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JOÃO DE ALMEIDA DIAS/OBSERVADOR

JOÃO DE ALMEIDA DIAS/OBSERVADOR

O fogo levou-lhe até o vestido de noiva, os ladrões ficaram com todo o ouro. Os assaltos depois dos incêndios

Maria Amélia fugiu com medo de morrer. Pensou levar o ouro, mas o marido disse-lhe para se salvar. Quando voltou, o fogo poupara a casa, mas não o negócio ou o vestido de noiva. E faltava algo mais

Assim que voltou a casa, Maria Amélia Abreu suspirou de alívio. “Graças a Deus ainda cá está”, disse, ao chegar à sua aldeia de Balsa, em Castanheira de Pera. É verdade que tinham ardido três armazéns ao marido, Germano Abreu, onde estava um arsenal de alfaias agrícolas. É verdade que o anexo onde tinham a cadeira de rodas do filho, com paralisia cerebral, que lhes morreu faz cinco anos, não aguentou. E é verdade que, no meio de todos aqueles arrumos, até ardeu a mala onde Maria Amélia guardava o vestido de noiva.

Mas, no meio destas verdades todas, bastou outra a Maria Amélia. “Ao menos a casa não me ardeu.”

No dia anterior, Germano já tinha saído de Castanheira de Pera para ir a casa ver como ela estava. Abriu as janelas para que o fumo que entrou pudesse enfim sair. Quando o casal voltou de vez, na segunda-feira, elas continuavam abertas.

Depois de ter constatado que a casa ainda estava de pé, Maria Amélia atirou-se às limpezas. A ajudar, teve a neta de 11 anos. “Mas tu tens as pernas todas queimadas, rapariga!”, atirou-lhe a avó. “Eu ajudo-te na mesma!”, insistiu e pequena. E ajudou. O maior problema era o pó.

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Maria Amélia e Germano Abreu vivem em Balsa, no concelho de Castanheira de Pera. Fugiram de casa e deixaram as janelas abertas para o fumo sair (HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR)

HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR

De joelhos no chão, enquanto esfregava as juntas dos mosaicos que o fumo enegreceu, Maria Amélia lembrou-se de ir ao armário do quarto. Era lá, dentro de uma caixa de uma camisa de homem que guarda debaixo de um monte de lençóis e mantas, que guardava as suas joias. Maria Amélia enfiou a mão dentro da caixa e sentiu-a vazia. Incrédula, tirou-a debaixo do monte de roupa de cama e abriu-a. Nada.

“Roubaram-me o ouro todo, Germano!”, gritou para o marido. “Fomos roubados!”

Uma família que fugiu à morte, em casa e na estrada

No sábado, antes de fugir de casa, Maria Amélia não conseguia deixar de pensar no seu ouro. Desde o anel de noivado, ao colar que o marido lhe ofereceu aos 50 anos, a mulher de 65 anos achou que não devia deixá-los para trás. O medo era que, quando voltasse, a casa fosse apenas um monte de cinzas. As joias seriam, no meio da tragédia que se adivinhava, um pouco do tudo que viveu que poderia conservar.

“Eu vou-me embora mas vou buscar o ouro!”, disse ao marido. “Não vais nada, não tens tempo, vai-te já embora e salva-te!”, respondeu-lhe, enquanto um amigo do filho mais novo a esperava já com um carro, para a poder levar para o centro de Castanheira de Pera, onde as chamas não chegaram. Maria Amélia obedeceu ao marido, que decidiu ficar para trás.

Nessa altura, o filho mais velho do casal já estava em fuga para Castanheira de Pera. Levava consigo a mulher e a filha. Em plena N-326, a estrada que, para desagrado de muitos habitantes da região, ficou agora conhecida como a “estrada da morte”, bateram noutro carro, que não conseguiram ver por causa do fumo. Com fogo dos dois lados da estrada, ficaram convencidos de que também o carro tinha pegado fogo. Nisto abriram as portas e disseram à filha: “Corre, filha, corre!”. A rapariga de 11 anos saiu, mas perdeu-se. Por sorte, levava telemóvel — e por milagre a rede ainda não tinha caído na região. Bastou uma chamada para encontrarem a filha, com as pernas queimadas dos joelhos para baixo. Pouco depois, um carro em fuga apanhou-os. Eram nove dentro do automóvel, que chegou são e salvo a Castanheira de Pera.

Maria Amélia ficou sem o ouro e o seu marido perdeu grande parte das suas ferramentas e alfaias, que arderam no incêndio (HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR)

HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR

Entretanto, Germano ainda estava em Balsa, com uma mangueira de jardim em punho, combatendo sem eficácia as chamas que se avolumavam. Assim que soube que o pai ainda lá estava, o filho mais novo foi a conduzir até à aldeia. À chegada, Germano ofereceu-lhe resistência — e só entrou no carro do filho aos empurrões. “Eu trabalhei a vida toda, não posso perder tudo assim!”, dizia, desolado.

Enfim, a família juntou-se toda em Castanheira de Pera. Durante dois dias, pouco ou nada dormiram. Mal acreditavam que estavam vivos. No meio da angústia, falavam entre eles e com outras pessoas que aguardavam o fim dos incêndios na rua. Nessas conversas, Maria Amélia ia dizendo: “Ai, o meu ouro, deixei lá tudo, o meu ouro…”.

À onda da solidariedade agarrou-se a espuma da criminalidade

Além do ouro, os ladrões levaram também a bomba de insulina de Maria Amélia, que é diabética. Desde que voltou a casa, ainda não conseguiu dormir em condições. No tempo que passa, não consegue deixar de pensar no assalto — e em quem poderá estar por trás dele. “Eu não sei, eu não sei, quem é que fez isto?”, pergunta para o ar. “O ouro estava escondido, como é que eles foram lá dar com ele?”, questiona, também. E há outra pergunta ainda: “Quem é que é capaz de fazer uma coisa destas?”.

Ainda o incêndio que começou em Pedrógão Grande estava longe de estar dominado e já se ouvia falar, um pouco por todas as vilas e aldeias da zona, que havia quem aproveitasse a situação caótica para cometer crimes.

Na terça-feira, o Instituto da Segurança Social emitiu um alerta onde dizia ter conhecimento de “falsas visitas de indivíduos no terreno que se fazem passar por técnicos de Segurança Social”. Mais tarde, já na quinta-feira, o presidente da Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Pedrógão Grande, Carlos David, disse à Lusa que havia “grupos que sabiam que as aldeias tinham sido evacuadas e assaltaram essas casas”. Também a Santa Casa da Misericórdia soube que havia pessoas que, fazendo passar-se por seus funcionários, recolhiam bens que diziam ser para os bombeiros e para as vítimas — e que nunca tiveram esse destino. Houve até quem criasse falsas contas bancárias de solidariedade, cujos NIB foram espalhados um pouco por toda a internet.

“Há pessoas que são capazes de tudo”, remata Germano.

A vida que vai ter de continuar

Aos 63 anos, Germano Abreu ganha uma reforma que ronda os 500 euros. A mulher, dois anos mais velha, recebe 300 euros mensais. A estas contas, Germano costuma adicionar aquilo que tira dos seus biscates, a maior parte deles a limpar terrenos privados. Muitas vezes, da limpeza tira lenha, que vende já cortada, pronta a ir para a lareira. Como a que tinha num dos armazéns que ardeu — e que, vendida um pouco por todo o lado, lhe deveria render cerca de 5 mil euros. Além disso, com o incêndio, muita da madeira da região deixou de ser utilizável. Germano não sabe bem o que fazer. “Eu já disse que vou mas é pedir a alguém que perceba da Internet, ou lá o que é, para meter lá um anúncio para mim”, diz. “E também vou pedir a alguém para meter aí um letreiro qualquer”, acrescenta.

Germano tem contas para pagar. Além do empréstimo da casa, tem um crédito pessoal para saldar e ainda dois créditos automóveis. Ao todo, a conta chega quase aos 800 euros mensais. Ou seja, exatamente aquilo que o casal ganha de reforma.

Germano Abreu segura o caderno onde regista as contas que o casal paga todos os meses. São quase 800 euros, tanto quanto ganham de reforma (HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR)

HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR

Esta quinta-feira saiu pela primeira vez de casa para trabalhar. Saiu porta fora, sentou-se ao volante do trator, atrelou-lhe uma alfaia emprestada por um amigo e foi acudir a uma senhora da vizinhança. Tinha-lhe ligado assustada, porque havia silvas altas e verdes perto da sua casa — ou, por outras palavras, um fósforo que o incêndio de Pedrógão Grande poupou. Germano pôs-se a caminho.

Porém, teve uma surpresa. Quando começou a usar a alfaia do amigo ela começou a deitar fumo. “Aquece num instante, não percebo porquê, agora tenho de ver que volta é que posso dar a isto”, diz. “Alguma coisa vou ter de fazer, isso é garantido. Tem de ser. Também não me posso matar, não é?”

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