Kamasi Washington é um tipo grande, no fôlego e na distância que vai de um ombro ao outro. De acordo com as coisas da internet, Kamasi também parece um gigante quando é hora de concerto, tão grande que dá a ideia de não haver mais nada nem ninguém em palco. Isto parece surpreendente, mas a verdade é que não é surpresa nenhuma se nos lembrarmos do que aconteceu no ano passado. Recordamos: aconteceram duas horas e 53 minutos de um estaladão em forma de jazz que depois de bem assente deixa uma marca que vai do funk mais ácido ao R&B, ao gospel e a tudo o que, vindo da música negra, influenciou a tradição americana. Um saxofone para tomar conta do mundo, foi mais ou menos isso que nos deu esse tal disco de título “The Epic” — nome mais certeiro era difícil.
Ainda assim, Kamasi Washington só é este gigante porque alguém o fez assim, porque se deixou levar por quem lhe deu música desde cedo. E isso percebe-se assim que a conversa arranca. O primeiro assunto é Prince, o inevitável Prince, o “enorme” — palavra de Kamasi — Prince. Quando esta conversa acontece, ainda estamos demasiado próximos da morte do músico, fugir ao assunto era proibido: “Ele era o tal. Ele era o tipo que nunca ninguém vai conseguir ser. Se queres ser funky, se queres ter os rhythm & blues contigo, tens de ser o Prince, tens de aprender e conhecer todo o Prince. Como é que isto nos foi acontecer… Ainda não acredito”.
Kamasi é o maior, repetimos, mas parece que ao telefone consegue chorar-nos no ombro. São rápidos minutos que temos para uma chamada transatlântica e o homem está muito mais preocupado em explicar-nos o que Prince nos deu do que falar do que ele mesmo pode dar-nos quando vier ao Porto e a Lisboa, a 6 e a 7 de junho, para dois concertos. Aliás, como se o lamento (mais que justificado e compreensível) não fosse suficiente, Washington tem mesmo uma história com Prince: “Isto aconteceu há uns anos, não me lembro bem quando, o que pode levar algumas pessoas que vão ler isto a não acreditar.” Nada disso, continuemos. “Estava em Minneapolis para um concerto, o Prince estava lá. Veio ao backstage, disse que me queria mostrar uma coisa e passado algum tempo estava em Paisley Park e ele a dar um concerto para meia dúzia de pessoas, durante umas duas horas. É difícil estar agora a recordar isso.”
[Kamasi Washington ao vivo na KCRW]
Já agora: Kamasi, o que fez Prince pela música que compõe “The Epic”, a mesma que vem apresentar em Portugal? “Eu sei que já se disse muito sobre a minha música, que já se escreveu muita coisa, não sei se são verdades ou exageros ou coisas que as pessoas inventam. Mas há uma coisa que aparece sempre e que é uma verdade que aprendi com o Prince: se tens realmente gosto pela música que fazes, então não interessa como a vão catalogar, não importa com que rótulo é que vai aparecer.”
No início era tudo, se possível
Washington tem seguido esse princípio desde que se meteu na música, vai para uns bons anos. Ora vejamos: o início não deve ter data oficial, já que os pais do homem também são músicos. A mãe tocava flauta, o pai saxofone, entre o jazz, o gospel e sessões de estúdio para ilustres da Motown como os Temptations ou Diana Ross. Foi aluno aplicado na matéria, nas primeiras escolas e na universidade; nesses mesmos corredores desfez-se em improvisos com heróis da categoria do guitarrista Kenny Burrell ou do baterista Billy Higgins; e arranjou maneira de encaixar o saxofone na música de Lauryn Hill, Chaka Khan, Flying Lotus ou Kendrick Lamar — provavelmente a colaboração mais popular que assinou e que faz parte do álbum de 2015, “To Pimp a Butterfly”. “Tudo boa gente”, conta. “O Kendrick é uma espécie de Prince, pelo menos na capacidade criativa e no compromisso com o trabalho. E apesar de ser um rapper, o que o preocupa é fazer música, de qualquer género, com qualquer pessoa. Tal como eu.”
Já em miúdo queria fazer a diferença. Cresceu em Inglewood, Los Angeles, entre gangues e outras coisas pouco saudáveis que as ruas podem gerar, mas sempre como espetador, sempre à parte. Percebeu que não era por ali o caminho e deu-lhe a volta: “Vi tudo com atenção, tudo o que se passava à minha volta. Não havia nada de especial por ali, nada que fizesse a diferença, e era isso que eu queria, ser diferente daquela América mas sendo americano na mesma”. Tantos anos depois — Kamasi tem 34 — a vontade continua a ser a mesma, fazer uma América diferente na América de sempre. “Escrevo música que também é política, ainda que nem sempre se perceba”, diz-nos o artista que deu nova vida a “Malcolm’s Theme”, composição que recupera o discurso de Ossie Davis na altura da morte de Malcolm X. “Sentir que na música tudo é possível é um pequeno grande passo para perceber que o mesmo pode acontecer noutras dimensões da vida. E acho que estamos a precisar disso.”
Deixem-no trabalhar, ele dar-nos-á maravilhas. E é assim que o artista é visto pelo público que o segue? Quem vai aos concertos dele, vai atrás de um criativo sem fronteiras estilísticas ou de um virtuoso do jazz? “Espero que não vá atrás de nenhuma dessas coisas.” Pensando bem, nenhuma dessas coisas é mentira, pois não? “Talvez não seja. Mas o que eu gostava mesmo era que estivessem à espera de nada em concreto, que quisessem ser surpreendidos. O meu grande objetivo é tocar ao vivo e deixar as pessoas numa de ‘o que foi que aconteceu?’. Não sei se consigo, não costumo fazer perguntas às pessoas no final dos concertos.”
[Kamasi Washington foi um dos colaboradores fundamentais de Kendrick Lamar em “To Pimp a Butterfly”]
Duas noites, em Lisboa e no Porto, duas oportunidades para tirar isto a limpo, já com as certezas todas de quem ouviu o disco e não precisou saber mais nada. O mundo deu atenções a “The Epic” e ficou feliz da vida por ter dado de caras com esta dúvida: “O que raio é isto, de onde vem, para onde vai, quem sou eu?”. É jazz e é psicadélico; é funk e R&B mas sempre a experimentar mais e mais, como quem quer ser algo completamente diferente. Todo o esforço do músico é empregue para chegar ao lado de lá. É um daqueles raros mestres da criatividade e, já dizia o super-herói — com grande poder vem grande responsabilidade.
Fora isso, há o detalhe da obsessão e da capacidade de gerir muita informação ao mesmo tempo. Não é para todos mas Washington sempre teve jeito para resolver problemas. Dado às matemáticas desde novo (as mesmas que lhe deram boas notas e o ajudaram a conseguir uma bolsa de estudo para as músicas que realmente lhe interessavam), tornou-se num ambicioso compositor e arranjador. Lançou três álbuns por mão própria, um band leader com atitude que se chegou à frente com Live At 5th Street Dick’s (2005), The Proclamation (2007) e Light Of The World (2008). E só muito depois fez “The Epic”, álbum triplo, cheio de camadas, de delírios, de exageros instrumentais que nunca soam fora do lugar, coros em ambiente de gravidade zero, Sun Ra, Coltrane e outros seres de mundos desconhecidos. Tudo junto, tudo com mais corpo, mais densidade, como se a ambição do artista fosse a de criar uma porta para uma outra dimensão.
O bom rebelde
Como manda a boa educação, Kamasi Washington diz que não, não é nada disso. “Os elogios que as pessoas fazem são quase sempre exagerados. Porque são elogios à interpretação que cada um faz da música que ouve. Se conhecessem o artista talvez não dissessem a mesma coisa, talvez se ficassem pelo ‘este tipo tem muito talentoso, mas é uma pena ser uma besta'”. Asseguramos aqui: pelo menos ao telefone, nada disto se verifica com o senhor Washington. “A minha mãe ensinou-me a ser educado, a ser compreensivo e tolerante, ensinou-me isso enquanto me dava música, ela e o meu pai. Uma coisa não existe sem a outra, deve ser por causa disso.”
Começou por ouvir “de tudo”, que é um ótimo princípio. Depois procurou mais, tentou “perceber a complexidade para a poder manobrar”. O jazz foi o caminho óbvio: “Porque as possibilidades são infinitas, porque não há dois caminhos iguais”. E é por isso que não entende quando lhe dizem que o jazz mudou quando Kamasi entrou na cena: “Já muita gente me disse que começou a ouvir jazz por minha causa, porque antes de mim o jazz era outra coisa. Mas isso é mentira. O jazz nunca foi só uma coisa, nunca esteve parado. Essas pessoas estavam presas a uma ideia de jazz que elas próprias formaram e isso não resulta muito bem”.
Mas este é um músico fora de série com a imagem de um ser meio místico. Adorá-lo, transformá-lo em ícone é até fácil. Não há música como a dele e não há artista igual. Há qualquer coisa de instintivo em dar-lhe toda a atenção — a mesma que, na verdade, ele merece. Explicações? O próprio tem umas ideias: “Acho que uma das primeiras coisas que causa impacto é a minha imagem. Um afro-americano com este penteado e esta roupa, com uns colares esquisitos e a tocar saxofone. Não é muito habitual que um tipo como eu apareça nos media com tanto destaque e até acredito que isso seja cativante. Depois, há aquela parte de eu ter colaborado com gente importante, gente conhecida da pop. A partir daí, há aqueles que ficam para ouvir a minha música e aqueles que desistem quando percebem que é de jazz que estamos a falar”.
Tudo uma questão de imagem, a de Kamasi e a do jazz. E nada disto é novo. “Os preconceitos são tramados. Existem sobre o jazz como existem sobre o hip hop. As pessoas podem querer ouvir tudo, mais complexo ou mais simples, mais palavroso ou apenas instrumental. Devíamos deixar de querer decidir isso pelos outros, fica-nos mal. Imaginemos: e se tivéssemos sido assim, tristes e preconceituosos, com o Prince? Nem quero pensar no que seria deste mundo.” Nem nós.
Kamasi Washington toca ao vivo na Casa da Música no Porto, dia 6 (21h, entre 22,5 e 35 euros), e no teatro Tivoli BBVA, em Lisboa, no dia 7 (21h, entre 20 e 35 euros).