado de excepção na ordem constitucional portuguesa. A forma mais severa é o “estado de sítio”. O texto constitucional não fala de estado de excepção, uma expressão castigada por uma história traumática, mas de “suspensão do exercício de direitos”. É, em todo o caso, de estado de excepção que se trata em ambas as formas constitucionalmente reconhecidas: uma situação em que a ordem constitucional admite a não aplicação integral das normas que definem o nosso modo de vida colectivo.
É importante compreender o alcance do termo “excepção” neste contexto. Os juristas usam o termo excepção, por oposição a norma, em dois sentidos distintos. Um deles é o que podemos designar o sentido superficial de excepção. Imaginem-se disposições legais que proíbem o “derramamento de sangue na via pública”, “dormir em estações de caminhos de ferro” e “depositar substâncias nas sanitas das casas de banho públicas”. É evidente que admitem excepções nos seguintes casos: um cirurgião intervém de urgência para tratar a perna gangrenosa de um cidadão atropelado por um automóvel; um passageiro adormece enquanto aguarda a chegada de um comboio nocturno muito atrasado; um estudante universitário dá o uso habitual a uma sanita, nela depositando inevitavelmente determinada substância.
Em todos os casos referidos, o preceito legal não se aplica porque aplicá-la seria contrário ao desiderato inteligível de quem o legislou; dizem os juristas contemporâneos, usando termos que herdaram dos juristas romanos e medievais, que estes casos se compreendem na “letra”, mas não no “espírito” da lei. A caracterização exacta deste tipo de argumento, nomeadamente a definição do que seja uma excepção neste sentido, é objecto de controvérsia antiga e intensa num ramo do saber jurídico designado “metodologia”; ninguém contesta, no entanto, que integra a norma da argumentação e, entre outras virtudes, permite aos juristas – advogados, magistrados e professores − pouparem-se ao descrédito de em casos importantes proporem soluções absurdas e caricatas aos olhos de qualquer pessoa sensata.
Não é nesse sentido superficial que o estado de excepção é excecional. É-o num sentido radical, um sentido que diz respeito às condições pressupostas na vigência da norma; cessando estas temporariamente, a norma suspende-se. A proibição de derramamento de sangue na via pública cede perante a ruína das instituições e a queda do poder nas ruas, que obrigam os cidadãos a defender directamente, se necessário através da força, a sua vida e os seus bens. A proibição de dormir nas estações de caminhos de ferro suspende-se quando os habitantes de uma localidade devastada por uma catástrofe natural procuram abrigo nocturno nos poucos edifícios que se mantêm intactos. A proibição de depositar substâncias nas sanitas das casas de banho públicas deixa de vigorar quando se torna a forma mais eficaz de escoar um químico tóxico usado como arma contra a população. Insistir na aplicação da norma nestas circunstâncias seria ingénuo e equívoco: ingénuo porque dificilmente eficaz, equívoco porque obviamente injustificado. O estado de excepção vigora enquanto as condições pressupostas pela vigência da norma – o estado de normalidade – não forem restauradas.
Nada há de muito intrigante ou preocupante na noção de que a vigência de leis, como as que respeitam à utilização das estações de caminhos de ferro ou de sanitas em casas de banho públicas, pode suspender-se em condições excepcionais. Já a ideia de estado de excepção constitucional parece encerrar um paradoxo: sendo as normas constitucionais por definição fundamentais, como se pode admitir a sua suspensão? É importante sublinhar que o estado de excepção implica a suspensão parcial dos direitos fundamentais e da separação dos poderes, os dois valores matriciais do constitucionalismo; através dela, admitem-se restrições em princípio intoleráveis das liberdades (a suspensão do exercício de direitos significa a sua supressão praticamente total) e concedem-se poderes em princípio intoleráveis ao executivo (autorizado a restringir liberdades na medida das necessidades que relevam da sua interpretação das circunstâncias).
Na célebre e actual noção de constituição material constante do artigo 16.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, “A sociedade em que a garantia dos direitos não seja assegurada nem estabelecida a separação de poderes não tem constituição”. O sentido profundo deste enunciado é o de uma condição transcendental do direito constitucional: sem direitos fundamentais e separação de poderes, nenhum diploma ou convenção, ainda que denominado ou considerado uma constituição, tem genuína força constitucional − o direito de reclamar a lealdade dos membros da comunidade política que se destina a ordenar de modo duradoiro. Uma constituição que autoriza a suspensão de direitos ou corrompe a separação dos poderes não passa de um simulacro da constitucionalidade, uma constituição falsa, uma disformidade constitucional; está para o constitucionalismo, para a democracia constitucional, como a retórica para a justiça, a cosmética para a ginástica e a culinária para a medicina, numa das mais célebres ilustrações da oposição platónica entre aparência e realidade. Em nome de que valores pode, pois, a ordem constitucional admitir a suspensão daquelas mesmas normas em que se consubstanciam, afinal de contas, os seus valores essenciais?
A única resposta coerente é a seguinte: em nome e por conta desses mesmos valores. Ao prever o estado de excepção, a ordem constitucional admite a possibilidade de se verificarem circunstâncias em que o exercício normal das liberdades fundamentais e dos poderes públicos pode comprometer irremediavelmente a possibilidade futura de uma ordem de convivência comum que respeite os direitos fundamentais e a separação de poderes. Esta admissão é a resposta da democracia constitucional ao fantasma dos poderes de emergência cujos antecedentes remotos se encontram na ditadura comissarial romana. A excepção justifica um reforço do poder executivo porque reclama ação expedita e adaptável, para o qual os outros poderes – um poder passivo como o judicial e um poder deliberativo como o legislativo – não se encontram naturalmente vocacionados; em vez de negar este facto, a ordem constitucional reconhece-o com o fito de o domesticar. Admite suspender-se parcialmente com o propósito único de que sejam restauradas as condições para a sua vigência plena – o estado de normalidade –, e somente nos termos por ela regulados segundo a matriz de valores que constitui a condição transcendental da sua força normativa.
E que termos vêm a ser esses, no caso concreto da ordem constitucional portuguesa? Em primeiro lugar, os pressupostos do estado de excepção: a agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras, a perturbação grave da ordem democrática ou a calamidade pública. Em segundo lugar, o procedimento para que seja decretado o estado de excepção, que implica a convergência dos dois órgãos de soberania – o Presidente da República e a Assembleia da República − que gozam de legitimidade democrática directa. Em terceiro lugar, a exigência de proporcionalidade da decisão de decretar o estado de excepção e das medidas de excepção autorizadas, que vincula o poder aos direitos fundamentais que em parte sacrifica. Em quarto lugar, a vigência temporalmente limitada (quinze dias) do decreto, que assegura a renovação da legitimidade democrática e do controlo de proporcionalidade do estado de excepção. Finalmente, os limites que decorrem da proibição da suspensão de determinados direitos, como a vida, a capacidade civil, os direitos de defesa do arguido e a liberdade de consciência e religião.
São estes os termos que a nossa ordem constitucional define para a sua própria defesa, com o objetivo de conservar a sua própria existência. Mas este exercício de domesticação da excepção não é nem pode ser perfeito. Há dois espectros que pairam sobre a democracia constitucional, a nossa como qualquer outra, por mais elaborada que seja a ourivesaria das suas normas. Por um lado, a perpetuação do estado de excepção; se a normalidade não pode ser restaurada, se a excepção se mantém indefinidamente, se a suspensão de liberdades e o reforço do executivo se normalizam, a promessa constitucional de uma ordem plena de direitos fundamentais e separação de poderes deixa de respeitar a este mundo e a democracia constitucional perece na agonia da sua contingência. Por outro lado, a excepção ao regime da excepção; nada impede que os poderes constituídos interpretem as circunstâncias como justificando um estado de excepção ao “regime normal” do estado de excepção, uma excepção anómica, uma excepção dentro da excepção – e, se até aquela for regulada, uma excepção à excepção da excepção −, sem que a ordem constitucional possa evadir-se a uma regressão infinita que precipita a capitulação das normas perante a riqueza infinita dos factos.
O infame jurista alemão e colaborador do nazismo Carl Schmitt – porventura o adversário intelectual mais brilhante da democracia constitucional −, escreveu que “a excepção é mais interessante do que a norma”, porque significa que todo o direito, nomeadamente o direito constitucional, depende da verificação continuada do estado de coisas pressuposto na sua vigência. Em palavras que ficaram célebres, acrescentou que o autor da decisão sobre o carácter excepcional da situação e das medidas extraordinárias que justifica é o verdadeiro soberano – o poder supremo. Assim, a excepção parece revelar duas coisas cuja negação é uma necessidade existencial da democracia constitucional: a norma cede perante a decisão (em última análise, o governo é sempre dos homens e não das leis) e a justiça cede perante a necessidade (salus populi suprema lex esto). Segundo esta linha de pensamento, a pretensão de que os direitos fundamentais e a separação de poderes são compromissos incondicionais, alguma coisa maior do que bens sumptuários próprios de tempos mais ou menos prolongados de bonança, é uma bela hipocrisia liberal.
Esta posição tem uma linhagem ilustre, em que se contam as figuras notáveis de Maquiavel e Hobbes. O “realismo” que a caracteriza prende-se com o reconhecimento de que o fundamento último das obrigações que nos vinculam a uma autoridade política comum são as paixões vulgares do ser humano, em particular o medo, e sobretudo o medo da morte violenta. Tudo o resto que reputamos bom e justo é desejável, mas perfeitamente secundário e sujeito a uma reserva de possibilidade. É uma posição plausível: nas profundezas da alma glorificamos a fortuna que nos permite gozar a liberdade e a democracia, e suplicamos que nos mantenha a salvo de um estado de excepção que se perpetua e radicaliza ao ponto de nos privar definitivamente dos luxos morais a que nos habituámos. Mas o constitucionalismo do artigo 16.º da Declaração de 1789, aquele que nos promete direitos e moderação, não pode ser um pacto suicida − tem de reconhecer-se a força dos factos e a antropologia da política.
A alternativa a esta sugestão poderosa da tradição realista é dada por outra linhagem, cujos nomes maiores são Platão e Kant. Num passo maravilhoso do Górgias, Sócrates procura demonstrar ao incrédulo Polo que “toda a gente considera pior praticar do que sofrer uma injustiça”, como no caso do tirano Arquelau, que havia usurpado o trono da Macedónia depois de matar os herdeiros legítimos. Perante a concessão de Polo de que é mais feio cometer uma injustiça do que sofrê-la, Sócrates propõe uma definição de belo que Polo elogia, segundo a qual o mais belo é-o pelo maior prazer ou bem; segue-se daí que praticar uma injustiça só pode ser mais feio do que sofrê-la se for mais doloroso ou pior, e como é evidente que não é mais doloroso, só pode ser pior. Polo admite que o argumento de Sócrates “tem lógica”, e este conclui que demonstrou que também Polo considera que cometer uma injustiça é pior do que sofrê-la. Na Apologia, Sócrates reitera o argumento perante o tribunal, quando afirma que é sua convicção que um homem mau não pode nunca prejudicar um homem de bem; e acrescenta, já depois de condenado, que só uma vida justa é digna de ser vivida.
Uma interpretação possível dos regimes constitucionais do estado de excepção é que a sua relativa rigidez – a sua insistência no carácter temporário e limitado da figura − não é um sinal de fraqueza, ao contrário do que supõe o cinismo realista, mas da força de carácter manifestada no exemplo socrático. A ordem constitucional não vive na cegueira e na presunção de que pode ignorar a realidade, e por isso admite medidas extraordinárias em tempos de excepção. Porém, como Sócrates recusou o plano de fuga que lhe foi proposto pelo amigo Críton, por entender que de nada lhe valia salvar a vida com a chaga da indignidade, a Constituição recusa-se a vender a sua alma liberal e democrática por um prato de lentilhas. É na transgressão dos limites impostos pelos seus valores essenciais que se consuma o verdadeiro pacto suicida – a autofagia moral da comunidade.
Kant escreveu que, “se a justiça soçobra, deixa de ter valor que os homens vivam sobre a terra”. A justiça não dispensa a prudência e admite o compromisso, mas não se nega a si própria, nem prescinde de vincular as pessoas. No limite do estado de excepção constitucional, aquele que temos a esperança de que nunca venha a ser testado − fiat iustitia et pereat mundus.