Foi para as bancas esta quinta-feira – um dia antes do jornal, para as livrarias e não para os quiosques e, desta vez, em edição única. Dois jornalistas, Liliana Valente (do Observador) e Filipe Santos Costa (do Expresso) escreveram “O Independente – A máquina de triturar políticos”, relatando os bastidores do Indy, o titulo que revolucionou o jornalismo e pôs a tremer o cavaquismo (com tudo o que de bom e de mau isso implicou). Personagens principais: Paulo Portas, Miguel Esteves Cardoso e, claro, Cavaco Silva. Aqui ficam excertos do primeiro capítulo, para abrir o apetite.
Porque é que não fazemos um jornal?
«Começar é fácil», escreveu Miguel Esteves Cardoso, na primeira linha de uma das suas coletâneas de crónicas d’O Independente. Só faltava o dinheiro. E gente. Detalhes. Mas o jornal começou a nascer antes, muito antes.
O Independente nasceu um bocadinho quando Paulo Portas, estrelinha do comentário político no Semanário, quis ser mais do que dois palmos por meio palmo, o espaço que ocupava a sua coluna de opinião. O Semanário, fundado em 1983, resultou de um projeto da ala direita do PSD que não se revia na coligação PS -PSD, o «bloco central» chefiado por Mário Soares. Sob a direção de Victor Cunha Rego, juntava algumas das melhores cabeças da direita a pensar sobre política e economia. «Foi a primeira tentativa de fazer alguma coisa consistente e densa à direita, embora tivesse a mesma fronteira que o Expresso: o PPD», diz Portas à distância de três décadas.
O jornal tinha outra marca, que fazia dele um produto único: a Olá!, suplemento que se colava sem embaraço à espanhola Hola! e durante anos dominou a cena social. A revista mostrava uma burguesia festiva, frívola e vistosa, que tirava as jóias e os vestidos compridos do baú para se mostrar a um país que ainda andava de fato -macaco ou enxada ao ombro.
Portas sentia que a revista social se tinha tornado um monstro: dizia que o jornal era «um suplemento da Olá!». Propôs a Cunha Rego e a Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da administração, a criação de outro suplemento, que fosse uma resposta à Revista do Expresso, fundada e dirigida por Vicente Jorge Silva. «Um produto que rompesse» com o que existia, com um ponto de partida estético e cultural, juntando reportagem, crítica e tendências. «O Vítor Cunha Rego apoiou, mas o Marcelo disse que em Portugal a direita só comprava a Olá!, não queria uma revista cultural, e chumbou. Esse projeto do Paulo esteve na base do que foi depois o caderno 3 d’O Independente», recorda Luís Nobre Guedes, já então amigo de Portas e uma peça -chave na história que se seguiria.
Nesses meados dos 80s, Portas apresentava-se na sua coluna de fatinho e gravata, cabelo abundante, de risco à esquerda, cabeça quase impercetivelmente inclinada, com pose e pinta. Embora tivesse pouco mais de vinte anos, era um nome estabelecido entre a intelligentsia de direita, irreverente e heterodoxo. Poucas vezes o foi tanto como na sua primeira crónica no Semanário. O tema era o PSD, o título era «Os laranjinhas», o texto surgia em branco. Uma marotice e uma afirmação, «uma coisa para marcar território, demonstrar que ideologicamente o PSD era equivalente a nada».
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Miguel, o génio
Antes de aparecer nas televisões e tornar -se um fenómeno pop por usar laço e dizer coisas desusadas sobre Portugal e a contracorrente sobre a Europa, Miguel Esteves Cardoso já aparecia nos jornais e era um fenómeno de culto – primeiro, por revelar ao país a música melhor que se fazia lá fora; depois, por destapar o que o país tinha cá dentro.
«Produto de um acidente genético, mãe inglesa e pai português» (oficial da Marinha e engenheiro de construção naval), Miguel escrevia «a sério» desde os 15 anos. Em 1975, com 19, foi estudar para Inglaterra. Economia e Filosofia Política. Só aos 28 anos deixou de ser filósofo-político para ser jornalista. Nunca o fora antes de se tornar diretor d’O Independente. Mas não era estranho a jornais.
Manchester, onde fez os estudos superiores, era a capital da cena pós-punk e new wave, estatuto confirmado com a Factory Records, o viveiro da nova música inglesa. Esteves Cardoso, que adorava música e amava escrever, viu-se no olho do furacão, o lugar certo de onde mandar para Portugal notícias sobre as novidades que ninguém podia deixar de ouvir. Começou a colaborar com o Se7e, O Jornal, a revista Música e Som e a Rádio Comercial. A crítica musical foi o prelúdio da fama.
Foram os anos em que guardou o adjetivo «indispensável» para Songs of Love and Hate, de Leonard Cohen, garantindo que, à exceção desse, «não há disco algum» que mereça essa classificação; o tempo em que considerou que «o adjetivo “excelente” devia ser reservado para gravações discográficas de um destes quatro conjuntos: os Velvet Underground, os Doors, os Talking Heads ou os Joy Division». A banda de Ian Curtis era beatificada como «o maior conjunto Pop de todos os tempos».
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A MEC is born
A crítica musical impôs um nome e um estilo. Em 1982 as crónicas foram editadas num livro, Escrítica Pop, hoje vendido caro em alfarrabistas. Na contracapa, Fernando Assis Pacheco adivinhava um ficcionista nos textos sobre discos e um talento «de fazer uma legião de invejosos».
O talento tornou-se mais visível quando Esteves Cardoso regressou a Portugal e saiu do nicho da crítica musical. Voltou de Inglaterra ao fim «de oito anos de imensa saudade», trazendo uma licenciatura em estudos políticos e um doutoramento que cerzia saudade, sebastianismo e o integralismo lusitano. Apesar de meio-inglês e bilingue, português era o que era. «Quando cheguei a Portugal, queria fazer parte de Portugal. […]. Percebi que era português lá. Eu não sabia, pensava que era internacional, cosmopolita, que estava acima disso.»
Quando Vicente Jorge Silva lhe abriu as portas do Expresso, Miguel pôde analisar, dissecar, brincar, declarar amor e ironizar com Portugal, os portugueses, as suas coisas e manias. Com um estilo inimitável que marcou uma geração e fez uma legião de imitadores.
Miguel tanto escrutinava as relações entre homens e mulheres à luz do «fator SPAC (que significa, em irrepreensível português, “Salto Para a Cueca”)» como analisava a mania da merda: «Não se entabula actualmente em Portugal conversa nenhuma que não contenha obrigatoriamente a proposição “Esta merda está cada vez pior”. […] Antigamente, se bem se lembram, esta merda não ia estando, como agora, cada vez pior. O mais frequente era aquela merda estar rigorosamente “cada vez mais na mesma”. Qual era o cidadão de pendor ordinário que nesses tempos não gostava de declarar que “as moscas mudam mas a merda é a mesma”? Bons tempos, afinal, esses em que a merda não piorava…»
Miguel olhava de fora, como quem documentasse os hábitos de uma tribo recém-descoberta, e esse era o olhar do filho de mãe inglesa. Mas escrevia com o afeto e a pieguice de quem pertence à tribo, e esse era o ADN do pai português. As crónicas do Expresso, lidas por seguidores fiéis, eram virais antes desse conceito existir.
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Conservando Portugal
Se havia assunto com que não brincava era Portugal e ser português. Ou melhor, brincava, mas era coisa séria. Ser patriota e ser conservador eram características indissociáveis, num país que não apreciava nem uma nem outra.
«Um conservador tende a ridicularizar qualquer inovação. Pode ser aborrecido. Pode até ser perigoso. Mas é um trabalho que se faz em Portugal cada vez menos, se calhar devido à descoberta científica do “desenvolvimento”, do desejo de tornar Portugal “irreconhecível” ou “europeu”»
Do seu ponto de vista, continuar Portugal era necessário, torná-lo «irreconhecível» ou «europeu», não.
«Continuar Portugal não é uma acção delicada, ou uma campanha urgente, ou uma tarefa que exija o sacrifício de todos os cidadãos. É simplesmente continuar a perguntar, a barafustar, a amaldiçoar o dia em que se nasceu desta cor, nesta pele, com este coração mole e fácil de apertar e de espremer. Continuar Portugal é acreditar que a vida seria pior sem ele, pior se a Europa começasse em Espanha, pior se fossemos suíços ou belgas ou finlandeses. Continuar Portugal é ser português e dizer “Pronto, que se lixe, o que é que eu hei de fazer?”»
Era uma questão política atual e urgente, nesses anos em que o país se entregava à Comunidade Económica Europeia (CEE) em troca dos cheques de Bruxelas. O pagamento seria a perda de soberania. Estava mais em causa do que parecia à vista desarmada e MEC não fugia a usar palavras difíceis. Como «Pátria» ou «Nação», que punham ao utilizador a dificuldade de terem sido apropriadas pela ditadura e demonizadas pela revolução. Palavras que eram, por isso, MECáveis: havia que desarrumá-las, tirar -lhes o cotão, puxar -lhes o lustro do significado original.
«Um dos legados da ditadura foi incutir nos espíritos mais desprotegidos uma identificação automática de certas palavras – como Pátria ou Ultramar – com as ideias e práticas políticas do Estado Novo. Evitam, assim, usá-las, sempre com grande perícia e nervosismo, não vá alguém chamá-los “fascistas”. […] A palavra Nação, aparentemente inóqua (e posso garantir que os estrangeiros mais evoluídos a utilizam – sim, mesmo em Nova Iorque!) não pode ser proferida sem suscitar sorrisos envergonhados. […] Não será necessária mais do que alguma lucidez para ver que, se algumas palavras foram apropriadas pelo Estado Novo (afinal, só uma pequena gota da História portuguesa), a pior coisa que podemos fazer é deixá-las ao cuidado dele.»
O candidato do laço
Os textos de MEC sobre Portugal, Pátria e Nação não eram só entretenimento, nem só provocação. Eram política. Seguiu-se o salto lógico, nas europeias de 1987. «Eu nunca quis fazer política, candidatei-me ao Parlamento Europeu por ser antieuropeísta, para fazer campanha contra.» O PPM não foi uma questão de escolha, mas de falta dela: «Era o único partido não de esquerda com uma posição crítica em relação à União Europeia».
Conservador, nacionalista e monárquico, o candidato estava em piso escorregadio num país que ainda não se tinha recentrado depois da deriva pós-revolucionária. «O feitio conservador é irritante porque relembra ou procura relembrar coisas do arco -da -velha […]. Resultado frequente: é-se involuntariamente reaccionário. Sei que sofro deste mal», admitia Esteves Cardoso.
Nas suas crónicas tinha escrito sobre essas coisas do arco-da-velha – o Almanaque Borda d’Água, o limpa metais Coração, o sabonete Lavicura, o atum Risonho, a Pasta Medicinal Couto, a pomada Encerite… –, dando-lhes um encanto retro que, depois, seria promovido pel’O Independente, havendo de se tornar um movimento nacional de revivalismo e um nicho de negócio. Mas a princípio era visto por muitos como simples reacionarismo contrarrevolucionário – acusação a que MEC não fugia: «Ser reaccionário de um modo minimamente decente também é um ofício que se vai tornando raro» e «alguém tem de fazê-lo».
MEC foi o caso da campanha. Com uma perspetiva conservadora, foi uma lufada de ar fresco; com um discurso nacionalista, agitou a bandeira antieuropeísta; com humor, falou de coisas graves; com palavras antigas, atraiu eleitores jovens. No Semanário, Paulo Portas usou a sua crónica para elogiar o inesperado wonder boy. «Olhem o Miguel. Verão luz, brilho e sorriso». MEC era culto, inteligente e tinha sentido de humor, três «factos» que o condenavam a ser minoria. «É muito melhor ser eleito ele do que um anónimo – desses que têm lugar numa grande lista. Não se troca o bom pelo péssimo, não é?», escrevia Portas, nesse texto em que revelava o seu voto nas duas eleições do domingo seguinte. Para as legislativas, votaria «útil» em Aníbal, para as europeias, votaria «lúdico» em Miguel.
A declaração de voto em MEC não surpreendia. Portas fora uma das «personalidades» que dera a cara nos tempos de antena do PPM. Foi durante essa campanha que se conheceram. «Cada um gostava do que o outro escrevia e então houve esse encontro de espíritos, uma coisa muito elevada, quase à século XIX», conta Inês Dentinho, na época jornalista do Expresso, que testemunhou essa descoberta numa cave de Alfragide, onde eram gravados os tempos de antena. «Foi um entendimento perfeito e imediato. Eles aproximaram-se pelas ideias e porque se divertiam um com o outro.»
O fenómeno MEC valeu 156 mil votos. Um resultadão para o partido, uma «derrota espectacular» para o candidato. Faltaram 60 mil votos para ser eleito. Ainda assim, era um bom número. Se um jornal vendesse isso… Mesmo metade disso seria uma boa cifra, quase o que vendia o Expresso, o semanário mais importante do país… Não demoraria até Miguel começar a fazer estas contas de cabeça. Com a ajuda de Paulo Portas e de uma mão -cheia de gente.
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No seu estatuto editorial, O Independente dizia-se conservador, liberal, patriota. «Não tínhamos medo de não ser de esquerda», num país onde «era sempre preciso mostrar que se era primo direito ou em terceiro grau do Marx.» Mais: o estatuto editorial colocava a cultura no mesmo patamar que a política e a economia. Em todas essas áreas, O Independente queria ser alternativo à esquerda. Por muito que pudesse baralhar algumas almas o facto de um jornal que se dizia conservador se revelar ecuménico na cultura e vanguardista na estética.
«Nessa altura, cultura e esquerda eram palavras sinónimas. Nós tínhamos uma perspetiva cultural e estética, mas quisemos provar que a tolerância estava do nosso lado», explica Portas. «Com alguma presunção (mas a modéstia nunca foi uma característica demasiado abundante n’O Independente), queríamos gente que pensasse bem e escrevesse lindamente. Isso era independente da direita ou da esquerda. Queríamos as pessoas mais inteligentes da direita, do centro e da esquerda… Isso acabou por criar uma reputação de que O Independente era procurado por pessoas sofisticadas, o que não era mentira.» O mesmo desprendimento sobre inclinações políticas valia para a seleção dos jornalistas. «Não nos preocupou nada que a redação chocasse de frente com o posicionamento ideológico que queríamos para o jornal», jura Portas.
O talento para a escrita era, supostamente, o critério definitivo. A regra era, antes de mais, ser simples. Não armar ao pingarelho. «Em Portugal, metade do que se escreve dá para teses de mestrado, dá para prémios da APE, dá para publicar nos jornais – só não dá é para perceber», lamentava Esteves Cardoso na sua primeira crónica n’O Independente.
«Suspeito que os nossos jornalistas e romancistas incompreensíveis escrevem para serem relidos, interpretados, divididos em orações, enterrados no quintal e redescobertos cinco séculos depois. A clareza, se calhar, parece-lhes demasiado com a superficialidade. Desconfiam que o que se percebe à primeira não pode ser profundo e por isso escrevem conforme o princípio de que, para se ser profundo, não se pode simplesmente ser percebido. O problema da comunicação em Portugal – e isto aplica-se tanto a jornais como a romances – resolver-se-á quando os portugueses perceberem que, no fundo no fundo, não há mal nenhum em comunicar».
Era isso que os seus jornalistas deviam fazer: comunicar. Contar histórias (O Independente não tinha notícias, tinha «histórias»). De forma simples e franca, às vezes bruta. Mas escolhendo um lado. «O Independente não acredita na neutralidade. Politicamente é democrata e conservador. Tomará partido por quem tiver razão, praticará a tolerância e não será cúmplice de qualquer abuso de poder. Mas considera a liberdade acima da igualdade», proclamava o estatuto editorial.
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Vivendo sobre um cinema porno
Mais importante do que a delimitação de fronteiras entre os dois diretores, havia a diferença de personalidades, que na prática definia terrenos e papéis. Miguel, de natureza desprendida e despreocupada, e com alguma dificuldade em cumprir horários e submeter-se a regras, raramente estava no jornal quando era imperativo tomar decisões. Chegava ao gabinete que partilhava com Portas – um espaço sem luxos, como toda a redação, apenas funcional, luminoso e desarrumado, com uma permanente nuvem de fumo – às cinco ou seis da tarde, a cheirar a sabonete. Punha a tocar Cowboy Junkies, ou outro objeto da sua paixão melómana à época, servia-se de muito gelo para o uísque irlandês, e só então começava a trabalhar. Sobretudo no caderno 3, embora com uma vaga noção do que se passava no resto do jornal.
Portas era o oposto: omnipresente, workaholic, motivador, hiperativo. Tinha uma relação intensa e afetiva com a sua equipa e trabalhava sete dias por semana para o jornal. Ao fim de semana, era a leitura de tudo o que fosse jornal e revista. O ritual começava com o escrutínio do Expresso. Nada lhe estragava o dia como ser ultrapassado pelo concorrente, facto que, dizia, ocorria com parcimónia. A leitura da imprensa estrangeira incluía trabalho de recorte e sublinhados – à segunda-feira chegava à redação com um monte de recortes com ideias para adaptar.
De semana, era dos primeiros a subir ao primeiro andar onde ficava a redação, no centro de Lisboa, por cima do cinema pornográfico Cinebolso. Era também um dos últimos a sair, muitas vezes diretamente para uma sessão da meia-noite – não dos sugestivos filmes em exibição na sala do rés-do-chão, mas no Cinema Mundial, a poucos quarteirões.
Se saía mais cedo, era quase sempre para se encontrar com fontes – muitas vezes ao jantar. Vezes sem conta fazia as refeições no gabinete, bifes com batatas fritas encomendados ao café do outro lado da rua (o Tó Ricardo, espécie de sede social e centro de convívio d’O Independente), ou, em havendo vagar, mandados vir do Chef, o restaurante da Lapa com comida «caseira». Outras vezes era mesmo comida caseira, feita pela mãe. «Eu levava comida ao Paulo e toda a gente se atirava à marmita dele. Tudo esganado de fome», conta Helena Sacadura Cabral.
«De quarta para quinta e de quinta para sexta eram dois dias de miséria para o Paulo. Ele não saía, trabalhava como um cão», recorda Patrícia Reis, que entrou no semanário quando este tinha poucos meses de existência, tornando-se a mascote do jornal, com apenas 18 anos. Portas não era o único a viver na redação. Manuel Falcão garante que nos primeiros dois números esteve «quase duas semanas sem dormir». Inês Pedrosa, outra fundadora, lembra-se que «vivia literalmente – como todos nós – dentro daquele jornal e para aquele jornal». Sem horários nem descanso, o corpo é que pagava.
Dinintel às caixas e whiskies irlandeses óptimos
Houve princípios de diabetes, sinais de ataque cardíaco, rins que nunca mais foram os mesmos, fígados que não se recompuseram. Resultado de muitas diretas, muitas refeições esquecidas, e, em vários casos, alto consumo de substâncias estimulantes e bebidas alcoólicas. As histórias sobre drogas e álcool fazem parte da mitologia d’O Independente, ninguém as desmente, mas ninguém gosta de contar em on – porque já lá vão e a generalização pode ser exagerada. Havia quem não bebesse, quem não cheirasse, até quem não fumasse.
Fiquemo-nos pelo que é contado por Miguel Esteves Cardoso, que estava em boa posição para estudar a fauna e descrever -lhe os hábitos: «Em termos de álcool nunca mais houve nada como O Independente, que era uma coisa monumental.» «Era às caixas, centenas de garrafas, com sacos de gelo. E o Dinintel, na altura, era às lamelas. Cada um tomava uma lamela. Toda a gente sem exceção tomava. E depois era um saco de gelo por pessoa. Mas não bebíamos qualquer coisa. Eram whiskies irlandeses óptimos, gins, bebidas bem feitas com lima e gelo.»
O Dinintel era oficialmente um comprimido para emagrecer e oficiosamente um speed poderoso – era esta característica que o tornava popular no Indy. Mesmo Portas, que não alinhava em álcool, era praticante convicto de speeds. «O Paulo era só comprimidos. Fazia imensas diretas e andava sempre de jeans. Não era nada betinho, apesar de não beber álcool. O Dinintel sim.» A secretária da direção «ia à farmácia e era aos caixotes». As consequências ficavam à vista: por um lado, «aquilo estragou os dentes a toda a gente»; por outro, o resultado editorial era muitas vezes brilhante, às vezes alucinado, outras vezes era disparatado ou ia longe demais.
Mas era O Independente, na fase em que para os fiéis tudo o que o jornal fazia era superlativo. Em particular as manchetes, que se tornaram uma das suas marcas. Havia dois métodos clássicos. Um, era a adaptação de títulos de obras, sobretudo de filmes – processo que deu manchetes como «O último Tang em Lisboa», «O caça -ministros», «Ligações perigosas», «Fax story», «A bela e o monstro» ou «A última tentação de Judas». Outro era o trocadilho, que deu títulos como «Marques Mentes», «O Couto do vigário», «Herdade para ter juízo» ou «Grande melão» (sobre Carlos Melancia). Embora fosse um trabalho coletivo, a partir de certa altura o jornalista Pedro Guerra foi nomeado tituleiro emérito e foi da sua cabeça que saiu boa parte dos melhores títulos do jornal.
O pânico de quinta -feira à noite
O risco de fracasso prematuro só ficou afastado nos anos 90. «Houve um almoço, outra vez no Rex, eu, o Paulo, o João Amaral, em que estava em cima da mesa fechar o jornal. Isto, em outubro de 1989. Não era viável economicamente», testemunha Nobre Guedes.
Pouco antes desse almoço, Portas vangloriava -se por o jornal ter motivado, nesse ano, três inquéritos parlamentares: um sobre a casa de Cadilhe, outro sobre os negócios do Ministério da Saúde e um terceiro, acabado de propor pelo PSD, sobre a compra da Quinta da Atalaia pelo PCP. Os dois primeiros provocaram um dano no Governo que nem a maioria absoluta amorteceu. O caso do faxe de Macau, que atingiu em cheio a presidência de Mário Soares, ou a fraude do Fundo Social Europeu, envolvendo a UGT, diversificou as vítimas. Mas o alvo prioritário e sistemático continuou a ser Cavaco e a sua gente.
Para o poder político, sexta-feira passou a ser dia fúnebre. «A certa altura, eu falava das capas d’O Independente como as lápides. Quem é que terá a sua lápide esta semana? Não era necessariamente mortal, até porque ninguém teve mais lápides do que Cavaco Silva, e sobreviveu sempre. Mas era quase mortal pela causticidade e contundência. Muitas vezes era brutal e brilhante nos trocadilhos – ao mesmo tempo que fazia ranger os dentes fazia sorrir», recorda Paulo Teixeira Pinto, secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros na segunda maioria absoluta.
Quinta-feira à noite era sinónimo de corrupio e nervos em franja. «Generalizou-se a ideia de que a quinta-feira era um pânico do lado do Governo, o que nos dava imensa adrenalina. E depois a sexta -feira de manhã era uma jornada de luto», diz Portas. De véspera, havia telefonemas para a redação e perguntas aos jornalistas, mais diretas ou mais subtis, para saber quem seria a vítima seguinte. «As noites de quinta-feira de centenas de políticos estavam irremediavelmente marcadas pela incerteza e pelo receio.»
Para quem estava no Governo era angustiante. Ainda hoje há quem acredite que eram ventilados nomes só para lançar o pânico. «À terça, quarta -feira, começavam a surgir rumores, alguns deles fabricados, como chantagem quase. Eles punham a correr vários nomes [de vítimas]. Toda a gente [no Governo] me vinha perguntar se eu sabia de alguma coisa. Eu dizia: “já sei de quatro, como vai só sair uma manchete, a chance que seja um destes é de 25%”», conta um dos homens de confiança de Cavaco.
«Era um suplício, uma autêntica tortura. Um medo completamente inquisitorial. As pessoas viviam angustiadas todas as semanas», diz um antigo ministro sob condição de anonimato. Este governante conta que um dia a mulher chamou um carpinteiro para montar prateleiras em casa. Pediu recibo, como o governante a havia instruído, mas verificaram que o recibo não passava de «um papelinho sem valor fiscal», escrito a lápis – «dois contos e setecentos». Foi um alvoroço: «Se eles apanham isto, fazem uma capa a dizer que eu fugi ao IVA!», sobressaltou-se esse ministro. «Eles», claro, era O Independente, que por essa altura até já tinha andado a vasculhar os caixotes de lixo de políticos (não encontraram nada de excitante e essa «história» acabou por nunca ser publicada – mas o facto de ter acontecido adensou o «clima inquisitorial»).
Da mesma maneira que a pressão d’O Independente para sacar notícias não poupava ninguém, também a pressão para se saber qual seria a manchete seguinte chegava a muita gente. Até Helena Sacadura Cabral, que nessa altura era economista do banco central, acumulando esse título profissional com a dupla qualidade de mãe de Portas e pequena acionista da SOCI, sentia esse stresse. «Foi um dos motivos pelos quais eu quis sair do Banco de Portugal – todas as quintas -feiras era um burburinho sobre o que ia sair. E perguntavam-me. Eu respondia: “Sou acionista, não sou jornalista. Eu só quero os resultados ao fim do ano”.»
Os resultados, esses, eram cada vez melhores. A troca de diretor, a meio de 1990, ajudou: Portas foi promovido e Esteves Cardoso, com o argumento de ir fazer a revista Kapa, passou a diretor-adjunto. Foi a formalização de um facto, mas comportava um risco, tendo em conta que MEC fora a grande catapulta no lançamento do jornal. Mas as vendas continuaram a subir – confirmava-se a intuição de Portas e da administração: Miguel continuava a ser uma marca, mas como diretor não era uma mais-valia.
A versão oficial de MEC e PP diz que, no início, queriam os dois ser diretores. Ou melhor: MEC, com a sua costela anarquista, até sugeriu que não houvesse diretor, mas como isso não era possível, concordaram que era ele a estrela da companhia e ocuparia essas funções, dando mais tarde o lugar a Portas. Ambos coincidem nessa narrativa – mas só eles. Quem os acompanhou nesses tempos de fundação não tem memória desse pacto. Se existia, foi feito a dois e em segredo.
No essencial, a mudança na direção não mudou o jornal. Não foi esse facto que o empurrou mais para a política – essa viragem vinha de finais de 1988 –, nem o tornou mais violento com o cavaquismo – havia um crescendo, mas a grande guinada viria com a segunda maioria absoluta –, nem o aproximou mais do CDS – isso viria com o tempo e com um rapaz chamado Manuel Monteiro. Em todo o caso, as vendas legitimavam a evolução. Para Portas, era essa a bitola. «A comunicação social, em regime de liberdade e de concorrência, só tem uma legitimidade, e essa é dada pelos leitores. É a legitimidade do mercado.»
Ser político, ser anticavaquista, ser de direita, tudo isso era parte do ADN d’O Independente. E vendia. Mas foi isso que empurrou, depois, o jornal para o seu labirinto. Da mesma forma que as manchetes que enchiam uma capa deixaram de ser um modo de afirmação para passarem a ser um problema, quando deixou de haver histórias fortes para manter o modelo, também o ADN traiu o semanário. Quando a política passou a ser um projeto partidário, quando o cavaquismo sumiu do mapa e quando a direita diferente já não se fazia num jornal, mas num partido.
Nada que surpreendesse os mais atentos. Os que viram, desde os primeiros números, política escondida com jornal de fora. A esses, aos que acusavam o Indy de ser uma arma contra Cavaco, um bando subversivo contra a direita que existia, um submarino de extrema-direita, um panfleto reacionário ou até «uma casa de meninas», Miguel Esteves Cardoso respondia invariavelmente com o argumento que ninguém, nem o adversário mais feroz, lhe podia contestar.
«Bom ou mau, O Independente é o jornal português mais livre e democrático que há. É um facto. Aqui, tudo se pode dizer – segredos, disparates, opiniões e, até, de vez em quando, umas verdades. Cometemos constantemente o erro de ir longe demais só para não corrermos o risco de ficarmos parados. Pensamos que às vezes é melhor uma pessoa espalhar-se ao comprido em plena via pública do que ficar em casa a chuchar no dedo.»