Índice
Índice
Dez páginas de cada vez publicadas nas plataformas Tumblr e Tapas. Foi assim que Alice Oseman foi apresentando Charlie e Nick aos leitores. Aos poucos, o webcomic que começou em setembro de 2016 foi ganhando personagens (Elle, Aled, Darcy) e temáticas (amor, autodescoberta ou saúde mental), mas sobretudo uma imensidão de fãs, de pré-adolescentes a jovens adultos.
Aos 22 anos, a autora britânica escrevia, ilustrava e publicava Heartstopper. Do mundo digital, a novela gráfica transformou-se depois em livros físicos (em Portugal sob a chancela da Desrotina) que já venderam mais de oito milhões de exemplares pelo mundo, e em 2022 ganhou uma versão na Netflix.
A série chegou ao top 10 de 54 países e prepara-se agora para repetir o feito, com a terceira temporada disponível a partir desta quinta-feira, 3 de outubro. Mas como é que Heartstopper nasceu e se transformou? Quais são os efeitos sociais de um fenómeno deste género? É benéfico abordar temas complexos com uma faixa etária jovem? O Observador foi à procura de respostas.
Qual é a história?
Charlie Spring, de 15 anos, e Nick Nelson, de 16, frequentam a escola fictícia de Truham, no Reino Unido. O primeiro é esquelético, desengonçado, toca bateria e é gay. O segundo é um atlético jogador de râguebi. Primeiro surge a amizade, depois a paixão — um sentimento claro desde logo para Charlie, mas não para Nick, que terá pela frente um longo caminho de descoberta e aceitação da respetiva sexualidade.
Além dos protagonistas, há mais personagens queer na narrativa. As lésbicas Tara e Darcy, de 16 anos, ajudam Nick a entender e aceitar a sexualidade dele. Uma das melhores amigas de Charlie, Elle, é transgénero e mais tarde na história percebe-se que a irmã, Tori, é assexual (não sente atração alguma). Aled é gay e demissexual (ou seja, não sente atração sexual até formar uma conexão profunda com alguém).
A convivência na escola, a vida familiar, sexualidade, aceitação, homofobia, depressão, distúrbios alimentares ou automutilação são alguns dos temas abordados em Heartstopper, fazendo da narrativa um sucesso — precisamente porque aborda temas universais da adolescência, no seio da comunidade LGBTQ+ e não só.
Quem é a autora?
Alice Oseman é britânica e nasceu em Chatham, Kent, a 16 de outubro de 1994. Cresceu em Rochester e tirou o curso de Literatura Inglesa em Durham. Aos 17 anos conseguiu fechar o primeiro contrato com uma editora e em 2014 publicou Solitário, um livro direcionado para jovens adultos sobre um casal de adolescentes que tenta desvendar uma data de partidas na escola.
Dois anos mais tarde seguiu-se Rádio Silêncio, que se foca na vida universitária e respetivas expetativas e pressões, assim como relações LGBT+. Oseman passou para o livro muita da sua experiência na Universidade de Durham, que não foi propriamente feliz. Nasci Para Isto, sobre uma banda de música e o seu grupo de fãs adolescentes, foi publicado em 2018. Por esta altura, nascia também o webcomic Heartstopper.
[o trailer da terceira temporada de “Heartstopper”:]
Tendo uma forte componente de personagens queer em todas as suas histórias, Alice Oseman resolveu clarificar as questões sobre a sua sexualidade em 2020, ao promover o livro Sem Amor. Responde aos pronomes “ela” e “eles/elas” e explicou ser assexual e arromântica .
“É difícil. Vivemos numa sociedade em que o sexo e o romance são premiados acima de tantos outros aspetos de sermos humanos. As pessoas são condicionadas desde que nascem até crescerem. [Têm de] encontrar um parceiro, casar, ter filhos — quando somos assexuais ou arromânticos não nos encaixamos propriamente nessa estrutura de vida”, lamentou numa entrevista dada à revista Hello! em junho de 2023. “Não há literacia sobre isso e temos sorte se sequer conhecermos esses termos”, explicou ainda.
Apesar de falar sobre isso atualmente, nem sempre foi assim. “Assexual” foi um termo que descobriu por acaso online quando tinha 18 anos. Frequentava a faculdade e percebeu que não conseguia cumprir a expetativa que ela própria tinha: encontrar o amor. Aceitar isso foi um processo longo.
“Passei por uma fase em que tentei forçar-me a gostar de rapazes”, contou. Depois pensou ser demissexual (a atração surge apenas quando se desenvolve um vínculo afetivo) e só mais tarde se cruzou com o termo “arromântico”. A jornada foi complexa e, segundo Alice Oseman, será semelhante ou ainda mais difícil para jovens que se debatem com a respetiva identidade e nunca ouviram sequer falar destes conceitos — ela própria revelou que, ao crescer, não teve contacto com nenhum destes temas.
Atualmente vive em Kent e está a trabalhar no novo volume de Heartstopper. Quando lançou o primeiro livro, só lhe falavam da idade e do feito que era publicar tão jovem, ninguém estava realmente interessado na história. Isso afetou-a mas, na altura, era demasiado jovem para recentrar o assunto naquilo que importava. Aprendeu com o tempo e, em 2022, decidiu fazer uma pausa nas redes sociais e no trabalho devido ao stress e à pressão. Arranjou tempo e fez da sua saúde mental a prioridade. Regressou à escrita um ano mais tarde.
Como começaram os livros?
Solitário, o livro de estreia, já tinha a primeira semente para o fenómeno Heartstopper. Estavam lá como personagens secundárias o irmão gay de Tori, Charlie, e o namorado deste, Nick. Inicialmente, Alice Oseman tentou desenvolver esse arco narrativo através de pequenas histórias em ebook, mas depois percebeu que uma webcomic seria o mais lógico. Escrevia, desenhava e publicava dez páginas de cada vez no Tumblr e na plataforma Tapas. Aliás, a história continua a evoluir no mesmo sítio, com atualizações nos dias 1, 11 e 21 de cada mês.
Apesar de Solitário ter chegado às livrarias através das edições infantis da HarperCollins, Oseman sempre soube que a escolha para Heartstopper tinha de ser outra. “Senti que a autopublicação era o melhor caminho porque tenho muitos leitores internacionais. Se tentasse trabalhar com uma editora do Reino Unido, seria muito difícil para o número grande de leitores de fora do Reino Unido conseguirem um exemplar”, disse ao site The Bookseller.
Em junho de 2018, quando chegou aos 50 mil leitores online, decidiu avançar para uma edição impressa. Foram os leitores que financiaram a primeira versão em papel através de crowdfunding. Em duas horas atingiram o objetivo de 10,200€. “Apoiei muitos criadores de webcomics através de crowdfundings para transformarem as suas histórias em edições impressas, portanto senti que era um caminho sólido e de confiança para o meu comic”, explicou na altura ao The Bookseller.
Antes de avançar, passou um ano a editar e redesenhar algumas partes para que tudo estivesse perfeito para impressão. Contactou gráficas e definiu orçamentos. Em 2019, a divisão infantil da Hachette acabou por comprar os direitos mundiais e o volume 1 foi publicado, transformando-se na novela gráfica mais vendida no Reino Unido, nos mercados de adulto e infantil, logo nesse ano.
Disponível em 37 línguas, já vendeu mais de oito milhões de exemplares. Em Portugal, toda a coleção — assim como os restantes livros da autora — é publicada pela chancela Desrotina, do grupo Infinito Particular. No mercado português, já foram vendidos mais de 40 mil exemplares.
O publisher do grupo Infinito Particular, João Gonçalves, garante ao Observador que a importância da série literária no catálogo da editora é grande. “Mas seria sempre grande fossem quais fossem os números, desde logo porque vai ao encontro do espírito disruptor da nossa aposta, pioneira em Portugal, de construção de um catálogo jovem adulto. E fá-lo respeitando os padrões de inovação e qualidade dos quais nunca abdicamos.” O volume 5, o mais recente, foi colocado à venda no início de dezembro de 2023 e vendeu mais de 60 mil cópias só no Reino Unido nos primeiros três dias.
“Heartstopper é uma história centrada em alegria, amor e queerness. Vê-la recebida desta maneira por tantos leitores, novos e velhos, dá-me verdadeira esperança”, disse a autora ao The Guardian. O volume 6 ainda não tem data de publicação anunciada, mas já se sabe que será a conclusão da saga. Além das novelas gráficas, o universo Heartstopper conta com duas novelas, um anuário e um livro de colorir.
Como se transformou em série?
Em 2019, Alice Oseman foi abordada pela produtora See-Saw Films, que lhe perguntou se estaria disposta a escrever um guião de Heartstopper. Cansada da falta de representatividade de adolescentes queer na ficção, a autora aceitou e escreveu uma primeira versão baseada nos volumes 1 e 2.
A See-Saw gostou e comprou os direitos televisivos. A Netflix gostou e comprou uma temporada de oito episódios. Oseman esteve envolvida em todos os aspetos, incluindo no casting. Queria que a representação fosse autêntica e por isso abriram audições para jovens adolescentes. Mais de 10 mil responderam à chamada no início de 2021. Joe Locke foi escolhido para o papel de Charlie, sendo este o seu primeiro trabalho enquanto ator. Kit Connor foi depois contratado para interpretar Nick. A química entre ambos foi imediata e em poucas horas a afinidade tornou-se evidente.
Heartstopper estreou-se a 22 de abril de 2022 na Netflix e, na primeira semana de exibição, as vendas dos livros aumentaram 220% em todo o mundo. A série chegou ao top 10 de 54 países, conseguindo 54 milhões de visualizações no primeiro mês. Filmada em imagem real, tem elementos de animação — com o ecrã dividido como se fossem tiras de BD — adicionados na edição que remetem para a estética dos livros.
A primeira temporada venceu cinco Emmys nas categorias dedicadas às produções familiares e infantis. A segunda estreou-se com 6,1 milhões de espectadores em agosto de 2023. A muito aguardada terceira temporada está, tal como as anteriores, dividida em oito capítulos. Aborda a narrativa dos volumes 4 e 5 dos livros e está inteiramente disponível na Netflix.
Qual o impacto social?
Na sua génese, Heartstopper é uma história sobre a adolescência: os primeiros amores, os medos, a descoberta da identidade e a escolha do caminho para o futuro. Toda a gente passa por isso, não há como não nos identificarmos. A diferença é que estes livros dão voz à comunidade queer e o facto de terem personagens que representam várias pessoas dentro desse universo tem ditado o sucesso da coleção. Sexualidade, género ou personalidade são questões sempre presentes.
“Sabemos que, com a evolução da sociedade, a forma como vamos vivendo as coisas também muda e sabemos que efetivamente, hoje em dia, a partir dos seus 12 ou 13 anos, ou se calhar até antes, os jovens falam sobre a questão da sexualidade. É um tema que encontro nessas faixas etárias como recorrente”, conta ao Observador Joana Duarte, psicóloga clínica na Psicomindcare.
Esse é o primeiro ponto que faz de Heartstopper um universo em que tantos jovens se reveem de alguma forma. Sim, a sexualidade é um tema nestas idades. Sim, estas faixas etárias são proativas na tentativa de obter respostas para o que as atormenta. “Atualmente, os jovens têm muita necessidade de ter respostas, procuram tudo na Internet porque está ao alcance de um clique. Mas aí também se encontram milhares de coisas. Por vezes é assustador e faz com que criem ideias erradas sobre alguns assuntos, identificações erradas ou que fiquem a questionar-se ainda mais.”
A narrativa foca muitas vezes a importância de procurar ajuda. Além disso, Alice Oseman tem sido elogiada por abordar tópicos como depressão, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e distúrbios alimentares — mais precisamente anorexia masculina, uma vertente ainda menos explorada na ficção.
“O facto de haver séries ou livros que tenham informação fidedigna ou representações corretas, baseadas em conhecimento científico e em conhecimento real do tema que estão a abordar, faz com que seja mais fácil para os jovens se sentirem compreendidos, se identificarem e conseguirem lidar melhor com essa emoção, com essa situação. Isso é muito importante porque estão numa fase de construção de identidade, de procura de ‘quem sou eu?’. O facto de verem outro, mesmo que seja uma representação, a viver a mesma situação, a explicar como se sente, como lida, como se pode estruturar na sociedade perante aquilo que está a viver, ajuda-os a não se sentirem tão sós”, elogia a psicóloga clínica.
Até há bem pouco tempo, temas como sexualidade e saúde mental eram tabus completos. Quando os transportamos para a adolescência, pior ainda. “Os distúrbios alimentares cada vez acontecem mais, muitas vezes causados por ansiedade ou por depressão. Ter acesso a histórias bem estruturadas sobre isso também poderá ajudar a que os jovens consigam fazer a distinção entre o que é doença mental, no sentido de depressão mesmo ou distúrbio alimentar, de emoções que são vividas nesta faixa, principalmente da adolescência em que tudo é vivido a mil. Há um turbilhão de sentimentos que temos dificuldade de organizar, eu posso acordar super feliz de manhã e ao meio dia estar super triste, esta oscilação de emoções é característico desta fase.”
Saber ter esse equilíbrio — entre o que é normal sentir nessa fase da vida e o que já é um sinal de alerta — nem sempre é fácil, sobretudo porque a informação é imediata, mas é geralmente má informação. “Hoje em dia, o que sinto é que os meninos estão muito à procura da doença mental ou de se auto-medicarem — às vezes têm acesso à medicação dos pais ou de outro tipo. Há uma procura de informação muito constante, mas também é preciso que eles consigam perceber: ‘É válido o que eu estou a sentir? Posso sentir e esperar que o tempo me dirá se isto é natural ou se pode ser outro indicador.’”, alerta Joana Duarte.
Apesar do trabalho importante de sensibilização e informação (nos livros estão também incluídos contactos sobre sites e organizações que podem ajudar pessoas que estão a passar por estas dificuldades), ou precisamente por causa disso, Heartstopper não está livre de críticas. Nos EUA, pelo menos duas escolas do estado da Florida retiraram os exemplares das estantes das respetivas bibliotecas. No estado do Mississipi, a Columbia-Marion County Public Library fez o mesmo para avaliar o conteúdo das obras. Na origem da decisão esteve uma queixa apresentada por vários cidadãos. Heather McMurry, uma dessas pessoas, remeteu os motivos para o site BookLooks.org (que pretende alertar pais para os conteúdos censuráveis nos livros infantis). Sobre Heartstopper pode ler-se que contém “atividades sexuais, ideologias alternativas de género, profanidade e violência”.
No entanto, na descrição detalhada sobre cenas censuráveis o máximo que parece existir são “rapazes a beijarem-se”.
Mais perto de nós, na Hungria, a editora responsável pela coleção nesse país foi multada em mais de 32 mil euros devido a uma lei que restringe a literatura LGBTQ+ para menores de 18 anos. Os exemplares não estariam embrulhados em plástico e “a investigação revelou que os livros em questão retratam a homossexualidade e que, apesar disso, foram colocados entre a literatura destinada a menores”, justificou o gabinete do governo metropolitano de Budapeste responsável pela medida.
Polémicas à parte, Heartstopper tem conseguido cumprir o propósito que a autora sonhou: ser uma história inclusiva de amor e alegria, navegada com alguns percalços no turbilhão que é a adolescência. “Estas histórias também podem ajudar os jovens a sentirem que o mundo ‘real’ é assim. Dias maus podem ser vividos e não definem quem somos ou a nossa vida. E esses dias não impedem de ter a seguir dias bons, aprendendo a superar os desafios em vez de ficarem agarrados à ilusão da vida ‘perfeita’ que se passa no Instagram”, realça a psicóloga Joana Duarte.