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O Islão e a moda estão numa relação

Os olhos ocidentais só veem religião nas roupas islâmicas mas o Museu de Young quer ver moda em 2018. O mercado islâmico está a crescer e com ele as mulheres que escolhem a liberdade de tapar o corpo.

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Max Hollein promete começar pelo “bê-a-bá”. “Provavelmente há quem não imagine que existe moda no Islão”, disse ao anunciar a grande exposição que agendou para o outono de 2018, no Museu de Young. Para já chama-se “The Fashion of Islam” (A moda no Islão) e vai ser a primeira grande exposição desde que assumiu o cargo de diretor do museu de São Francisco, em março passado. No contexto atual este é um ato político e Hollein promete olhar para o vestuário tradicional muçulmano, mas também para os criadores de hoje que aplicam os preceitos islâmicos à indústria da moda. Aquilo que fazem pode não estar no ouvido de toda a gente, como reconhece o diretor, mas existe e chama-se moda modesta.

“A fundamentação das roupas para homens e mulheres está no Alcorão que diz que devem vestir-se de maneira modesta e não devem deixar transparecer as formas do corpo”, explica ao Observador Teresa de Almeida e Silva, professora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP) e especialista em Islamismo. O livro sagrado fala para os dois sexos mas, sendo interpretado pelos homens, o corpo feminino revela-se uma ameaça à dita modéstia. “Um coisa comum a todas as roupas é o cabelo tapado. Não está no Alcorão, é uma interpretação do homem porque considera o cabelo uma arma de sedução”, continua Teresa.

Mulheres muçulmanas em Londres, no fim do Ramadão.

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A moda modesta (modest fashion) é a moda — com tudo o que tem de indústria criativa, de fast fashion ou de autor — que respeita as regras ditadas pelo Alcorão e que está a crescer com a classe média e o poder de compra das sociedades muçulmanas, e também com a globalização. Nos últimos anos alguns exemplos disto habitaram as notícias dos meios ocidentais: DKNY, Tommy Hilfiger, Mango, Oscar de la Renta e Dolce & Gabbana desenharam coleções especiais dedicadas ao Ramadão; a cadeia britânica Marks & Spencer pôs nas lojas burkinis e a designer Hana Tajima desenhou hijabs e roupas modestas para a Uniqlo. Ao mesmo tempo, há uma realidade que não atravessa facilmente a fronteira ocidente-oriente: um crescente grupo de mulheres que escolhe seguir orgulhosamente as regras de vestir muçulmanas e que quer fazê-lo com criatividade e com a sua marca pessoal — escrevem blogues, têm acordos com marcas. Em 2016, este sector da indústria da moda em rápido crescimento teve inclusivamente a sua primeira semana da moda: a Istambul Modest Fashion Week aconteceu pela primeira vez em maio, promovida pela Modanisa, plataforma de venda de roupa modesta com mais de 200 marcas e que vende para 60 países.

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Religião e moda? O museu entra na discussão

A exposição coloca, antes de mais, as roupas islâmicas no campo da moda, o que no mundo ocidental não se tem mostrado fácil: as jovens muçulmanas que decidem cobrir o cabelo e usar roupas largas são vistas como submissas e antiquadas, e a cultura islâmica é largamente descrita como opressora da mulher. O hijab, as abayaas ou o shador são frequentemente vistos como instrumentos de tortura e raramente como forma de expressão cultural positiva.

"A fundamentação das roupas para homens e mulheres está no Alcorão que diz que devem vestir-se de maneira modesta e não devem deixar transparecer as formas do corpo. O cabelo tapado não está no Alcorão, é uma interpretação do homem porque o considera uma arma de sedução."
Teresa de Almeida e Silva, professora do ISCSP e especialista em Islamismo

“Os acontecimentos políticos colocam-nos a olhar o modo de vestir tradicionalmente muçulmano do ponto de vista religioso e não do ponto de vista da moda, com tudo o que tem de expressão do gosto, tendências, criatividade. É uma leitura muito marcada até pelo entendimento do corpo e da condição feminina”, diz Bárbara Coutinho, diretora do Museu do Design e da Moda, referindo que esta pode ser uma exposição importante “se não acender polémicas mas procurar o entendimento e o debate”. A forma como o corpo feminino é percebido pelas sociedades muçulmanas é central para Bárbara Coutinho na discussão do tema. “Talvez fosse importante uma equipa multigeracional, de diferentes culturas, e o olhar feminino. É muito sensível tratar-se uma tradição cultural e perceber se ela deve ser respeitada ou não e se a sua renovação a atualiza ou é só uma perpetuação da mesma.”

O lugar feminino nas sociedades islâmicas é o foco dos críticos deste tema. São lembrados os crimes de género em que mulheres são assassinadas pelos familiares masculinos por não usarem determinada roupa. Teresa de Almeida e Silva situa estas práticas nos meios rurais conservadores e destaca, por oposição, as mulheres que não vivem em países muçulmanos e escolhem vestir-se segundo estas regras como afirmação cultural.

"Os acontecimentos políticos colocam-nos a olhar o modo de vestir tradicionalmente muçulmano do ponto de vista religioso e não do ponto de vista da moda, com tudo o que tem de expressão do gosto, tendências, criatividade. É uma leitura muito marcada até pelo entendimento do corpo e da condição feminina."
Bárbara Coutinho, diretora do MUDE

A diretora portuguesa destaca a importância do museu como gerador deste debate e sublinha: “Mesmo vendo o mundo islâmico pela lente da moda, o ponto de vista não pode ser nem eurocêntrico, nem um ponto de vista fetishista, por toda a carga religiosa que tem.”

Max Hollein ainda não tem equipa reunida para a exposição mas, segundo avançou ao jornal The New York Times, quer juntar um grupo de académicos e especialistas tanto em moda como em história da cultura e focar três aspetos essenciais: as reinterpretações do hijab, feitas não só por criadores islâmicos mas também por europeus, o streetware e roupa de desporto islâmico, em que a questão do burkini será ponto de destaque, e ainda a história do vestuário islâmico em todas as suas diversas formas tradicionais, umas mais restritivas que outras.

Mulher afegã com burka característica dos Talibã.

AFP/Getty Images

Ao jornal nova-iorquino, o diretor do museu norte-americano disse ainda que quer olhar o tema de diversas perspetivas, entre elas a forma como as sociedades contemporâneas conciliam dois polos que parecem opostos: a modéstia da roupa com a extravagância e o foco no indivíduo, característicos da indústria da moda globalizada.

Um mercado atrativo e em crescimento

“Os muçulmanos consideram que se o dinheiro for ganho de forma honesta não há problema em mostrar luxo, não há mal nenhum em enriquecer”, diz Teresa de Almeida e Silva, lembrando que mesmo antes do interesse mútuo entre os consumidores islâmicos e as marcas europeias e norte-americanas, as roupas no mundo islâmico eram também mais ou menos exuberantes conforme a classe social ou o poder de compra.

230

milhões de dólares (160 milhões de euros) é o valor gasto pela população muçulmana em roupa.

DinarStandard: State of the Global Islamic Economy Report 2015

A ligação entre os muçulmanos e a roupa ocidental começou com a família real saudita e as suas viagens à Europa para comprar roupa que só poderia ser usada em privado ou por baixo das roupas modestas, aponta Teresa. Esse é o momento da produção de petróleo em larga escala na Arábia Saudita, nos anos 1960 e, portanto, do aumento do poder de compra.

Hoje este mercado não é negligenciável para a indústria da moda: segundo o State of the Global Islamic Economy Report 2015, publicado pela DinarStandard, os consumidores muçulmanos gastam 230 milhões de dólares (aproximadamente 160 milhões de euros) em roupa e estima-se que em 2019 gastem 327 milhões (227 milhões de euros) — será mais do que os mercados do Reino Unido, da Índia e da Alemanha juntos, segundo a Al Jazeera. Este mesmo meio aponta como outro fator importante a idade média da maioria dos país muçulmanos — 30 anos, enquanto a de um europeu ou norte-americano é de 44. A tendência é que o poder de compra dos jovens cresça nos próximos anos, assim como a economia destes países: projeta-se que os países com população principalmente muçulmana cresçam 5,4 por cento por ano, enquanto a Europa e os Estados Unidos se ficam pelos 3,4 por cento. Olhando para estes dados e para a campanha publicitária da Dolce & Gabbana para a sua linha de roupa modesta, Amani Al-Khatahtbeh, editora do site Muslim Girl, pergunta: “Estarão estas grandes marcas finalmente a servir as mulheres muçulmanas, ou estarão a servir-se delas?”.

"Aquilo com que sonho é poder olhar para as passerelles e ver vestidos de alta costura que eu também possa usar, com um hijab e tudo. Assim, ao mesmo tempo que a D&G nos reconheceu com uma coleção, também nos excluiu."
Dina Torkio, blogger

Em reação a esta campanha publicitária, no ano passado a comentadora do Guardian Ruqaiya Haris escreveu que “as modelos de pele branca e pálida lembraram-me que a cultura oriental só será celebrada se for ‘glamourizada’ pelas sociedades ocidentais, podendo em troca lucrar com isso. No contexto global da islamofobia, há qualquer coisa que me deixa inquieta quando vejo uma mulher branca ser admirada por estar glamourosa ao usar as mesmas roupas que frequentemente fazem com que uma mulher muçulmana seja apelidada de extremista ou que a põem em risco de ser atacada ou condenada pelas sociedades orientais.”

As fórmulas do que é esta “moda modesta” e de que forma pode servir as necessidades das sociedades islâmicas continuam a ser as de sempre, isto é, a indústria da moda prefere jogar pelo seguro. “O que eu queria não era aquilo com que sempre cresci, coordenados com que todas as mulheres muçulmanas estão familiarizadas”, escreveu na mesma altura Dina Torkia, blogger de moda a viver no Egito, referindo-se às túnicas largas e compridas com lenços a condizer da marca de luxo italiana. “Aquilo com que sonho é poder olhar para as passarelles e ver vestidos de alta costura que eu também possa usar, com um hijab e tudo. Aquilo com que sonho é ser incluída em toda a alta costura. Assim, ao mesmo tempo que a D&G nos reconheceu com uma coleção, também nos excluiu.”

dinatokio

Dina Torkia de passagem por Lisboa. (Imagem retirada da conta de Instagram @dinatokio)

“Não me parece que [as roupas] estejam a atualizar-se”, diz Teresa de Almeida e Silva, apesar de lembrar fenómenos pontuais como o do burkini, que marcou o verão de 2016, ou ambientes específicos como os dos congressos académicos em que participa em países ocidentais, com grande diversidade cultural. “As colegas muçulmanas vão de fato das marcas ocidentais, mas com o pescoço tapado e com lenço na cabeça.”

O hijab pode ser uma coroa

Nem sempre será fácil a uma muçulmana vestir-se de forma modesta com aquilo que a moda rápida ou mesmo os criadores de alta costura ocidentais lhes oferecem. “A moda mainstream tende a orientar-se para uma versão muito sexualizada daquilo que a beleza é. Estou a tentar interpretar a beleza de outra maneira: como algo que é sentido, em oposição a algo que é visto”, disse a designer Hana Tajima ao site Dazed a propósito da sua coleção para a Uniqlo. Bloggers como Dina Torkia, Amur V Ruma ou Heba Jay mostram como é possível contornar esta tendência e usar roupas das grandes cadeias mantendo os princípios islâmicos: a cada post estão perfeitamente maquilhadas, calças de ganga largas, sapatos originais ou normcore, iguaizinhos aos que estão na moda do outro lado do mundo.

Dolce & Gabbana lança coleção a pensar nas mulheres muçulmanas

A reação de Mariah Idrissi ao saber que era a primeira mulher a usar hijab numa campanha publicitária da H&M foi: “A sério? Em 2015?”. A britânica com ascendência paquistanesa e marroquina só decidiu começar a usar hijab aos 17 anos — tarde, tendo em conta que tradicionalmente se começa na puberdade. Hoje com 24 anos, cresceu com os costumes muçulmanos como o Nasheed — uma forma de dizer poesia tradicionalmente islâmica. Aos 14 anos dizia profetas, aos 20 fazia tributos aos refugiados palestinianos. Ao olhar-se para ela vê-se mais facilmente uma voz ativista do que o estereótipo da mulher de lenço na cabeça, conservadora. No vídeo da H&M em que participou, ao lado de um elenco de corpos diversificados e desafiantes da norma, é descrita como “chique”.

Nos contextos ocidentais, usar roupas modestas e tapar o cabelo é cada vez mais uma escolha para as mulheres de comunidades islâmicas. As que dizem sim enfrentam o estigma social que as associa a mulheres dependentes dos maridos ou dos pais, sem individualidade, e há ainda a associação ao extremismo e ao terrorismo.

Amara Majeed é uma jovem norte-americana, feminista e ativista. A sua resposta a este quadro foi o Hijab Project, uma plataforma online que convida raparigas muçulmanas ou não a usarem um hijab e a partilharem a sua experiência de forma anónima. “As pessoas estranham muito quando eu digo que uso hijab por motivos feministas”, escreve como motivação para esta experiência social. “Quando uso um hijab estou a vincular a mensagem de que me recuso a aderir à objetificação e à obsessão da sociedade com o corpo e a beleza femininos.”

Neste site vão-se lendo desde 2014 diferentes testemunhos hijabis — mulheres que usam o hijab — por crença religiosa, como marco cultural ou somente porque as faz sentirem-se bem, como no caso de uma católica colombiana que vê o lenço como uma forma “de abandonar tudo o que é material”. “Esta semana estou a usá-lo porque o meu chefe está em viagem, mas se pudesse usá-lo-ia todos os dias”, escreve. “Agora percebo porque é que as hibajis dizem que o hijab é a sua coroa.”

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Uma das imagens da conta de Instagram @rumastyles.

Outro testemunho vem de uma mulher norte-americana que escolheu usar hijab para contrariar “a pressão social sobre aquilo que uma mulher deve ser”: “Toda a minha família me chama antiquada, avozinha, ou aponta para as minhas primas e para raparigas da minha idade que seguem as tendências. Por outro lado as pessoas em geral assumem que eu sou caladinha, vulnerável, fraca, estúpida ou oca.” Termina contando um episódio em que, numa sala de espera, uma funcionária lhe perguntou insistentemente se não queria tirar o casaco. “Garanti-lhe que estava bem assim. Ela perguntou-me se eu tinha medo de mostrar pele, fez referência ao hijab e perguntou-me se tinha vindo com o meu marido.” Esta hijabi explica que só tinha frio.

A mulher dispondo do próprio corpo não é exclusiva das culturas ocidentais, e mesmo nestas parece não estar assegurada: enquanto em França se criminalizava o uso do burkini, mulheres completamente vestidas tomavam banho ao lado de outras em topless nas praias tunisinas, exemplifica Teresa de Almeida e Silva.

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