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MatiasEnElMundo/Getty Images/iStockphoto

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"O Intruso": o medo nos contos de H.P. Lovecraft está de volta

Na semana em que começa mais uma edição do MOTEL X, a Saída de Emergência prepara-se para lançar uma nova edição ilustrada dos poemas de H.P. Lovecraft. O Observador pré-publica um dos contos.

Depois de um volume ilustrado que reúne os melhores contos de Edgar Allan Poe, a Saída de Emergência vai publicar, já em setembro, um livro que reúne os textos mais arrepiantes de Howard Phillips Lovecraft, o pai do mítico Cthulhu. Tal como no volume dedicado a Poe, os contos reunidos pela editora surgem acompanhados por ilustrações feitas por 22 artistas portugueses, como Joana Afonso, Filipe Andrade ou Miguel Mendonça, especialmente para este volume. Além de um editorial de Luís Corte Real, o livro inclui uma introdução à vida e obra de Lovecraft da autoria de António Monteiro.

H.P. Lovecraft nasceu a 20 de agosto de 1890, em Providence, Rhode Island, nos Estados Unidos da América. Autor de culto, escreveu poemas, contos de terror, de fantasia e de ficção científica, que publicou nas chamadas pulp magazines, revistas de ficção com pequenos contos de terror ou fantasia muito populares nos anos 20 e 30. Famoso pelo chamado “Mito de Cthulhu”, uma personagem mítica parte polvo, parte homem e parte dragão, Lovecraft foi ainda autor de uma extensa correspondência, que muitos consideram ser a sua obra-prima. Morreu a 15 de março de 1937, na sua terra-natal, Providence. É hoje um dos mais celebrados autores do género fantástico, tendo servido de  inspiração a inúmeros artistas no mundo inteiro.

O livro chega às livrarias a 7 de setembro reúne apenas uma pequena parte da extensa produção literária de Lovecraft. O lançamento acontece um dia antes, no MOTEL X, o festival de cinema de terror de Lisboa. A apresentação — marcada para as 19h na sala 2 do Cinema São Jorge, onde decorre o evento — vai estar a cargo do Edgar Pêra e do músico Paulo Furtado (mais conhecido por The Legendary Tigerman), que estão a trabalhar num “cine-concerto” baseado na obra de Lovecraft chamado “3D LOVECRAFTLAND”. Bruno Caetano, coordenador artístico da edição da Saída de Emergência, também vai estar presente na sessão durante a qual serão exibidos excertos do filme. As ilustrações feitas pelos 22 artistas portugueses vai estar em exposição no Cinema São Jorge durante o festival de cinema.

É a propósito do lançamento de Os Contos Mais Arrepiantes de Howard Philips Lovecraft e do arranque da 12.ª edição do MOTEL X que o Observador pré-publica o conto “O Intruso”, um dos textos que fazem parte do volume editado pela Saída de Emergência, e a ilustração que o acompanha, da autoria de Marta Teives. Publicado originalmente no n.º 4 do volume 7 da revista Weird Tales, em abril de 1926, “O Intruso” (em inglês, “The Outsider”) foi uma das muitas colaborações de H.P. Lovecraft com a pulp norte-americana, uma das mais populares da altura. Fundada em 1923 pelo ex-jornalista J.C. Henneberger, colaboraram na Weird Tales autores como C.M. Eddy Jr., Clark Ashton Smith ou Seabury Quinn. O último número da revista saiu em novembro de 1940, já depois da morte de Lovecraft.

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O volume de 22 contos ilustrados por artistas portugueses chega às livrarias a 7 de setembro. A apresentação acontece no dia anterior

“O Intruso”

“Nessa noite o barão sonhou grandes tormentos
E todos os seus guerreiros convidados, em sombra ou em forma,
Bruxas e demónios e longos vermes sepulcrais
Fizeram parte desse pesadelo”

John Keats

“Infelizes aqueles para quem as memórias de infância apenas trazem medo e tristeza… Desgraçado o que recorda horas solitárias em vastas salas sombrias, com reposteiros acastanhados e inquietantes fileiras de livros antigos, ou vigílias de fascínio e medo em bosques crepusculares de enormes árvores grotescas cobertas de trepadeiras, que silenciosamente ondeiam os seus ramos lá no alto. Tais riquezas os deuses me ofertaram — a mim, o louco, o triste, o estéril, o destroçado. E contudo, sinto‐me inexplicavelmente contente, por demais afeiçoado a essas recordações, quando por momentos a minha mente ameaça ir mais além, e alcançar o outro.

Não sei onde nasci, excepto que o castelo era infinitamente antigo e infinitamente horrível, cheio de escuras passagens e de tectos altos onde os olhos apenas poderiam vislumbrar penumbras e teias de aranha. As pedras dos corredores derruídos pareciam‐me sempre demasiado húmidas, e havia um cheiro amaldiçoado por todo o lado, a cadáveres empilhados ao longo de gerações. Aí nunca chegava a claridade, de modo que, por vezes, acendia velas e olhava muito para elas em busca de alívio. Lá fora, o Sol também nunca brilhava, pois essas árvores terríveis tinham crescido bem acima da mais alta torre acessível. Havia, contudo, um torreão negro que se elevava sobre as árvores para um céu desconhecido, mas estava praticamente em ruínas e não poderíamos subir a ele senão através de uma impossível escalada das suas paredes, pedra após pedra.

Eu deveria ter vivido durante anos nesse lugar, mas é‐me quase impossível medir o tempo. Deveria ter havido pessoas que cuidavam das minhas necessidades, todavia não consigo recordar‐me de mais ninguém senão de mim, nem de outra coisa viva, à excepção das ratazanas, dos morcegos e das aranhas. Creio que a minha ama deveria ter sido chocantemente idosa, dado que a minha primeira concepção de alguém vivo se prendia com uma pessoa ridiculamente semelhante a mim, todavia distorcida, mirrada e decrépita como o castelo. Para os meus olhos, nada havia de grotesco nos ossos e nos esqueletos que se encontravam espalhados, por algumas criptas de pedra, na profundeza dos alicerces. Associava de um modo fantástico todas essas coisas aos acontecimentos do dia‐a‐dia, achando que eram mais naturais do que os retratos coloridos de seres vivos, que encontrava em muitos livros bolorentos. Nesses mesmos livros aprendi tudo o que sei. Não tive professores para me darem incentivos ou me guiarem, e não me recordo de nenhuma voz humana durante todo esse tempo — nem sequer da minha —, pois embora já soubesse falar, nunca me passaria pela cabeça fazê‐lo em voz alta. O meu aspecto era também algo que desconhecia, pois não havia espelhos no castelo e eu apenas me concebia, com base nos meus instintos, semelhante a essas guras jovens que via desenhadas ou gravadas nos livros. Tenho consciência da minha juventude através da escassez das minhas recordações.

Lá fora, do outro lado do fosso pútrido, sob as escuras árvores mudas, costumava deitar‐me e sonhar horas seguidas acerca do que ia lendo. Por vezes imaginava‐me entre animadas multidões, nesse mundo ensolarado para lá da floresta sem fim. Um dia tentei evadir‐me desses bosques, mas, à medida que me ia afastando do castelo, as sombras adensavam‐se e o ar enchia‐se de obsessivos pavores. De modo que regressei a correr desesperadamente, não me fosse perder para sempre nesse labirinto de silenciada escuridão.

Assim, sonhei e aguardei, através de infinitos crepúsculos, embora não fizesse a mínima ideia do que estava à espera. Foi então que o meu desesperado desejo de luz me tornou tão impaciente, que eu já não conseguia sossegar. Levantei mãos suplicantes para o único torreão negro e em ruínas que se elevava da floresta até ao céu desconhecido e, por fim, decidi escalá‐lo, apesar de saber que poderia cair. Porém, era melhor morrer depois de ter visto o céu, do que viver sem nunca ter contemplado a luz do dia.

Por dentro dessa humidade crepuscular, trepei por esses degraus de pedra antigos e gastos, até atingir o ponto em que acabavam. Em seguida, apoiei‐me perigosamente em pequenas cavidades que me conduziriam mais acima. Esse cilindro de pedra, já sem escadas, era fantasmagórico e terrível, negro, derruído, abandonado e sinistro, cheio de morcegos assustados de cujas asas não se emanava qualquer som. Mas ainda mais terrível e fantasmagórica era a lentidão da minha subida, porque, apesar de continuar a trepar, a escuridão não se esvaneceu, e um novo arrepio repleto de premonições e de humidade voltou a assaltar‐me. Tremia à medida que ia pensando por que razão não tinha ainda atingido a luz, e teria olhado para baixo, se a tanto me atrevesse. Pensei que talvez a noite se tivesse abatido de súbito sobre mim, e em vão tentava encontrar, com uma mão livre, o vão de uma janela, para que pudesse espreitar para baixo e para cima, tentando assim calcular a altura que atingira.

"O mais demoníaco de todos os choques terá sempre que ver com a mais reveladora surpresa e com o lado mais grotesco do inacreditável. Nada daquilo por que antes passara poderia ter sido tão aterrador como o que vi nesse momento."

De repente, depois de ter trepado horrivelmente e às cegas por esse côncavo precipício, senti a minha cabeça a bater em qualquer coisa sólida, o que me dava a entender que deveria ter chegado ao tecto, ou pelo menos a um andar superior. Pela densa penumbra levantei a minha mão livre para apalpar essa barreira, reparando que era de pedra e que não se mexia. Em seguida comecei, sob perigo de morte, a contornar essa torre, tentando agarrar‐me a não importava que saliências cheias de humidade que pudessem existir nesse torreão, até finalmente a minha mão ter encontrado uma pedra que cedia e eu me ter voltado de novo para cima, empurrando a laje ou o alçapão com a minha cabeça, dado que tinha ambas as mãos ocupadas nessa subida assustadora. Mas nenhuma luz me chegou do alto e, quando as minhas mãos avançaram mais um pouco, vim a saber que ainda não fora dessa vez que a minha subida terminara, dado que essa pedra dava entrada para uma abertura que conduzia a uma superfície lisa e lajeada, de maior circunferência do que a torre inferior, que pertenceria, sem dúvida, a uma espaçosa e elevada câmara de observação. Rastejei através dessa abertura e tentei evitar que a pesada laje voltasse a tombar no seu lugar, falhando, contudo, nessa minha tentativa. Enquanto me estendia exausto sobre o chão empedrado, ouvi os tétricos ecos da sua queda, mas esperava que, logo que fosse necessário, a pudesse voltar a levantar.

Acreditando estar agora a uma altura prodigiosa, muito acima dos malditos ramos do bosque, levantei‐me do chão num esforço para encontrar as janelas, para que pudesse olhar pela primeira vez para o céu, tal como a Lua e as estrelas, acerca das quais havia lido. Mas todas essas minhas expectativas se goraram, visto que a única coisa que encontrava eram vastas prateleiras de mármore, suportando odiosas caixas oblongas de dimensões inquietantes. Reflecti então, continuadamente, acerca dos tétricos segredos que poderiam existir nessa elevada divisão, isolada durante tantos séculos do castelo mais abaixo. Então, subitamente, as minhas mãos depararam‐se com um portal de pedra áspera, com estranhos entalhes cinzelados. Tentando forçar a porta, reparei que estava trancada, mas, com um esforço supremo de energia, consegui ultrapassar todos os obstáculos e abri‐la para fora. Ao fazê‐lo, fui dominado pelo mais puro êxtase, pois, brilhando tranquila através de uma ornada grelha de ferro — e ao fundo de um pequeno corredor de degraus de pedra, elevando‐se desde a porta que acabara de encontrar —, vi uma radiante lua cheia que nunca antes tinha visto, senão em sonhos e em visões vagas a que não me atreveria a chamar memórias.

Imaginando então que já tinha alcançado o mais alto pináculo do castelo, comecei a subir à pressa esses degraus em frente à porta; porém, o facto de a Lua ter sido momentaneamente ocultada por uma nuvem, fez com que eu tropeçasse e tivesse mais dificuldade em encontrar o meu caminho no escuro. Este ainda se fazia sentir quando atingi a grelha de ferro, que até nem estava aferrolhada mas que eu não quis logo abrir, com medo de cair desde essa incrível altura até onde acabara de trepar. Então, a Lua surgiu.

O mais demoníaco de todos os choques terá sempre que ver com a mais reveladora surpresa e com o lado mais grotesco do inacreditável. Nada daquilo por que antes passara poderia ter sido tão aterrador como o que vi nesse momento. Com todas as bizarras maravilhas que o sentido da visão pressupunha, o que vi era tão simples quanto surpreendente, pois era apenas o seguinte: em vez de uma estonteante vista sobre a copa das árvores, contemplada desde uma altura imponente, estendia‐se diante de mim, ao nível dessa grelha, nada mais do que o terreno comum, ornado e diversificado por erectas placas de mármore e por colunas, dominadas pela velha igreja de pedra, cujas ruínas do campanário brilhavam espectralmente sob o luar.

Semi‐inconsciente, abri essa grelha de ferro e comecei a cambalear ao longo de um caminho de gravilha que se estendia em duas direcções. A minha mente, caótica e desorientada como estava, ainda mantinha esse desesperado almejar pela luz e nem mesmo a fantástica maravilha que acabara de acontecer me poderia desviar do meu caminho. Não sabia nem me importava que a minha experiência se baseasse tão‐somente na loucura, no sonho ou na magia, pois estava determinado a contemplar, a todo o custo, os objectos fulgurantes e a alegria de viver. Não sabia já quem era ou o que era, ou quais poderiam ser as coisas que me rodeavam, embora, à medida que começava a recuperar o meu equilíbrio, me tivesse tornado mais consciente de uma espécie de memória latente e assustadora, não de todo fortuita. Passei por baixo de um arco, para lá dessa zona cheia de erectas placas funerárias e de colunas, e comecei a vaguear a céu aberto. Por vezes, seguindo um caminho visível; outras, abandonando‐o, para me embrenhar por prados onde apenas um ou outro vestígio revelava ainda a presença de uma estrada há muito esquecida. Cheguei mesmo a atravessar um impetuoso rio a nado, onde restos de alvenaria, cobertos de musgo, me revelaram a existência de uma ponte há muito desaparecida.

A ilustração que acompanha o conto “O Intruso” é da autoria de Marta Teives, ilustradora freelancer que tem desenvolvido vários projetos em banda desenhada

Cerca de duas horas se teriam passado antes de eu ter atingido o que me parecia ser o meu objectivo: um venerável castelo, coberto de hera, num parque densamente arborizado. Esse local era‐me loucamente familiar, contudo repleto de uma estranheza que me intrigava. Reparei que o fosso se encontrava cheio e que algumas das torres conhecidas tinham sido demolidas, ainda que a presença de novas alas pudessem confundir o observador. Mas no que reparei, com um grande interesse e prazer, foi nas janelas abertas, profusamente iluminadas, deixando escapar os sons de uma festa trepidante. Avançando até uma delas, olhei para o interior do salão, onde vi uma série de convidados estranhamente vestidos, muito bem‐dispostos e falando animadamente uns com os outros. Aparentemente, eu nunca ouvira vozes humanas, e apenas poderia perceber vagamente o que estavam a dizer. Alguns dos rostos pareceram‐me ter expressões que me traziam recordações bastante remotas; outros eram‐me totalmente desconhecidos.

Então, saltei através de uma janela desse piso térreo, para dentro desse salão intensamente iluminado, catapultando‐me assim do meu único momento brilhante e de esperança para a mais negra convulsão de desespero com que me deparei. O pesadelo não demorou a irromper, pois, logo que aí entrei, ocorreu imediatamente uma das mais assustadoras reacções com que jamais me deparara. Ainda mal saltara pelo parapeito, quando esse grupo de pessoas foi dominado por um súbito medo inesperado, de grande intensidade, distorcendo cada rosto e despertando os mais horríveis gritos em quase todas as bocas. Todos fugiram e, no pânico dessa confusão, alguns caíram desmaiados, para serem arrastados pelos enlouquecidos companheiros que continuavam a correr. Muitos cobriram os olhos com as mãos, inclinando‐se muito para frente, de um modo cego e desajeitado, na sua fuga desesperada, deslocando peças do mobiliário e dando encontrões pelas paredes, antes que pudessem chegar a uma das muitas portas.

Os gritos eram chocantes e, ao ver‐me sozinho e confuso nesse salão inundado de luz, ouvindo os ecos distantes desses passos, tremi ao pensar no que poderia estar invisível e à espreita, a meu lado ou por detrás de mim. Após uma vista de olhos, esse salão parecia‐me vazio, mas, ao dirigir‐me até uma das antecâmaras, pensei ter aí detectado uma presença, um vago movimento, para lá do portal em talha dourada que dava para uma outra divisão até certo ponto similar. Quando me aproximei do mesmo, comecei a aperceber‐me mais claramente dessa presença, e então, com o primeiro e último som que jamais proferi — um ulular fantasmagórico que me revoltou quase tanto como a coisa apavorante que o causara —, contemplei de frente, e com uma grande nitidez, a inconcebível, a indescritível e indizível monstruosidade que, pela sua mera aparição, transformara esses alegres convidados numa horda de fugitivos delirantes.

Eu não gritei, mas os fantasmas terríveis que cavalgam as ventanias nocturnas deveriam ter gritado por mim, dado que nesse momento senti desabar, numa única e fugaz avalanche, algo capaz de me aniquilar todas as memórias da alma. Nesse instante, percebi tudo o que tinha acontecido.

Não posso sequer dar‐vos uma ideia do que era, pois tratava‐se de uma combinação de tudo o que era impuro, execrando, anormal e detestável. Era a sombra espectral da decrepitude, da velhice e da desolação; da pútrida e gotejante imagem de uma revelação doentia; do desnudar de algo que a terra misericordiosa deveria ter para sempre escondido. Só Deus sabe como aquilo não era deste mundo — ou já não pertencia ao mesmo —, todavia, para meu grande horror, eu vi nos seus contornos carcomidos e nos seus ossos expostos a aberrante caricatura da forma humana que me olhava, e nos seus trajos bolorentos e apodrecidos, uma indizível característica que me arrepiou ainda mais.

Estava quase paralisado, mas não tanto para que não pudesse fazer um fraco esforço para fugir, um salto para trás que não conseguiu quebrar o encanto a que esse monstro sem nome nem voz me mantinha preso. Os meus olhos, enfeitiçados pelas órbitas vidradas que de um modo odioso olhavam insistentemente para eles, recusaram‐se a fechar as pálpebras, embora se encontrassem felizmente enevoados e me mostrassem, após o primeiro choque, ainda que de uma forma indistinta, esse objecto terrível. Tentei erguer a mão para evitar o que via, todavia, os meus nervos estavam tão anestesiados que o meu braço já não me obedecia. A tentativa, porém, foi suficiente para me desequilibrar, de modo que tive de dar alguns inseguros passos em frente, para evitar cair. Ao fazê‐lo, fiquei plena e dolorosamente consciente da proximidade dessa coisa decomposta, cuja respiração cava e hedionda quase imaginava ouvir. Aproximando‐me já da loucura mais completa, ainda consegui estender um braço para afastar essa fétida aparição que estava tão perto de mim, quando, num segundo cataclísmico de pesadelo cósmico e de infernal percalço os meus dedos tocaram na pata apodrecida desse monstro por baixo desse portal em talha dourada.

Eu não gritei, mas os fantasmas terríveis que cavalgam as ventanias nocturnas deveriam ter gritado por mim, dado que nesse momento senti desabar, numa única e fugaz avalanche, algo capaz de me aniquilar todas as memórias da alma. Nesse instante, percebi tudo o que tinha acontecido. As minhas recordações iam bem para além desse castelo assustador e das árvores, e reconhecia agora o edifício alterado em que me encontrava. Reconhecia também — o que ainda era mais terrível — a abominação amaldiçoada que estava a olhar para mim, quando desviei os meus dedos sujos dos seus.

Mas no cosmo existem bálsamos, tal como amarguras, e esse bálsamo é um nepente [bebida mágica que Helena deu a Telémaco, capaz de anular a tristeza]. No supremo horror desse segundo, esqueci‐me do que me horrorizara, e esse acesso de negras memórias esvaneceu‐se, no caos dessas imagens em eco. Num sonho, fugi desse assombrado e maldito edifício e corri rapidamente e em silêncio para o luar. Quando voltei ao mausoléu de mármore do cemitério, e comecei a descer os degraus, reparei que não conseguia levantar o alçapão de pedra, mas não lamentei tal facto, pois odiava o antigo castelo e as árvores. Presentemente, cavalgo com os fantasmas amáveis e irónicos pelos vendavais nocturnos e, durante o dia, divirto‐me nas catacumbas de Nephren‐Ka, no vale secreto e desconhecido de Hadoth, junto ao Nilo. Sei que a luz não é já para mim, excepto a Lua sobre os sepulcros de Neb; nem outra alegria, a não ser a das inomináveis festas de Nitócris [referência a uma rainha egípcia da VI dinastia, também mencionada no conto “Sob as Pirâmides”], por baixo da Grande Pirâmide. No entanto, na minha nova exaltação e liberdade, quase dou por bem‐vindas as agruras da loucura.

Pois se bem que esse nepente me tenha acalmado, saberei sempre que sou um intruso, um estranho neste século entre aqueles que ainda são homens. Isso fiquei eu a saber, quando estiquei os meus dedos para essa abominação, nesse grande caixilho em talha dourada. De facto, ao avançar com a mão, toquei numa fria e sólida superfície de vidro polido.”

Ilustração de H.P. Lovecraft de MatiasEnElMundo/Getty Images/iStockphoto

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